“Retratos Fantasmas”, manifesto de amor ao cinema, e “Angela”, sobre a “Pantera de Minas”, lotam o Palácio dos Festivais
Foto: Elenco do longa-metragem “Angela” com o diretor Hugo Prata © Edison Vara/Agência Pressphoto
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado-RS
Gramado viveu uma noite de amor ao cinema e à vida. Com o Palácio dos Festivais lotado e termômetros marcando quatro graus, as imagens de “Retratos Fantasmas”, longa documental (com inserções ficcionais) do pernambucano Kleber Mendonça Filho, bateram fortes na tela. Em sua quinta participação no festival gaúcho, KMF o fez na condição de autor de filme inaugural, em caráter hors concours (mesma condição de “Aquarius” e “Bacurau”). Antes ele participara de mostra especial, com “Crítico”, e da competição, com “O Som ao Redor”.
Depois de dois curtas-metragens – uma ficção científica indígena-ecológica (“Yãmí Yah-Pá – Fim da Noite”, de Vladimir Seixas) e uma love story black (“Deixa”, de Mariana Jasper) –, a 51ª edição de Gramado apresentou o primeiro longa ficcional de sua competição ao Kikito, o drama criminal “Angela”, de Hugo Prata. Trata-se de recriação de um dos mais rumorosos casos de relacionamento tóxico, seguido de feminicídio, de nossa crônica social e judiciária. Nas vésperas do Réveillon de 1977, o playboy Doca Street assassinou, com três tiros no rosto e um na nuca, sua namorada, a socialite mineira Angela Diniz.
“Retratos Fantasmas” é um filme de imensas qualidades, que só faz comprovar o talento que KMF demonstrara em seus curtas e com sua estreia no longa-metragem (“Crítico”). E reafirmara em suas três ficções – os notáveis “ O Som ao Redor” e “Aquarius”, seguidos de “Bacurau”, parceria com Juliano Dornelles.
O quinto longa de KMF terá pré-estreias pagas em diversas capitais brasileiras a partir dessa quinta-feira, 17 de agosto, e estreia nacional no dia 24. Quem for assisti-lo vai deparar-se com filme confessional, de cinefilia orgânica, ritmo vertiginoso e narração (em primeira pessoa, do próprio cineasta) composta com frases sintéticas e reveladoras.
KMF dividiu “Retratos Fantasmas” em três partes – “O Apartamento de Setúbal”, “Os Cinemas do Centro do Recife” e “Igrejas e Espíritos Santos”. No primeiro segmento, ele relembra sua juventude vivida em trecho litorâneo de sua cidade natal, a capital pernambucana, ao lado da mãe, historiadora, e do irmão, futuro arquiteto. Setúbal é um trecho do badalado bairro de Boa Viagem.
Com profusão de imagens domésticas e fragmentos de seus curtas (e do longa “O Som ao Redor”), KMF irá nos revelar o papel desempenhado pelo apartamento materno em seu processo criativo. Para, em seguida, mergulhar na história dos cinemas Art Palácio (criado pela UFA germano-nazista), o Moderno, o Veneza e o São Luiz. As três primeiras salas foram destruídas pela migração do capital do centro recifense para os shopping-centers e pela voragem do tempo. O São Luiz resiste como espaço-cult.
Em momento marcante do filme, KMF evocará o lixo cinematográfico despejado pelos exibidores de grandes produções norte-americanas (vindas das “majors”) nos fundos de suas edificações. Um ex-herói, Paulo Barbosa, que ajudara a evitar que grande incêndio em navio se alastrasse, com imprevisíveis consequências, pela cidade do Recife, tornara-se catador e vendedor de cartazes, fotos de cena e outros rejeitos cinematográficos. Para vendê-los aos transeuntes.
Com fina ironia, o ‘narrador-rememorador’ comentará sobre o poderoso peso simbólico do lixo hollywoodiano ali despejado: “estrangeiras pareciam ser as distribuidoras LSR (Luiz Severiano Ribeiro), Cinédia e Embrafilme”. Embora fossem brasileiras e atuassem em território nacional.
Para imantar olhares e afetos, o diretor pernambucano colhe imagens altamente cosmopolitas (o casal estadunidense Janet Leigh e Tony Curtis visitando praia do Recife com as filhas pequenas) e imagens de outrora (essencialmente nordestinas) como as do pioneiro paraibano Machado Bittencourt. Este assinou registro majestoso do Carnaval do Recife, no tempo dos corsos (década de 1920), para indagar em texto-legenda: “qual seria o maior carnaval do mundo – o de Nice (França), o do Rio ou o do Recife?”
Na trilha sonora de “Retratos Fantasmas” somam-se frevos de Nelson Ferreira; “Happy End” do inventivo Tom Zé; “Batalha de Guararapes”, composição do maestro César Guerra Peixe; bagaceira cigana de Sidney Magall, temas de filmes do próprio KMF e o jazz do trumpetista Herb Apert. Como o próprio diretor lembrou no debate do filme, ele se preocupa (e se ocupa) muito com as diversas camadas sonoras de suas criações cinematográficas.
Registre-se: o pernambucano havia guardado a caliente “O meu Sangue Ferve por Você” para sua próxima ficção. Mas acabou entendendo que ela embalaria muito bem sua chegada (e do seu quinto longa) ao centro histórico e aos velhos cinemas recifenses. Prometeu arrumar outra composição assemelhada para o novo projeto. Que deve chamar-se “Agente Secreto” e ter o astro Wagner Moura como protagonista.
A terceira e última parte do longa documental de KMF (ele prefere a definição “filme-ensaio”, embora tema conotação pedante e cabeçuda de “obra uspiana”) é dedicada à substituição dos cinemas por igrejas evangélicas. Mais uma vez, o cineasta recorre à ironia. Igreja anglicana tradicional do Recife daria lugar a um grande cinema, nos anos 1950. Com o passar das décadas, final do século XX, o catolicismo perderia espaço para diversas denominações evangélicas. E, nessa profunda mudança, cinemas (que seriam aproveitados até com suas velhas telas) transformar-se-iam em palcos privilegiados de pregadores do Evangelho (e de seus devotos seguidores).
A sequência final de “Retratos Fantasmas”, que vem causando frisson, não será revelada aqui para não irritar a infantaria anti-spoiler. Mas há que se lembrar que ela justifica, como o fecho de um soneto, a fantasmagoria que acompanha (e fertiliza) os 92 minutos de sons e imagens que compõem o segundo documentário de KMF.
A Pantera de Minas – Duas imagens ficaram guardadas na memória de quem leu as páginas policiais da imprensa brasileira a partir de 30 de dezembro de 1976: a da bela Angela Diniz, vítima de feminicídio, e a de Doca Street, o assassino, que, sob julgamento, contava com a defesa poderosa de Evandro Lins e Silva, um dos maiores advogados do país. Com sua poderosa retórica – sedimentada em argumento falacioso e machista (“legítima defesa da honra”) –, o jurista convenceria os integrantes do júri a darem modestíssima pena ao réu: dois anos.
As feministas, com o slogan “Quem ama não mata”, motivaram novo julgamento. Doca Street foi condenado a 15 anos de detenção. Essa é a história de um crime que não encontrará mais guarida no Supremo Tribunal Federal, que – com 50 anos de atraso – jogou por terra o argumento hediondo.
O filme de Hugo Prata, que anos atrás participou do Festival de Gramado com “Elis” (sobre a grande cantora brasileira), não tem nenhuma cena de tribunal. Sua trama se passa durante os quatro meses de relacionamento da “Pantera de Minas” com Doca Street. Tudo começa em agosto de 1976, quando a bela mineira de 32 anos (vivida por Ísis Valverde), namorada do colunista social Ibrahim Sued, de 42 (Gustavo Machado), vai a uma festa na casa da colunável Adelita (Carolina Manica), companheira de Doca Street.
Uma festa de arromba, em mansão idem, sela a atração de Street pela bela mineira, namorada do amigo Ibrahim. Ela é a estrela radiante da noite, dança com seu belíssimo tomara-que-caia e desperta olhares de cobiça. Dali em diante, os quatro amigos irão fazer passeio conjunto à fazenda de Adelita. A atração cresce e o casal Angela-Doca, em breves dias, deixaria seus pares para viver tórrida (e tóxica) história de amor em Búzios, onde a “Pantera” compraria uma casa de praia.
Em tempos de discothéque, Angela, a rainha das pistas, desquitara-se do marido mineiro. Que cedera o desquite desde que ela deixasse, sob a guarda dele, os três filhos pequenos. O novo namorado da “Pantera de Minas” adorava caçar elefantes em safáris africanos e tinha caráter possessivo. Mesmo assim, entre brigas e reconciliações, eles viveriam apenas quatro meses juntos. O final seria dos mais trágicos.
No debate do filme, em Gramado, o cineasta Hugo Prata e sua roteirista Duda de Oliveira, explicaram a opção pelos quatro breves meses que uniram o casal Angela-Doca. “Com nossa protagonista e razão de ser do filme (Angela) morta, não havia porque contar a história pelo ponto de vista de Doca Street, o assassino, nem de seu advogado”.
O que o público verá, ao longo de 110 minutos, é a vida de Angela e Doca Street (Gabriel Braga Nunes) em tórridas cenas de sexo, embaladas por frenético rock n’roll. E também mostrará o casal recebendo amigos encarnados em dois personagens-síntese de várias de suas amizades, portanto fictícios, interpretados por Bianca Bin e Emílio Orciollo Neto. Ou Angela ao telefone em conversas com a mãe (Chris Couto). Ou numa breve visita a BH, para encontrar os filhos, levados pela avó a uma igreja.
“Angela” será lançado em 200 salas, no dia 31 de janeiro. Em circuito semelhante ao de “Elis”, que vendeu 570 mil ingressos. Os tempos são outros, mas Bruno Wainer, da Distribuidora Downtown, acredita que “passada a febre Barbie-Oppenheimer” haverá acolhida a um filme brasileiro. Um drama com pitadas erótico-feministas, capaz de romper o trágico ciclo agravado pela era Bolsonaro, que exterminou a Cota de Tela, e pela pandemia.
Dois curtas – Os primeiros curtas da competição nacional causaram boa impressão. O primeiro deles é uma inventiva ficção científica indígena-ecológica (“Yãmí Yah-Pá – Fim da Noite”, de Vladimir Seixas) e tem como protagonista a atriz Tukano-Tariana Rosa Peixoto, que conhecemos como coprotagonista de “Febre”, filme de Maya Da-Rin.
Rosa interpreta uma jovem indígena que busca seus parentes num mundo pós-apocalíptico. Filmado em cenários dos diversos Brasis, compostos em impressionante e desoladora paisagem, o filme tem imenso impacto visual e temático. Deve germinar, em breve, um longa-metragem.
Já “Deixa”, de Mariana Jasper, é uma surpreendente história de amor entre a personagem Mariana (a veterana Zezé Motta), que vive tórrida noite de sexo com um jovem (Dan Ferreira), enquanto aguarda a (indesejada) chegada do marido, que acaba de cumprir pena carcerária.
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