Gramado apresenta “Ângela”, “Retratos Fantasmas” e exibe poderosa safra da história do Cinegautchê
Foto: Cena de “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça
Por Maria do Rosário Caetano
A quinquagésima-primeira edição do Festival de Cinema de Gramado começa nessa sexta-feira, 11 de agosto, com exibição de filmes realizados por estudantes-participantes do Projeto Educavídeo, e prossegue, no sábado, ainda em clima inaugural, com a apresentação, em caráter hors concours, do longa documental “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça. O filme pernambucano se fará seguir do primeiro concorrente ficcional ao Troféu Kikito – “Ângela”, de Hugo Prata, sobre tema explosivo – o feminicídio.
Em 1976, o playboy Doca Street matou a namorada Angela Diniz, conhecida, por sua beleza, como a “Pantera de Minas”. Conseguiu, em 1979, condenação de apenas dois anos, escorado na tese de seu advogado: assassinara, sim, mas em “legítima defesa da honra”, poderoso trunfo do machismo tóxico. Hoje, esse discurso não cola mais. Até o STF o destruiu como argumentação jurídica, em decisão histórica, mesmo que tardia, tomada no começo desse mês de agosto.
A “defesa da honra” pautou a década de 1970 e as seguintes, mas, felizmente, veio a grita das feministas que marcharam sob o slogan “Quem Ama Não Mata”. Foi tão intensa a luta, que novo julgamento de Doca Street aconteceria em 1981. Aí, sim, o assassino seria condenado à pena de 15 anos. Para o papel de Ângela foi escalada a atriz Isis Valverde.
Até dia 19 de agosto, o Festival de Gramado vai exibir 17 longas-metragens, sendo seis gaúchos. Um, sobre um ícone do estado, o escritor, humorista (e saxofonista nas horas vagas) Verissimo. Dirigido pela gaúcha Luzimar Stricher, o longa, de duas horas de duração (e nome objetivo e direto – “Luis Fernando Verissimo, o Filme”) comporá o fecho de ouro da competição (sexta-feira, 18 de agosto, às 17h30).
Econômico nas palavras e gestos – vide seu poder de síntese na magistral crônica “Nossa Senhora dos Destoantes” – Verissimo será visto também pelo olhar de Jorge Furtado, Ziraldo, Claudia Laitano, Edgar Vásques, Chico Caruso, Zuenir Ventura, Hiran Goidanich, o Goida, e pelos saudosos Jô Soares e Paulo Caruso.
Outra produção do Cinegautchê – “Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre”, de Boca Migotto – chegará ao público (na terça-feira, dia 15, às 14h) como espécie de manifesto do momento de efervescência vivido pelo audiovisual sul-riograndense. Na origem do filme estão uma tese de doutorado, defendida por Boca Migotto na UFRGS, e um livro, lançado ano passado.
Boca relembra o processo de criação do filme: “após ter publicado a adaptação de minha tese de doutorado em livro (“Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre – ou Como o Cinema Imaginou a Capital dos Gaúchos”) resolvi realizar um segundo produto, também originado de minha pesquisa – um longa documental”.
Nasceu, então, o filme “Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre”, que empreende “recorte de aproximadamente 40 anos do cinema gaúcho, tendo o longa em Super-8 ‘Deu pra ti Anos 70’, de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti (1981), como ponto de partida”. Este marco do moderno cinegautchê inaugura – na compreensão de Migotto – “a ruptura do incipiente cinema urbano porto-alegrense com o cinema que ficou conhecido como de ‘bombacha e chimarrão’, termo cunhado por Tuio Becker”.
Antes de mais nada é preciso lembrar que o “cinema de bombacha”, que teve em Teixeirinha seu mais poderoso símbolo, era ligado ao pampa e a seu folclore. O doutor em cinema entende que “a ‘Geração Deu pra Ti’ empenhou-se em realizar filmes urbanos, que destoassem completamente da figura do gaúcho do Pampa e da Fronteira”. Jorge Furtado tornar-se-á o nome mais conhecido desse período.
“Com a chegada da ‘Novíssima Geração’, por volta de 2016, quase quatro décadas depois do filme de Giba e Nadotti” – prossegue o autor da tese, livro e filme – “herdeiros da ‘Geração Deu pra Ti’ estabeleceriam diálogo com o gaúcho (pampeano), através de filmes como ‘Rifle’, de Davi Pretto e ‘Mulher do Pai’, de Cristiane Oliveira”.
Se, por um lado, “a ponte entre a capital e o interior do estado foi reestabelecida” – analisa Migotto – “da mesma forma, filmes dessa Novíssima Geração passaram a representar, nas telas, uma Porto Alegre bem menos convidativa que aquela constituída pelas câmeras super-8 da ‘Geração Deu pra Ti’”.
O documentarista cita exemplos que ilustram esta nova visão: “’Castanha’ (2014), do mesmo Davi Pretto, ‘Beira-mar’ (2015) e ‘Tinta Bruta’ (2018), ambos de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon” e, de certa forma, ‘Ainda Orangotangos’ (2007), de Gustavo Spolidoro, longa-metragem construído em plano sequência.
Em sua tese de doutorado, Boca Migotto tentou entender o “estado esquizofrênico” onde nasceu, cresceu e tornou-se cineasta: “Em nenhum outro lugar do país é possível vencer a fronteira em apenas um passo e isso diz muito sobre os gaúchos e sobre o cinema realizado nessas paragens. De um lado estão a Argentina, o Uruguai e toda a ‘latinoamérica’”; do outro, “o Brasil e, no meio, esse ‘estado esquizofrênico’ que, há séculos, busca compreender a si mesmo”. Não poderia ser diferente com o Cinegautchê: “nessas andanças, o cinema gaúcho aparece como um espelho que reflete os inúmeros conflitos deste Brasil ora tropical, ora ‘casi platino’”.
Para construir sua narrativa documental, Boca Migotto entrevistou 59 diretores, atores, produtores, críticos cinematográficos e pesquisadores. E utilizou imagens de dezenas de filmes realizados no “estado esquizofrênico” nas quatro últimas décadas.
Entre os entrevistados destacam-se Ana Luiza Azevedo, Liliane Sulzbach, Nora Goulart, Otto Guerra, José Pedro Goulart, Werner Schunemann, Tabajara Ruas, Bruno Polidoro, Fabiano de Souza, Beto Rodrigues, Hique Montanari, Milton do Prado, Rogério Ferrari, Eduardo Wannmacher, Nélson Diniz, Leonardo Machado (in memoriam) e Zeca Brito. E, claro, Jorge Furtado, Giba Assis Brasil, Gustavo Spolidoro e os autores dos filmes citados como obras referenciais, realizadas pelos que seguiram a picada aberta pela Geração ‘Deu Pra Ti”.
Além do filme sobre Verissimo (selecionado para a competição nacional) e de “Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre” (presente no Gauchão), o estado mostrará o notável momento cinematográfico que está vivendo com mais quatro longas-metragens: “Céu Aberto”, de Elisa Pessoa, “Hamlet”, de Zeca Brito, “O Acidente”, de Bruno Carboni, e “Sobreviventes do Pampa”, de Rogério Rodrigues.
E que momento é este?
É o que estimulou o comando de Gramado a transformar-se em real vitrine da produção nacional e local. Este ano, a festa de encerramento – transmitida pelo Canal Brasil e pela quase cinquentenária TV Educativa-RS (noite de sábado, 19 de agosto) – somará as láureas do longa gaúcho, do documentário e da ficção brasileiros. Os curtas gaúchos serão premiados no domingo, 13 (com transmissão pela TVE e TV Assembleia). Já os curtas serão laureados em outra festa e dia (sexta-feira, 18).
Para comprovar a efervescência do cinema gaúcho, o crítico Marcus Mello, da revista Teorema, fez questão de lembrar que, na primeira semana de agosto (quinta-feira, dia 3), foram lançados de uma vez, nos cinemas, três filmes gaúchos: “Casa Vazia”, de Giovani Borba, “Depois de Ser Cinza”, de Eduardo Wannmacher, e “Despedida”, de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes. Para o próximo dia 24 está programado o lançamento comercial de “O Acidente”, de Bruno Carboni.
Há que se lembrar, ainda: este é o momento que registrou – além do lançamento do livro de Boca Migotto – a edição de obra da maior importância – “50 Olhares da Crítica sobre o Cinema Gaúcho”. Profissionais da reflexão cinematográfica e pesquisadores uniram-se para analisar 50 filmes que marcaram a história do Cinegautchê. Não há experiência similar, nem tão bem-sucedida, em nenhum outro estado da Federação Brasileira.
Na mostra de longas gaúchos somam-se documentários e ficções. “Céu Aberto”, de Elisa Pessoa, registra o cotidiano de Andriele, adolescente criada na zona rural de Dom Pedrito, filha de pequenos proprietários rurais. O filme acompanha as mudanças da personagem, seus desejos e motivações dos 13 aos 17 anos. No elenco estão Andriele Rodrigues Soares, Sandra Mara Gularte Rodrigues e Alfeu Vargas Soares.
“Hamlet”, do produtivo Zeca Brito, tem o ano de 2016 como tempo histórico. Em meio a protestos políticos no Brasil, estudantes secundaristas se unem aos movimentos sociais, tomam as ruas em passeatas, protestos e reivindicações. Cobram o fim da desigualdade e denunciam manobras políticas. Diante de iminente golpe de estado, o jovem Hamlet tem de enfrentar seus maiores fantasmas. E encarar sua transformação em adulto e buscar seu lugar na sociedade.
É nesse contexto que Zeca Brito se pergunta: o jovem Hamlet deve ‘agir ou não agir’? Enquanto as bombas explodem e os sentimentos transbordam, o mundo exterior parece estar em ruínas. É hora de investir na cidadania? De deparar-se com a chegada da maturidade? De ser ou não ser? No elenco estão Fredericco Restori e Marcelo Restori. Em participações especiais, Jean-Claude Bernardet e Dilma Rousseff.
“O Acidente”, que Bruno Carboni lançou no Cine Ceará, é uma ficção representada por Carol Martins, Carina Sehn, Luis Felipe Xavier, Gabriela Greco e Marcello Crawshaw.
Uma ciclista Joana sofre estranho acidente. Ela é ‘carregada’ no capô do carro, sai ilesa e decide esconder o ocorrido. Porém, um vídeo do acidente viraliza na internet e a jovem se vê obrigada a prestar queixas à polícia. Aos poucos, Joana começa a se envolver na vida da família que a atropelou.
“Sobreviventes do Pampa”, de Rogério Rodrigues é um documentário que reflete sobre a degradação da natureza. “Quando um bioma apresenta mais da metade de sua área nativa devastada” – pondera o realizador – “as respostas para salvá-lo podem estar nas vozes, historicamente silenciadas, dos povos e comunidades remanescentes, há séculos, deste mesmo território”.
Confira a lista dos filmes concorrentes:
Longas-Metragens Brasileiros (ficção)
. “Ângela”, de Hugo Prata (SP)
. “Mais Pesado é o Céu”, de Petrus Cariry (CE)
. “Mussum, o Filmis”, de Silvio Guindane (RJ)
. “O Barulho da Noite”, de Eva Pereira (TO)
. “Tia Virgínia”, de Fábio Meira (RJ)
. “Uma Família Feliz”, de José Eduardo Belmonte (PR)
Longas-Metragens Documentais Brasileiros
. “Luis Fernando Verissimo, O Filme”, de Luzimar Stricher (RS)
. “Roberto Farias – Memórias de um Cineasta”, de Marise Farias (RJ)
. “Memórias da Chuva”, de Wolney Oliveira (CE)
. “Anhagabaú”, de Lufe Bollini (SP)
. “Da Porta pra Fora”, de Thiago Foresti (DF)
Homenagens nacionais
. Laura Cardoso e Lea Garcia: Troféu Oscarito
. Lucy Barreto: Troféu Eduardo Abelim
. Alice Braga: Kikito de Cristal
. Ingrid Guimarães: Troféu Cidade de Gramado
Homenagens regionais
. Vera Lopes (atriz) – Troféu Sirmar Antunes
. Clemente Vascaíno (ator) – Troféu Leonardo Machado
. Valéria Barcellos (atriz e cantora), Glênio Póvoas (pesquisador) e Jorge Henrique “Boca” (fotógrafo) – Prêmios Sedac-Iecine O Futuro Nos Une
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