Em “O Melhor Está por Vir”, Moretti dialoga com Fellini, questiona filmes de serial-killer e o padrão Netflix

Por Maria do Rosário Caetano

O novo filme – “O Melhor Está por Vir” – do cineasta e ator italiano Nanni Moretti, de 70 anos, estreia nos cinemas brasileiros nessa quinta-feira, 4 de janeiro. O décimo-sexto longa do realizador peninsular – uma comédia (quase) musical – marca seu regresso à autoficção que o consagrou com o delicioso “Caro Diário” (1994). E acontece depois da comedida repercussão do drama “Tre Piani” (Três Andares, 2021), baseado em fonte externa, um romance do israelense Eskhol Nevo.

“Il Sol dell’Avvenire” (o sol do futuro, no título original) retoma três das paixões do diretor romano – o cinema, a política e o humor.  Moretti, que conquistou a Palma de Ouro com o doloroso “O Quarto do Filho” (2001), volta-se, pois, à própria persona, um cineasta autoirônico, militante socialista e defensor de filmes humanistas. Por isso, esta é, de suas realizações, aquela que mais expõe sua maneira de ver o mundo e seu ofício cinematográfico.

“Avvenir” coloca Giovanni (Moretti) em diálogo aberto com Federico Fellini, com “Lola” de Jacques Demys, com um dos mandamentos do “Decálogo” de Kieslowski e com “The Blues Brothers” (“Os Irmãos Cara de Pau”) e antológica sequência protagonizada por Aretha Franklin. E também com as improvisações de John Cassavets, com o cinema político dos Irmãos Taviani, de “San Michele Aveva un Gallo” (“Um Grito de Revolta”) e com Martin Scorsese e seu “Taxi Driver”.

Em sua comédia metaliguística, que hibridiza gêneros, o diretor recorre, inclusive, a ingredientes documentais, para questionar a violência do cinema contemporâneo, que vê como banal, voyeurista, de puro entretenimento.

O alter ego de Moretti, além de dirigir o próprio filme dentro do filme, dá-se ao direito de bisbilhotar o set de produção comandado por sua mulher Paola (Margherita Buy), de quem está se separando. Ela, que foi a produtora de todos os filmes dele, dedica-se no tempo presente a longa-metragem de violência explícita, dirigido por jovem cineasta peninsular e feito em parceria com produtores coreanos.

Nas filmagens de sequência na qual um dos atores (do outro filme dentro do filme) vai atirar, a sangue frio e em plano aproximado, na cabeça do outro, o intruso Giovanni entra em cena. E o faz para questionar e interromper a ação.

Além de desancar aquele tipo de encenação, Giovanni recorre ao testemunho de um intelectual (o arquiteto Renzo Piano), que discorre sobre a violência na arte. Uma profissional de cinema também fará suas reflexões sobre o assunto.

Não satisfeito, Giovanni buscará paradigma no cinema do polonês Krszysthof Kieslowski. Relembrará “Não Matarás” e sua sequência mais famosa: o brutal assassinato de um taxista pelo jovem protagonista. Para concluir que a sequência kieslowskiana, que dura sete minutos, é construída de tal forma, que quem a assistir jamais repetirá prática tão abominável. Já o filme produzido por sua (ainda) esposa fetichiza a violência, a banaliza, resultando em puro entretenimento.

Para completar tais digressões estéticas sobre a violência no cinema contemporâneo, Giovanni liga para Martin Scorsese, pois deseja que este reflita sobre a violência em seus filmes, desde “Taxi Driver”. A ligação vai parar na secretária eletrônica.

Como o processo de separação conjugal se dá no campo emocional e profissional, Giovanni é obrigado a recorrer ao francês Pierre (Mathieu Amalric) como produtor de seu drama histórico sobre a rebelião húngara de 1956. Só que o produtor está endividado e não encontra os capitais necessários. Resolve, então, recorrer à Netflix, poderosa empresa de streaming que orgulha-se de “colocar seus produtos em 190 territórios”, portanto, mais, bem mais, que os países filiados à ONU.

O diálogo entre os representantes da Netflix e Giovanni resultará em uma conversa de surdos. Os primeiros afirmarão que a Itália não conta mais com um star system. Querem, de cara, saber se o filme cativa os espectadores (diz a que veio!) em seus dois primeiros minutos e quando se dá o turning point. Por fim — observa a representante da empresa – “nesse filme, falta aquele momento ‘what the fuck’”.

Giovanni se desespera. Mesmo assim continua sonhando com seu “Avvenir” humanista e buscando na história do cinema, principalmente em Fellini, inspiração para realizar um filme que cante, dance e encante. Veremos imagens de “La Dolce Vita” e de “Lola”. A sequência em que Aretha Franklin canta “Think” para os “Blues Brothers” fertiliza sua imaginação.

Por que seus personagens não podem cantar (e dançar) no meio de uma trama histórica?

Por que belas canções italianas (“Lontano, Lontano”, “Sono Sole Parole”, “Voglio Vederti Danzare” e “Zone Dell’Amor Perduto”) e a francesa “Et si Tu n’Existe Pas” não podem embalar seu “Avvenir”?

O cineasta Giovanni (nome de batismo de Nanni Moretti) vai introduzir novidades em seu drama histórico sobre a reação do PCI (o Partido Comunista Italiano) à intervenção da União Soviética na Hungria. Tudo começará com a efusiva presença, em solo italiano, do Cirkus Budavari, com seus malabaristas, palhaços, trapezistas e animais. E com a notícia de que tanques soviéticos estão enfrentando as forças insurgentes.

O protagonista do filme dentro do filme é Ennio (Silvio Orlandi), um disciplinado redator do jornal “L’Unitá”, porta-voz do PCI. Sua companheira, Vera (Barbora Bobulova), romântica e sonhadora, simpatiza com o Partido e espera que ele apoie os insurgentes húngaros. Além do mais, ela quer trocar os textos de retórica política do filme por cenas de amor e improvisar “como Gena Rowlands nos filmes de Cassavets”.

Se não bastasse a crise conjugal, os rolos do produtor francês endividado, a atriz rebelde que deseja mudar o roteiro, surge outro motivo para turvar os dias de Giovanni: sua filha, muito jovem, está vivendo romance com um diplomata polonês de mais de 70 anos (papel do ator kieslowskiano Jerzy Stuhr). É problema demais para um cineasta como ele, já de cabelo e barbas grisalhos. É duro ver seu projeto sendo ofuscado por filmes pautados pela violência espetacularizada.

Giovanni se mostrará sensível aos questionamentos e desafios que se colocarão em seu caminho. Ao invés de realizar um filme niilista, tomado pela descrença que tomou conta do mundo contemporâneo, ele subverterá a realidade.

Vai rechear seu drama ambientado na década de 1950 com intervenções musicais e mudar o rumo da História. No plano real, o PCI e seu porta-voz, o L’Unitá, apoiaram a intervenção soviética. Mas, em “O Melhor Está por Vir”, isso não acontecerá. O Partido Comunista e seu jornal vão apoiar os insurgentes. E tudo acabará em delicioso número de dança e, depois, em passeata de atores e técnicos que tanto fizeram (e continuam fazendo) pelo cinema peninsular.

Claro que a maioria dos espectadores brasileiros, divorciada do cinema italiano desde o boom dos anos 1960-70, só reconhecerá dois rostos entre os “desfilantes” presentes na fantasia morettiana: o das atrizes Alba Rochwacher e Jasmine Trinca. Alguém poderá ver Anouk Aimée, a Lola de Jacques Demys, já nonagenária, entre os que marcham. Ou será uma sósia dela?

Só os fãs mais fervorosos do cinema peninsular reconhecerão os veteranos que deram sua “amichevole partecipazione” ao “Avvenir” de Moretti: Renato Carpentieri, Dario Cantarelli, Elio de capitani, Anna Bonaiuto, Giulia Lazzarini, Claudio Morganti, Gigio Morra, Silvia Nono, Alfonso Sanragata, Lina Sastri, Fabio Traversa e Mariella Valentini.

“O Melhor Está por Vir” presenteia seus espectadores com final esperançoso e capaz de comover até corações de pedra. Inclusive daqueles espectadores que detectarão altas doses de nostalgia e melancolia no auto-referente filme de Nani Moretti.

 

O Melhor Está por Vir
Itália-França, 2023, 95 minutos
Direção: Nanni Moretti
Roteiro: Nanni Moretti, Federica Pontremoli, Valia Satella e Francesca Marciano
Elenco: Nanni Moretti, Margherita Buy, Silvio Orlando, Barbora Bobulova, Mathieu Amalric, Jerzy Stuhr, Benjamin Stender, Toco Celi, Valentina Germani, Zsolt Anger, Elena Lietti, Blu Yoshirmi, Flavio Furno, Blu Yoshimi, Sun Hee You, entre outros
Distribuição: Pandora Filmes

 

FILMOGRAFIA
Nanni Moretti, Itália, 19/08/1953

1977 – “Io Sono un Autarchio” (S-8 ampliado em 16 mm)
1978 – “Ecce Bombo” (primeiro longa profissional)
1981 – “Sogni D’Oro” (Prêmio em Veneza)
1984 – “Bianca”
1985 – “A Missa Acabou” (Prêmio em Berlim)
1989 – “Palombella Rossa”
1990 – “La Cosa” (longa documental)
1994 – “Caro Diário”
1998 – “Abril”
2001 – “O Quarto do Filho” (Palma de Ouro + Prêmio David di Donatello)
2006 – “Crocodilo” (sátira a Silvio Berlusconi)
2011 – “Habemus Papam”
2015 – “Minha Mãe”
2019 – “Santiago, Itália” (documentário)
2020 – “Tre Piani” (“Três Andares”)
2023 – “O Melhor Está por Vir”

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