Gramado aplaude, em projeção aberta, o magistral trabalho de Vera Holtz em “Tia Virgínia”

Foto: Elenco do longa-metragem “Tia Virgínia” © Edison Vara/Agência Pressphoto

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado-RS

A atriz Vera Holtz, protagonista absoluta do longa “Tia Virgínia”, de Fábio Meira, foi aplaudida em projeção aberta e por três vezes, na segunda noite da competição de longas ficcionais do Festival de Gramado.

O segundo filme do goiano-carioca Fábio Meira (o primeiro foi “As Duas Irenes”, 2017) compõe o miolo de Trilogia Familiar, que ele espera concluir em breve. “Escrevi esse roteiro por 13 longos anos, na verdade ao longo de meus 43 anos de vida”, contou ele no debate de “Tia Virgínia”. Afinal, em cada cena “estão meus parentes, minha mãe, minha avó, minhas tias e tios. Tudo que escutei na minha convivência com eles, da infância à maturidade. Creio que bastam estes três filmes para encerrar esse mergulho da memória familiar”.

“Tia Virgínia” mostra o encontro de três irmãs – Virgínia, Vanda e Valquíria, vividas por Vera Holtz, Arlete Salles e Louise Cardoso – num dia de Natal, no casarão familiar, em cidade interiorana mineira. A Tia que dá nome ao filme cuida da mãe inválida (Vera Valdez), com colaboração de doméstica grávida (Amanda Lyra). Na juventude, Virgínia sonhou ser atriz, mas acabou fechada no casarão, cercada de retratos, relíquias e majestoso relógio, implacável marcador do tempo que passa.

As irmãs, que constituíram famílias pelo casamento, chegam para a visita acompanhas de filho médico (Valquíria) e de marido e filha (Vanda). O que veremos ao longo de 97 minutos, é um drama, com tempero de comédia, em diálogo com Federico Garcia Lorca (“A Casa de Bernarda Alba”, citada de forma explícita na trama), Tchecov (“As Três Irmãs”), Bergman (sem o existencialismo nórdico) e até Billy Wilder (de “Crepúsculo dos Deuses”).

A cena mais aplaudida em Gramado mostra Tia Virgínia maquiadíssima e trajando vestido-show. Com ele, protagonizará um show de verdade, pessoal e dramático. Na vitrola, Virgínia colocará, em alto volume, gravação do “Bolero”, de Ravel. E iniciará sua performance. As irmãs começam a censurá-la, exigem que abaixe o volume da vitrola. Rebelada e decidida, a tia solteirona aumentará ainda mais o volume. E continuará dançando. O público foi ao delírio e as palmas soaram calorosas.

Dificilmente alguém tirará de Vera Holtz, de 70 anos, o Troféu Kikito. Ela está arrebatadora, dramática, cômica, às vezes patética (como a Norma Desmond wilderiana!). Sua performance, realmente notável, encontra paralelo em desempenhos geniais como o de Fernanda Montenegro em “A Falecida”, Darlene Glória (em “Toda Nudez Será Castigada”) e Marcélia Cartaxo (“A Hora da Estrela” e “Pacarrete”).

Todo elenco de “Tia Virgínia” brilha (os veteranos Arlete Salles, Louise Cardoso e Antônio Pitanga, assim como os jovens Daniela Fontan, Amanda Lyra e Iuri Saraiva). A fotografia de Leonardo Feliciano (o mesmo do premiadíssimo “Marte 1”), os figurinos de Rô Nascimento (destaque absoluto para o vestido-show de Tia Virgínia) também encantam. A direção de arte de Ana Mara Abreu valoriza objetos dos velhos casarões interioranos (muitos pertencentes à família do próprio diretor). A montagem de Karen Ackerman, que sequenciou trabalho iniciado por Virgínia Flores, é perfeita. O ritmo do filme é aconchegante (e desconcertante nos momentos certos).

A trilha sonora incidental de César Camargo Mariano se enriquece com duas canções de Milton Nascimento (“Um Gosto de Sol” e “Cais”), exploradas com grande efeito dramático. E, claro, com o “Bolero”, de Ravel, que combina como luva com a performance-ruptura de Tia Virgínia. Ali ela dá adeus a seu imobilismo e passado castrador.

A produtora do filme de Fábio Meira, a incansável Janaína Diniz Guerra, assegurou, durante o debate gramadiano, que o filme mobilizou “modestos recursos financeiros”. Que a equipe fez malabarismos para otimizá-los. O fato da narrativa ser concentrada num casarão – locação praticamente única (fora a sequência final, estradeira à moda de Chaplin-Carlitos, em “Tempos Modernos”) – ajudou na montagem da arquitetura econômica do filme. Que contará, em seu lançamento (ainda sem data definida), com a colaboração do produtor-associado Thiago Macêdo Correia, um dos fundadores do coletivo mineiro Filmes de Plástico.

Dois curtas do interior de Minas Gerais (Cordisburgo, terra de Guimarães Rosa, e Itabira, terra de Drummond) compuseram a programação da segunda noite das competições de Gramado – “A Última Vez que Vi Deus Chorar”, quinto curta de Marco Antônio Pereira, e “Camacho”, de Bruno Alvarenga.

“A Última Vez…” narra, poeticamente, mais uma estranha história engendrada pelo cordisburguense Marco Antônio. Uma mulher, de nome Maria (vide a referência bíblica) engravida de forma misteriosa. Ela é trabalhadora rural e tem uma irmã (cega), que depende de seus cuidados. Sensível às dores do mundo, ela enfrentará a gravidez sob fortes dores emocionais.

Já “Camaco”, nome misterioso, começa como um épico documental sobre os males causados pela metalurgia às montanhas Itabiranas. Depois, usa dispositivo que despotencializa sua ambição inicial. Em espaço físico único, moradores da cidade de Drummond revelam linguagem particularíssima criada por eles (quase um dialeto) para comunicação grupal, o camaco. Trata-se de técnica, que consiste em inverter sílabas, de forma que só iniciados no “idioma” o entendem (decifram).

OS PREMIADOS DO GAUCHÃO

Com transmissão ao vivo pela TV Educativa e pela TV Assembleia, Gramado realizou na noite de domingo, 13 de agosto, a entrega de seus primeiros troféus – o Prêmio Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Além dos filmes laureados (lista abaixo), houve homenagens especiais à atriz e cantora Vera Lopes (Troféu Sirmar Antunes) e ao ator Clemente Viscaíno (Troféu Leonardo no Machado). Houve, também, entrega do Prêmio Sedac-Iecine “O Futuro nos Une” à atriz trans Valéria Barcellos (hoje no elenco da novela “Terra e Paixão), ao pesquisador Glênio Póvoas e ao fotógrafo Jorge Henrique “Boca”.

Todos os laureados pronunciaram discursos substantivos e sintéticos. Como a maioria deles é de origem afro-gaúcha, o tema recorrente girou em torno da pluralidade (diversidade) das gentes que compõem a população gaúcha.

Curtas Gauchos premiados com o troféu Prêmio Assembléia Legislativa – Mostra Gaúcha de Curtas © Edison Vara/Agência Pressphoto

A cantriz Vera Lopes, de “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, cantou versos de enaltecimento à imensa contribuição afro à cultura brasileira. E louvou o patrono de seu prêmio, o saudoso ator Sirmar Antunes, de imensos serviços prestados ao teatro e cinema do Rio Grande do Sul.

A artista Valéria Barcellos, também afro-gaúcha, que trajou longo vestido amarelo-vibrante, em estilo diva hollywoodiana, lembrou a alegria de ver seu nome impresso em “placa-prêmio e não numa lápide”, como “acontece com muitas mulheres transexuais”.

Glênio Povoas evocou a missão que abraçou e um dos pioneiros da prospecção de raridades cinematográficas no Rio Grande do Sul, o veterano Antônio Jesus Pfeil, descobridor do que restou de “Os Óculos do Vovô” (Francisco Santos, 1913). E agradeceu a Fatimarlei Lunardeli e a Zeca Brito, que o “tiraram do limbo” para que coordenasse a criação do Portal do Cinema Gaúcho. Essa enciclopédia virtual já soma verbetes minuciosos de 800 longas-metragens gaúchos ou de temática ligada ao Estado (caso de “Elis”, de Hugo Prata, sobre a cantora portalegrense, e “Crítico”, de Kleber Mendonça, que entrevistou também críticos gauchos).

Confira os vencedores:

. “Concha de Água Doce”, de Lau Azevedo e João Pires – melhor filme, melhor ator (Aren Gallo)

. “Colapso” – melhor atriz (Denizeli Cardoso e Gabriela Greco ), melhor direção de arte (Vanessa Rodrigues e Ricard Tavares)

. “Sabão Líquido”: melhor direção  (Fernanda Reis e Gabriel Faccini)

. “O Tempo”: melhor roteiro (Ellen Correa), melhor trilha sonora (Gabriel Araújo, Nina Fila e Malyck Badu)

. “Fiar o Vento” – melhor fotografia (Mari Moraga)

. “Messi” – melhor montagem (André Berzagui)

. “Carcinização” – melhor desenho de som (Ana Ambrosano e Mari do Prado)

. “Nau” – melhor produção executiva (Pam Hauber e Edu Rabin)

. “Centenário de Minha Bisa”, de Cristyelen Ambrozio – Prêmio da Crítica (ACCIRS)

. “Rasgão”, de Victor Di Marco e Marcio Picoli – Menção Honrosa ao filme por “aliar a narrativa cinematográfica aos recursos de acessibilidade de uma forma inventiva, inovadora e criativa”.

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