“O Crime É Meu”, de François Ozon, reúne estrelas francesas em comédia feminista que homenageia o cinema

Por Maria do Rosário Caetano

François Ozon não descansa. Aos 55 anos, depois de boa quantidade de curtas e médias-metragens, ele dirigiu 22 longas-metragens. Nessa quinta-feira, 6 de julho, o mais novo deles chega aos cinemas brasileiros – “O Crime É Meu” (Mon Crime), um imenso sucesso de público e de crítica em sua França natal.

O filme, baseado em peça de Louis Verneuil e Georges Berr, escrita na década de 30 do século passado, fez jus a cinco estrelas da Positif, quatro do comunista L’Humanité e do direitista Le Figaro. Mesma cotação dada por Band à Part e pela descolada Les Inrock. O sartreano Libération lhe atribuiu três. Cahiers du Cinéma fez cara de paisagem, pois há muito tempo não vê Ozon como digno de figurar no olimpo dos “autores”.

O público amou “Mon Crime” incondicionalmente. Mais de um milhão de franceses foram assisti-lo. Isto num tempo pós-pandêmico e de hegemonia do streaming. Presença tão significativa de espectadores transformou “O Crime É Meu” em um dos maiores sucessos da carreira de altos e baixos do diretor homoafetivo, admirador de Fassbinder, de quem filmou “Gotas de Água sobre Pedras Escaldantes” e recriou “Peter Von Kant” (“As Lágrimas Amargas de Petra von Kant”). Ozon, um workaholic contumaz, vinha de safra de bilheterias modestas.

“Mon Crime” resultou em deliciosa comédia feminista e metalinguística. Duas mulheres vivem juntas em pequenina mansarda em Paris. Dividem a cama, pois não têm recursos, nem espaço, para que cada uma tenha seu leito. Há uma vantagem: no frio, uma aquece a outra. Uma delas é Madeleine Verdier, atriz sem sucesso e sem talento (interpretada pela louríssima Nadia Tereszkiewscz). A outra é a advogada Pauline Mauléon, também sem reconhecimento profissional (a lindíssima e brejeira Rebbeca Marder, revelação de “Uma Garota Radiante”).

Uma terceira mulher tem papel de destaque no filme: a atriz Odette Chaumette, que a genial e veterana Isabelle Huppert encarna de forma iluminada, com imensos cabelos cor-de-fogo e roupas extravagantes. E plena de auto-referências. Afinal, ela é convidada a interpretar a mãe da jovem Madeleine, mas negocia (para esconder o passar dos anos) o papel de irmã mais velha. Isso numa encenação teatral dentro do filme.

O teatro, aliás, é a fonte absoluta do abilolado e amoral “Mon Crime”. Ozon adaptou e atualizou comédia de vaudeville, que Verneuil e Berr escreveram há quase 100 anos. E que dois diretores norte-americanos já haviam transformado em screwball comedy, cujo paradigma se encontra em “Levada da Breca” (Howard Hawks, 1938). “Mon Crime” foi levado às telas primeiro por Wesley Ruggles (“True Confession”, 1937), com a belíssima Carole Lombard no papel da atriz-protagonista, depois por John Berry (“Cross my Heart”, 1945).

Ozon, que abraçou o ecletismo (seus últimos filmes vão dos pecados da Igreja ao amor homoafetivo num verão calorento, passando pela eutanásia), deve ter se colocado a seguinte questão: como atrair o público nestes tempos de salas vazias?

Quem melhor que Verneuill (1893-1952) e suas comédias de boulevard (ou malucas, como preferem os norte-americanos) para dialogar com os espectadores? A Gaumont bancou a produção de quase 14 milhões de euros. O resultado foi certeiro.

Ninguém espere, pois, um filme de temática mais densa como “Tudo Vai Bem”, “Graças a Deus”, “Frantz” ou “Sob a Areia”. “O Crime É Meu” é um adorável passatempo, um ato de amor ao próprio cinema. As citações se multiplicam. Quem prestar atenção num cartaz exibido com gosto na fachada de sala de cinema parisiense verá o nome de Billy Wilder somado ao de Danielle Darriex, diva do cinema francês da era clássica. O filme – “Mauvaise Graine” (“Semente do Mal”, 1934) – foi realizado pelo genial jornalista (sua profissão na época) austríaco, quando, em fuga do nazismo triunfante, rumava para os EUA. Fez, antes de chegar à meca do cinema, onde seria consagrado, um pit stop em Paris e estreou no longa-metragem. Antes fora um dos criadores de “Gente de Domingo”, projeto coletivo assinado pela dupla Siodmak e Ulmer (Alemanha,1929).

Cabe a Isabelle Huppert o melhor momento metalinguístico do filme. Star da era muda, ela está desesperada em busca da fama perdida. Quando é reconhecida por ter estrelado determinada produção, ela anuncia triunfante: “Fiz mais de cem filmes, com Feuillade, Gance e Alice Guy”. Claro que, numa screwball feminista, não poderia faltar a pioneira Alice Guy, hoje redescoberta e revalorizada.

O filme fará referência também a Violette Noizière, personagem da crônica policial francesa, que cometeu parricídio no tempo histórico de “Mon Crime” (a década de 1930), e seria tema de vigoroso drama policial de Claude Chabrol (1978), protagonizado por uma então jovenzinha Isabelle Huppert, atriz-fetiche (ao lado de Sthéfane Audran) do grande nome da Nouvelle Vague. Louis Feuillade, criador de “Les Vampires”, Fantômas e Musidora (recém-homenageados por Olivier Assayas na série “Irmã Vep”) e Abel Gance (“Napoleón”) são diretores-míticos da era muda.

Outra referência cinematográfica dever passar despercebida ao público brasileiro: o acento “ch’tis” de Danny Boon, diretor (e um dos principais atores) de “A Riviera Não é Aqui” (“Bienvenue Chez les Ch’tis”, 2008). Ozon explora o acento marselhês do ricaço personagem de Boon (Palmarède), para homenagear o blockbuster francês (mais 13 milhões de espectadores), que no Brasil, lamentavelmente, não pagou nem os cartazes.

O elenco do “Mon Crime” traz, além das novatas Nadia e Rebecca e da agora septuagenária Huppert, astros franceses como Fabrice Luchini (o juiz instrutor), André Dussolier (Bonnard, um industrial milionário), Franck de Lapersonne (Monsieur Pistole) e o hilário Olivier Broche, na pele do escrivão Léon Trapu.

O filme, porém, é das mulheres, como “8 Mulheres”, outro grande sucesso comercial de Ozon. Por tratar-se de comédia maluca, a narrativa encontra soluções propositais e vertiginosas para tudo, sem buscar lógica na dura realidade. O que importa é fazer com que a engrenagem do riso funcione. E no novo filme de Ozon ela funciona por 92 minutos. Não há tempo morto. E os procedimentos do tempo histórico nada têm a ver com os anos de entre-guerras (a Mundial de 1917-19 e a de 39-45), quando a França católica não primava pelo feminismo.

O filme de Ozon traz, propositalmente, sintonia refinada com nossos dias. Todos os holofotes existem para que Madeleine-Pauline-e-Odette brilhem. E elas brilham.

 

O Crime É Meu | Mon Crime
França, 2023, 92 minutos
Direção: François Ozon
Elenco: Nadia e Rebecca Marder, Isabelle Huppert, Fabrice Luchini, André Dussolier, Dany Boon, Edouard Sulpice, Myrian Boyer, Félix Lefebvre, Michel Fau, Évelyne Buyle, entre outros
Roteiro: François Ozon e Philippe Piazzo
Distribuição: Imovision

 

FILMOGRAFIA
François Ozon (Paris, França, 15 de novembro de 1967)

2023 – “O Crime É Meu”
2022 – “Peter Von Kant”
2021 – “Tudo Vai Bem”
2022 – “Verão de 1985”
2018 – “Graças a Deus”
2017 – “O Amante Duplo”
2016 – “Frantz”
2014 – “Uma Nova Amiga”
2013 – “Jovem e Bela”
2012 – “Dentro da Casa”
2010 – “Potiche – Esposa Troféu”
2009 – “O Refúgio”
2009 – “Ricky”
2007 – “Angel”
2005 – “O Tempo que Resta”
2004 – “O Amor em Cinco Tempos”
2003 – “Swimming Pool – À Beira da Piscina”
2001 – “Oito Mulheres”
2000 – “Sob a Areia”
2000 – “Gotas de Água sobre Pedras Escaldantes”
1999 – “Os Amantes Criminosos”
1998 – “Sitcom – Nossa Linda Família”

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