Cinemateca Brasileira promove retrospectiva completa de Tréfaut, cineasta português nascido no Brasil

Por Maria do Rosário Caetano

No último 25 de abril, data dos festejos portugueses pelo quadragésimo-nono aniversário da Revolução dos Cravos (1974-2023), o cineasta Sérgio Tréfaut mostrou e debateu aquele que, para muitos, é seu melhor documentário,  “Outro País”. O fez na aprazível sede paulistana da Cinemateca Brasileira.

Agora, na semana em que se comemora a Independência do Brasil, Tréfaut inicia, na mesma Cinemateca, mostra retrospectiva completa de sua obra, que soma 13 filmes de curta, média e longa duração.

“Outro País” (1999, 70 minutos), vibrante e arrebatador documentário sobre a quase cinquentenária Revolução dos Cravos, não poderia faltar nessa alentada retrospectiva. Ele foi programado junto aos longas ficcionais “Viagem a Portugal”, com Maria de Medeiros e Isabel Ruth, “Raiva”, com a mesma Isabel Ruth, a Fernanda Montenegro de Portugal, Leonor Silveira e Hugo Bentes, e “A Noiva”, com Joana Bernardo, o mesmo Hugo Bentes, e a almodovariana Lola Dueñas.

A estes quatro títulos, somar-se-ão dois documentários muito especiais. Ambos disputam com “Outro País” a condição de melhor filme de Tréfaut: o intimista e confessional “Fleurette”, sobre a mãe do realizador, cidadã francesa que viveu longos anos no Brasil e em Portugal, e o originalíssimo “A Cidade dos Mortos”, filmado integralmente no Cairo, capital do Egito.

Difícil escolher qual é o melhor entre estes três longas documentais, pois constituem a trinca máxima da produção fílmica de Tréfaut. Eles nasceu em 1965, em São Paulo, onde o pai, o jornalista e intelectual português Miguel Urbano Rodrigues (1925-2017), militante do Partido Comunista lusitano, viveu como exilado da ditadura salazarista.

O menino Sérgio Tréfaut permaneceu no Brasil até 1974, quando – com o triunfo da Revolução dos Cravos (que os portugueses chamam de Revolução de Abril) – sua família retornou a Lisboa. Ele tinha nove anos e falava o português doce do Brasil. Encontrou o país de seu pai em processo de imensas transformações. Mas Serginho sentia muitas saudades do Brasil, onde nascera, só queria brincar, não entendia o que se passava naquele país convulsionado pelos Capitães de Abril. Para complicar, seus pais se separaram.

O tempo passou. O menino cresceu com três pátrias – Portugal, terra de seu pai-militante, a França, pátria de sua mãe, e o Brasil, onde nascera. Dedicou-se aos estudos, aprendeu idiomas, correu os países da Europa, sem jamais esquecer o Brasil. Tornou-se curador de exposições internacionais de fotografia. Na Alemanha (Hannover) e em Portugal. Por longos anos dirigiu o DocLisboa, festival de grande prestígio, que levou à capital lusitana Nicolas Philibert, Frederick Wiseman, Jonas Mekas, Nan Goldin, Gianfranco Rosi, Alex Gibney, Rithy Pan, Marceline Loridan e os brasileiros Eduardo Coutinho e João Moreira Salles.

Aos 27 anos, Sérgio Tréfaut estreou no cinema com o curta “Alcibíades”, fábula moral protagonizada pela amiga Maria de Medeiros e pelos Pedros (Fradique e Cabrita Reis). E contando com a voz de Luís Miguel Cintra, ator presente em muitos dos elencos de Manoel de Oliveira. A fonte de inspiração de “Alcibíades” era o “Banquete”, de Platão.

O jovem estava, então, contaminado pelo cinema, que já seduzira amigas e amigos de convivência permanente, em especial Vasco Pimentel, Tereza Villaverde, Inês e Maria de Medeiros. Mas, dedicado a grandes eventos ligados à Fotografia, mal tinha tempo para buscar e acessar mecanismos de produção.

Da convivência com alguns dos maiores fotógrafos do mundo, nasceu o projeto de “Outro País”. Com imagens fixas e trechos de filmes, Tréfaut poderia contar, no final da década de 1990, o que acontecera em Portugal, nos dois anos (1974-75) do transe revolucionário comandado pelos Capitães de Abril.

Cena do documentário “Outro País”, de 1999

E o time estrangeiro que contribuiu com o filme (através de testemunhos e poderosas imagens fixas ou em movimento) era realmente formidável.

O Brasil compareceu com Sebastião Salgado e Lélia Wanick, Chico Buarque entrou com clip de um de seus hinos à Revolução dos Cravos. E Glauber Rocha como o repórter intranquilo e inquiridor de “As Armas e o Povo”, documentário livre realizado em processo de cooperativa.

Os franceses, vindos das maiores agências de fotografia europeias, aparecem em grande número (Jean Gaumy, Guy Le Querrec, Dominique Issermann, Michel Lequenne e Daniel Edinger).

Um sueco, Pea Holmquist, a todos encanta com sua paixão pela Revolução Portuguesa e, em especial, pelos habitantes de pequeno povoado, que ele revisitaria 25 anos depois dos dois anos efervescentes de Abril.

O alemão Thomas Harlan e o estadunidense Robert Kramer se destacam, também, com muito fervor. No caso de Kramer, o material colhido por Tréfaut foi tão rico, que ele utilizou uma parte em “Outro País” e, com o muito que sobrou, compôs o média-metragem “Entrevista a Robert Kramer” (2000, 35 minutos).

Como a Revolução dos Cravos tinha alma socialista e lutava pela nacionalização de empresas, pela reforma agrária em regime cooperativo e pela entrega da gestão fabril a coletivos operários, nada mais natural que chamasse atenção da URSS (União das Repúblicas Socialista Soviéticas) e de Cuba. Coube à pátria de Lênin enviar coletivo de documentaristas, que filmou a grande mudança em processo no país ibérico. Um país que saía de 40 anos de ditadura salazarista para tentar criar (e institucionalizar) um tempo de justiça e distribuição da riqueza.

As imagens de abertura do filme, arrebatadoras, foram feitas por cineastas (com assinatura coletiva) soviéticos. Cuba mandaria ao território lusitano seu maior documentarista, Santiago Álvarez.

O filme de Tréfaut causou frisson por onde passava. Venceu o Festival de Documentários de Malaposta (Portugal) e o troféu Golden Gates no Festival de San Francisco/EUA.

Menos de três anos depois, o cineasta faria aquele que ele mesmo considera seu filme mais pessoal e bem-realizado – “Fleurette” (2002, 80 minutos). Um longa documental que participou da seleta lista de competidores do IDFA, o influente Festival Internacional de Documentários de Amsterdã-Holanda. E que seria vendido para sete países e conquistaria muitas láureas (Grande Prêmio nos Les Écrans Documentaires, montagem no DocLisboa, melhor filme no Transfronteira Extrema Doc, e participaria da mostra “Directors Fortnight do MoMa de Nova York).

E quem é Fleurette?

Nós descobriremos ao longo do filme, que Fleurette foi uma linda mulher, nascida na França, que ligou sua vida a um primeiro marido (francês como ela) de extrema direita, militante do PPF, partido pró-nazista.

O primeiro trabalho da bela francesa se deu na Exposição Anti-Bolchevique, que tinha a missão de desacreditar a Revolução dos Soviets. Com o marido, ela foi viver na Alemanha de Hitler. E da união dos dois nasceria, em 1943, a primeira filha de Fleurette (Josiane, a irmã mais velha de Sérgio, o brasileiro).

Depois da derrota dos nazistas, Fleurette trabalharia como hostess no Festival de Cannes. Quando conheceu Miguel Urbano Rodrigues, a paixão brotou forte. Os dois radicaram-se em Portugal, mas a militância esquerdista dele os levou ao exílio aqui em nossos trópicos. No Brasil nasceu também o irmão mais velho de Sérgio, Miguel Tréfaut Rodrigues (que veremos no filme como seu acento brasileiríssimo). Aliás, Miguelzinho adotou para sempre o Brasil, onde vive como professor catedrático de Biologia, na USP.

Depois de muitos anos em solo brasileiro, Fleurette regressou a Portugal. Com a separação do segundo marido, tentou viver na França, mas acabou adotando, em definitivo, Lisboa como sua cidade. E foi em Lisboa, ironicamente, que ela trabalhou na Associação de Amizade Portugal-URSS. Sim, a União Soviética que fora tema da Exposição Anti-Bolchevique.

Os mais sensíveis poderão se incomodar com a dureza de algumas perguntas dirigidas por Serginho (como ela o trata) à mãe Fleurette. Ela quer manter silêncio sobre seu passado com o marido pró-nazista. Diz que pouco prestava atenção no que se passava. O filho duvida e a questiona com dura franqueza.

“Fleurette”, sobre a mãe de Sérgio Tréfaut

E, notemos, Fleurette Tréfaut já beirava os 80 anos. Mas o resultado do filme é dos mais fascinantes. E traz, na trilha sonora, canções brasileiras (de Caetano Veloso e Cartola). O cineasta é apaixonado por elas.

Depois do sucesso de “Fleurette”, Tréfaut abraçou projeto de configuração épica (“Lisboetas”, 2004, 100 minutos).  Passava, após abordar a vida doméstico-familiar, ao registro da história de imigrantes, vindos de África, do Brasil e de outros cantos, para tentar uma nova vida na capital portuguesa.

O filme, que permaneceu em cartaz ao longo de três meses em cinemas lusitanos, ganhou prêmios no IndieLisboa, no Festival de Documentários do Uruguai e no CinePort Brasil.

Tréfaut deu voz a imigrantes que transformaram Portugal na virada do século XX para o XXI, trazendo novas realidades (modos de vida, busca por direitos e vagas no mercado de trabalho, cultos religiosos diferentes do catolicismo hegemônico e, claro, o desejo de aceitação).

Aí chegou a vez do terceiro documentário a figurar na trinca dos mais festejados do realizador – “A Cidade dos Mortos” (2009, 60 minutos). Este filme constituiria imenso desafio para o “cidadão do mundo” Sérgio Tréfaut. Afinal, sem falar árabe, iria filmar cemitérios egípcios, onde residem milhares (um milhão, calcula-se) de cairotas. Sim, parte da população da capital do Egito (de mais de 10 milhões de habitantes) constrói (ou aluga) habitações cujo limite não são jardins, nem muros ou cercas vivas, mas sim túmulos. Por isso, alguns dizem que o Cairo é “a maior necrópole do mundo”.

E as moradias vizinhas aos túmulos contam com infra-estrutura formada com padarias, escolas, cafés e até um teatro de fantoches motorizado. Os bairros da “necrópole” abrigam pessoas pobres, que não têm condição de morar em áreas mais nobres.

Com imenso respeito, e sem nenhum exotismo, “A Cidade dos Mortos” dá voz a homens, crianças, moças e suas mães, que sonham para elas um futuro melhor. Que encontrem um “bom partido”. Vizinhos discutem, rapazes paqueram possíveis pretendentes e a vida segue.

O filme foi apresentado em mais de 30 países,  selecionado para o IDFA e conquistou o Grande Prêmio no Festival de Madri. Mais uma vez uma canção brasileira marca presença na trilha sonora: “Mora na Filosofia”, de Arnaldo Passos (e Monsueto Menezes), sucesso na voz do próprio Monsueto e, depois, na de Caetano Veloso.

Tamanho êxito estimulou Tréfaut a reunir materiais inéditos em um curta-metragem – “Wainting for Paradise” (2009, 20 minutos). O foco, dessa vez, recai sobre cerimônias de casamento realizadas na Cidade dos Mortos. São festas animadas, que duram vários dias, com as pessoas se movimentando entre os túmulos. A festança começa no período da manhã, quando é preparado o colchão dos noivos. E vai terminar, dias depois, com muita bebida, haxixe e música executada por profissionais. Em muitas delas, cédulas de dinheiro são jogadas para o alto e caem entre as sepulturas.

Doze anos depois, Sérgio Tréfaut faria seu primeiro longa documental 100% brasileiro – “Paraíso” (2021, 85 minutos).

Como nos últimos anos ele vem se dividindo entre um lar brasileiro e lares europeus, Tréfaut – cultor realmente apaixonado por nossa música popular – resolveu acompanhar um grupo de idosos que se reunia no Palácio do Catete, antiga sede presidencial (tempos em que o Rio era a capital da República) para ouvir belas canções de amor e dançar. De certa forma, um filme que dialogava com o Eduardo Coutinho de “As Canções” (2011).

Tréfaut passou a conviver com cariocas septuagenários, octogenários e até nonagenários, quando a pandemia do Coronavírus chegou para alterar todos os destinos. Para os idosos, então, a doença apresentou-se como ameaça avassaladora.

As filmagens foram interrompidas, até porque todos se fecharam em casa. E o espaço musical-dançante do Palácio do Catete cerrou suas portas. O documentarista fez de seu filme brasileiro um tributo a “uma geração dizimada”.

Há mais dois documentários na Retrospectiva Tréfaut – “Alentejo, Alentejo” (2014, 96 minutos) e “Treblinka” (2026, 61 minutos). O filme alentejano tem na música lusitana sua força motriz. O cineasta reuniu dezenas de grupos amadores para ensaiar cantos polifônicos. E também para que improvisassem sobre temas do presente. O “cante” alentejano nasceu em tavernas e campos e multiplicou-se por muitas gerações. O resultado, na definição de Tréfaut, é “uma viagem a um modo de expressão musical único e à paixão dos seus intérpretes”.

Depois do mergulho no Alentejo, ao sul de Portugal, o documentarista e “cidadão do mundo” Sérgio Tréfaut partiu para novo projeto internacional (como “A Cidade dos Mortos”): “Treblinka”.

Este filme nasceu como homenagem aos sobreviventes do Holocausto e a Marceline Loridan, judia que viveu o horror de Auschwitz-Birkenau e foi companheira e parceira de trabalho de Joris Ivens (1898-1989). O “holandês voador” sempre figurou entre as referências máximas de Tréfaut.

Um meio de transporte que marcou a história do cinema (soviético e estadunidense, em especial), o comboio – para os brasileiros trem-de-ferro – está no centro da narrativa.

Rússia, Ucrânia e Polônia ambientam a trama. Um “comboio fantasma” se dirige rumo a campos de extermínio. As vozes dos sobreviventes relatam o que não é possível mostrar. “Treblinka” baseia-se nas memórias de Chil Rajchman (Je Suis le Dernier Juif”).

São três as ficções do realizador luso-brasileiro-francês presentes na retrospectiva da Cinemateca Brasileira: “Viagem a Portugal” (2011, 75 minutos), “Raiva” (2018, 85 minutos) e “A Noiva” (2022, 81 minutos).

Os três passaram pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Um deles, “Raiva”, foi lançado no circuito de arte brasileiro pela Pandora, distribuidora de André Sturm.

Cena de “Raiva”, de 2018

“Viagem a Portugal” registra ficção baseada em fatos reais. Tudo acontece  ao longo de um dia, num aeroporto português. Maria, uma jovem ucraniana (Maria de Medeiros), ao desembarcar, é a única, entre os passageiros, a ser detida e interrogada. A situação transmuta-se em pesadelo, quando a polícia percebe que o homem (Makena Diop), que a espera no aeroporto é senegalês. Trata-se de imigração ilegal ou de tráfico de seres humanos? A fotografia é assinada pelo brasileiro Edgar Moura.

“Raiva” baseia-se no romance “Seara de Vento”, de Manuel da Fonseca. Com fotografia em preto-e-branco do premiadíssimo Acácio de Almeida e montagem da brasileira Karen Harley, o filme leva o cosmopolita Tréfaut de volta ao Alentejo dos anos 1950. Em campos desertos, marcados pelo vento, miséria e fome, a violência explode. Vários assassinatos a sangue frio se sucedem numa única noite.

O cineasta define seu sintético filme como “um conto noir sobre o abuso e a revolta”.

“A Noiva”, que Tréfaut lançou ano passado, é mais um projeto internacional. Uma adolescente europeia (Joana Bernardo) foge de casa para casar-se com um guerrilheiro do Estado Islâmico (Daesh). Torna-se, portanto, uma noiva da Jihad. Bastam três anos para a vida dela sofrer mudança dramática. Viúva, com dois filhos pequenos e grávida de um terceiro, ela soma apenas 20 anos. E vive num campo de prisioneiros no Iraque, à espera de julgamento.

Tréfaut encontra-se, nesse momento, envolvido com mais um projeto brasileiro. Outro documentário: “Incêndio”. Seu propósito é refletir sobre a catástrofe de 2018, quando o fogo destruiu parte significativa dos acervos do Museu Nacional, no Rio de Janeiro.

O cineasta vai lembrar, também, o incêndio do Museu de Arte Moderna, ocorrido na década de 1980, e da Cinemateca Brasileira, em momentos diversos. E refletir, ainda, sobre característica do país que o viu nascer: uma Nação que parece teimar em “apagar sua história”.

Tréfaut exemplifica – em substantiva entrevista contida no catálogo “Tréfaut: Cinema e Vida, Paixão e Melancolia” (Lisboa e Sintra, 2022) – que a cidade do Rio de Janeiro teve seu patrimônio arquitetônico e urbanístico destruído em sucessivos momentos. Era uma antiga cidade portuguesa, ao longo do Império, depois, no começo do século XX, virou uma “Paris nos trópicos”. E mesmo essa Paris sob sol ardente não conseguiu resistir. Devido à selvagem especulação imobiliária, substituiu o passado francês por arranhas-céus de inspiração norte-americana (página 55).

“A Noiva” encerrará a Retrospetiva e após sessão no domingo (17 de setembro, às 14h), Tréfaut debaterá sua produção com o público presente (às 15h30).

 

Retrospectiva Sérgio Tréfaut
Data: 8 a 17 de setembro
Local: Cinemateca Brasileira, Sala Grande Otelo (Largo Senador Raul Cardoso, Vila Mariana, São Paulo)
Conversa com o realizador no último dia (17 de setembro)
Mostra gratuita (retirar ingresso uma hora antes da sessão)

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