Isabelle Huppert, a musa cabeçuda do cinema, passou frio no festival do Estação Botafogo
Foto: Cena de “Amateur”, de Hal Hartley
Por Maria do Rosário Caetano
A Revista de CINEMA prossegue em sua série de relatos, contendo lembranças cinematográficas ambientadas em festivais e mostras brasileiros (ou internacionais).
A vigésima-segunda dessas lembranças tem a sexta edição da Mostra Banco Nacional de Cinema, no Rio de Janeiro, como cenário. E uma visitante ilustre como personagem central – a parisiense Isabelle Huppert, uma das grandes estrelas do cinema europeu.
Naquela altura, agosto de 1994, ela já protagonizara filmes de Claude Chabrol (“Violette Nozière”, “Madame Bovary”, “Um Assunto de Mulheres” – trabalhariam juntos em seis longas), atuado em dois Godard (”Salve-se Quem Puder, a Vida” e “Passion”), Claude Goretta (“Um Amor Tão Frágil”), Doillon (“A Vingança de uma Mulher”), Marco Ferreri (“A História de Pietra”), Pialat (“Loulou”), um Bolognini (“A Dama das Camélias”), um Márta Mézáros (“As Herdeiras”), vários filmes dos Bertrand Blier e Tavernier e participado de mega-produção internacional, “O Portal do Paraíso”, que acabaria por desestruturar a carreira de Michael Cimino.
A Isabelle Huppert que desembarcava no Rio tinha, então, 31 anos, e reconhecimento internacional. Se “O Portal do Paraíso” fracassara, a parisiense, filha de pai engenheiro e mãe professora de inglês, não mostrava desânimo. Continuou fazendo dois (até três) filmes por ano e sempre de olho em diretores internacionais.
Chegava ao Brasil, país que visitaria várias vezes (para festivais, como o Varilux, e importantes eventos teatrais), como estrela de filme independente norte-americano, “Amateur”, dirigido por Hal Hartley. Naquela primeira metade dos anos 1990, Hartley era motivo de culto. Seus filmes – “Confiança” e “Simples Desejo” – haviam conquistado plateias cinéfilas, assim como os de dois colegas de geração, Jim Jarmusch e Quentin Tarantino.
Isabelle Huppert desembarcou no Rio de Janeiro em companhia de sua filha Lolita Chammah. A menina, então com dez anos, é fruto de seu duradouro casamento com Ronald Chammah, pai de seus dois outros filhos, Angelo e Lorenzo. A estrela francesa se dispôs a atender a dezenas de jornalistas, que primeiro assistiram ao filme numa cabine, no Cesar Park Ipanema. Ao entrevistá-la, todos nós ficamos impressionados com sua total falta de glamour. E com sua inteligência.
A “Madame Bovary”, de Flaubert-Chabrol, não respondia º o que era comum entre atrizes europeias (francesas em especial) – a perguntas pessoais. Naquela época, não custa lembrar, a “evasão de privacidade”, tão marcante em nossos dias internéticos, não estava na moda. Ela só se dispunha a falar sobre o “Amateur” de Hartley e sua trajetória no cinema e no teatro.
As respostas dadas pela francesa eram, sempre, objetivas e muito articuladas. Aliás, o tempo só faria aumentar sua fama de atriz “cabeçuda”. Para ela, o maior prazer da vida era estar num set filmando. Ou num palco. Ela, que fora por várias vezes capa da revista Cahiers du Cinéma, vinha de privilégio raro: na condição de convidada, editara número especial (Cahiers 477, de março, portanto, cinco meses antes de desembarcar no Rio).
A publicação – criada por André Bazin e os “jovens turcos” Godard, Truffaut, Rivette, Rohmer e Chabrol – dera a ela o direito de escolher o que quisesse para rechear todas as suas páginas. Em vermelho, a “cabeçuda” brilhava na capa. Dentro aparecia fotografada por ninguém mais, ninguém menos, que Henri Cartier-Bresson (1908-2004).
Muitos cinéfilos guardaram aquela “Cahiers rouge” com imenso carinho. Depois de entrevistá-la, nossos comentários, em rodas de jornalistas, eram os mesmos: “como ela é inteligente”, “anti-estrela”, “veste-se com simplicidade”.
Os organizadores da Mostra Banco Nacional de Cinema (Adhemar Oliveira, Ilda Santiago, Adriana Rattes, Marcelo França Mendes e Nelson Krumholz, a trupe do Estação Botafogo) testemunhavam o despojamento de Huppert, que não fizera exigências especiais, nem posava de estrela internacional.
Na entrevista – que não foi longa, pois havia dezenas de jornalistas na fila – Isabelle Huppert definiu Hal Hartley como “o mais europeu dos cineastas norte-americanos”, e sua personagem, a ex-freira Isabelle, como uma pessoa que carregava “uma bonita contradição”, pois era “religiosa e virgem” e seu ofício consistia em “escrever livros pornográficos”. A atriz estabeleceu o gênero do filme, “um thriller metafísico”, protagonizado por “uma mulher que vivia, na escrita, o que não ousava experimentar na realidade”.
Sobre Chabrol, Huppert foi certeira: “um de nossos melhores diretores, sabe abordar temas políticos sem ser didático”. Em “Um Assunto de Mulheres” (sobre a espinhosa prática do aborto na França católica) – que protagonizara e lhe rendera a Copa Volpi em Veneza 1988 – ela ponderou: “Chabrol ilumina todo um período histórico, dos mais controvertidos na França, a Ocupação (pelos nazistas, com a conivência do Marechal Pétain), por uma vida pequena e trágica” (a da aborteira Marie Latour, mulher simples e analfabeta).
Sobre o cinema de Godard, que caminhava cada vez mais para obras ensaístico-filosóficos, ela opinou: “por abordar questões sem resposta, ele e seus filmes fazem com que a arte não se paralise jamais”.
A atriz que chegaria aos 70 anos (em março último), com mais de 80 longas-metragens no currículo, contou, naquele mês de agosto de 1994, que acabara de realizar um filme na Rússia (“A Inundação”). E, que, tão logo regressasse a Paris, retomaria temporada teatral com o monólogo “Orlando”, no qual fora dirigida por Bob Wilson. E que faria seu quarto filme com Chabrol, “A Analfabeta”, baseado no livro “A Judgement in Stone”, de Ruth Randell (que foi rebatizado de “La Cerimonie”, e no Brasil ganhou o título de “Mulheres Diabólicas”). Reafirmou que cinema e teatro eram parte essencial de sua vida, que amava os palcos.
Ter filmado na Rússia era mostra de sua inquietação e busca constante de novos parceiros. Que só fizeram aumentar com o passar do tempo. Ela atuou sob direção dos italianos Mauro Bolognini, Marco Ferreri, Irmãos Taviani e Marco Bellocchio, do alemão Werner Schroeter, do americano-britânico Joseph Losey, do polonês Andrzej Wajda, do austríaco Michael Haneke (com dois filmes de imenso peso, “A Professora de Piano” e “Amor”), do cambodjano Rithy Panh, dos estadunidenses Otto Preminger, Curtis Hanson e Wes Anderson, da chilena Valeria Sarmiento. A lista é imensa.
Vem de tanto labor e tantas parcerias sua fama de cabeçuda, focada e workaholic. Se não tem convites para atuar na França, ela busca diretores internacionais que a encantam. Foi assim com o coreano Hong Sang-Soo, que a dirigiu em “A Visitante Francesa” e “A Câmara de Claire”, com o filipino Brilhante Mendoza (“Em Nome de Deus”), o holandês Paul Verhoeven (“Ela”, que lhe renderia indicação ao Oscar de melhor atriz), e, recentemente, o tcheco Jerzy Skolimovski (“EO”, recriação livre de “A Grande Testemunha”, de Bresson).
E teria faltado a ela, em algum momento, convites de realizadores franceses?
De forma alguma. Ela foi dirigida por Claire Denis (no ótimo “White Material – Minha Terra, África”), por Josiane Balasko, Catherine Breillat, Mia Hansen-Love, Diane Kurys, André Techiné, Benoît Jacquot, Patrice Chéreau, que como ela amava o teatro e o cinema, Christophe Honoré, François Ozon, Olivier Assayas, Raoul Ruiz (chileno que viveu todo seu exílio na França), Michel Deville e Claude Sautet.
A atriz gosta (até cultiva com fina ironia) de sua fama de cabeçuda e workaholic. Aceitou com imenso prazer convite para participar da badaladíssima e deliciosa série francesa “Dix pour Cent” (os dez por cento ganhos por agenciadores de artistas). No episódio de número seis, ela interpretou, como faziam outros de seus colegas famosos, a si mesma. Ou seja, uma atriz que se compromete, ao mesmo tempo, com um filme independente, uma superprodução estrangeira, uma peça de teatro e… uma entrevista a um importante programa de TV. Ah, Isabelle Huppert mantém, ainda, dois cinemas em sua cidade natal, Paris – École Cinéma Club e Christine Cinéma Club – ambos programados por um de seus filhos.
Voltemos à passagem da francesa pela Mostra Banco Nacional, em 1994. Além da exaustiva maratona de entrevistas aos jornalistas, o que fez a contida e desglamourizada Huppert na bela capital fluminense?
Quem ler o livro “Eu que Amava Tanto o Cinema – Uma Viagem Pessoal pela Aventura do Cineclube Estação Botafogo”, de Marcelo França Mendes (Cobogó, 2022), se divertirá com os pequenos feitos da atriz (e mãe) Isabelle Huppert.
No texto de número 63 (são 147 ao todo), Marcelo relembra que a noite de abertura da Mostra, no Theatro Municipal, exigia roupas elegantes. Mas a atriz apareceu de “vestidinho de alcinha estampado e Melissa nos pés”. Tudo bem, ponderou, pois ela “brilhava com qualquer roupa”. Só que – brinca o integrante do Estação – os espectadores cariocas amam desfrutar de ar condicionado em temperaturas siberianas. O frio começou a atormentar a francesa. Quando não suportava mais, ela pediu ao atento “cão de guarda”, o próprio Marcelo, que desligasse o ar condicionado. Se ele fizesse isso, a plateia carioca não o perdoaria. O que fez? Cedeu o próprio paletó à atriz mignon, que dele tirou o necessário proveito. E depois o devolveria “com cheiro bom de perfume francês”.
Para atender a Isabelle Huppert, a equipe do Festival do Estação Botafogo designou como seu motorista o cinéfilo Beto Santiago. O rapaz a levou a Búzios e ela conheceu a Pousada do ator (e também cinéfilo) argentino-brasileiro Mario José Paz. Até aí, nada demais. Claro que Huppert não repetiu, em fotos, as poses sensuais de sua conterrânea Brigitte Bardot, na década de 60, na mesma Búzios. Como se vêz, é difícil arrumar excentricidades no cotidiano da “diva cabeçuda”. Tanto que Marcelo batizou o texto 63 com título revelador: “Uma atriz incomum, embora comum”.
Tão comum, quanto a história que Beto Santiago contou ao autor de “Eu que Amava Tanto o Cinema”: a atriz francesa que ele levaria, junto com a filha Lolita, a Búzios, o surpreenderia com gesto dos mais banais. Ao entrar em seus aposentos no hotel carioca que as hospedaria, a jovem mãe levou a filha ao banheiro. Queria que a menina visse que, durante a descarga sanitária, a água rodava ao contrário no Hemisfério Sul. Diferente portanto, da Europa, no Hemisfério Norte.
Agora voltemos ao tempo presente. Nesse ano de 2023, o do septuagenário da atriz, ela está presente em telas brasileiras, espalhadas pelos cinemas de arte de todo o país, com quatro filmes: o delicioso “O Crime é Meu”, de François Ozon, o inquietante “A Sindicalista”, de Jean-Paul Salomé, o cabeçudinho “A Vida sem Ele”, de Laurent Larivière, e “EO”, de Skolimovsky. A “diva cabeçuda” não descansa.
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