Competição brasileira coloca o Olhar de Cinema na linha de frente dos festivais nacionais
Foto: Murilo Salles (3º da esq. para dir.) e equipe do filme “Mário de Andrade, o Turista Aprendiz” © Walter Thoms
Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba
O Olhar de Cinema, o Festival Internacional de Curitiba, conseguiu transformar-se, em pouco mais de uma década (esta é sua décima-terceira edição), em uma de nossas quatro mais importantes competições de filmes brasileiros. E olhe que o país conta com mais de 300 festivais e mostras.
Hoje, o evento paranaense mostra potência similar à apresentado pelas competições do Festival do Rio (Première Brasil), de Gramado e de Brasília. A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo não entra nesse ranking por não dispor de competição com títulos brasileiros. Nem a de Tiradentes, por apresentar recorte muito específico (filmes ultra-autorais e de baixíssimo-orçamento)
O festival curitibano nasceu com forte característica internacional. Dois filmes brasileiros competiam com mais de uma dezena de longas estrangeiros. À medida que o tempo ia passando, a produção nacional foi ganhando volume e relevo. Hoje, é a estrela do evento comandado por Antônio Júnior.
Nessa edição, há oito longas brasileiros (100% inéditos em nosso território e de propostas diversificadas) em competição (e apenas seis produções internacionais).
Para mostrar a relevância que a produção nacional ganhou no Olhar de Cinema, vale destacar que dois importantes filmes made in Brazil têm aqui suas primeiras exibições — “Retrato de um Certo Oriente”, o ótimo de Marcelo Gomes, e “Mário de Andrade, o Turista Aprendiz”, de Murilo Salles. Na noite de encerramento, outro título inédito — “Salão de Baile”, de Juru e Vitã.
O filme que tem o primeiro romance de Milton Hatoum (“Relato de um Certo Oriente”) como matriz geradora, estreou no Festival de Roterdã, na Holanda, e vem correndo festivais, inclusive no mundo árabe. Na hora de escolher sua primeira vitrine brasileira, Marcelo Gomes optou pelo Olhar. Mesmo caso de Murilo Salles, o grande diretor de fotografia e realizador de quase duas dezenas de longas.
Murilo escolheu, sem pestanejar, o festival curitibano como vitrine da première de sua inventiva recriação de “O Turista Aprendiz” (seu primeiro encontro com a obra de Mário de Andrade se deu em “Lição de Amor”, recriação de Eduardo Escorel para “Amar, Verbo Intransitivo”, no qual atuou como diretor de fotografia).
Em “Mário de Andrade, o Turista Aprendiz”, o cineasta carioca, de 74 anos, empreende com atores pouco conhecidos do grande público viagem pela Amazônia brasileira e peruana. A viagem iniciática, que fertilizaria o romance “Macunaíma” (1928), foi protagonizada pelo escritor modernista na nobre companhia da milionária paulista Olívia Guedes Penteado e de duas jovens, Dolur e Mag, uma delas filha de Tarsila do Amaral.
Corria o ano de 1927 e o cinema começava a emergir de sua era silenciosa. Dois anos depois, os EUA seduziriam o mundo com “O Cantor de Jazz” e seu protagonista Al Jolson. Com imensa liberdade, Murilo vai usar imagens de “O Homem com uma Câmera”, de Dziga Vertov (lançado dois anos depois da epopeia andradiana), “Não Percas Tempo“, com Willian Fairbanks, e fragmentos da obra documental do Major Luiz Thomaz Reis, o cinegrafista de Rondon.
O atrevido cineasta, que se renova a cada novo filme, recriou a saga de Mário, sua patronesse e convidadas (estas com hormônios em polvorosa), 100% em estúdio, em compactos 18 dias. Tal atrevimento traz resultado formidável e impressionante. Com direito à soma milionária dos recursos do cinema ficcional, documental, de animação e performático. Desde que fotografou (e coproduziu) “Árido Movie” (Lírio Ferreira, 2006), Murilo Salles, um artista capaz de trabalhar mais que remador de Ben-Hur, tem apostado em filmes arriscados. E procurado manter intenso diálogo com as novas gerações.
“Salão de Baile”, da dupla Juru e Vitã, o filme que encerrará o Olhar, se define como “cinema ballroom”, construído — conforme registra a curadora Camila Macedo — num “universo que mistura dança, música, moda e performance a partir de experiências queer periféricas e racializadas”. Aguardemos.
Quem dedicou olhar atento à seleção dos oito longas brasileiros reunidos pela disputa do Troféu Olhar (melhor filme brasileiro) decerto anteviu duelo entre dois nomes já destacados no circuito de festivais mais autorais — o do campineiro-baiano Cláudio Marques, 54 anos, e o do cearense (radicado em Lisboa) Leonardo Mouramateus, de 32.
O primeiro desembarcou em Curitiba com “A Mensageira”, seu quinto longa-metragem. Mouramateus acompanhou “Greicie”, seu terceiro longa, de longe (Lisboa) e participou do debate via digital. Fez-se representar pelos atores Amandyra, a Greice, por Felipe Dipas, ator, cantor e mestrando em Antropologia, e pelo produtor Andy Malafaia.
A equação, que colocava o baiano e o cearense-lusitano na cabeça da disputa, sofreu alteração com a chegada de dois filmes — o paulista “O Rancho da Goiabada, ou Pois é meu Camarada, Fácil, Fácil Não é a Vida”, de Guilherme Martins, de inesperada força e inventividade, e o paranaense “O Sol das Mariposas”, de Fábio Allon, ambos ligados ao mundo rural e às plantações de cana-de-açúcar (o primeiro) e de café cultivados nas terras roxas de Londrina, Guaravera e Cambé (o segundo). “Mariposas” é o recordista de público do Olhar, com ingressos esgotados tão logo foram abertas as bilheterias. E rendeu dois importantes debates.
“A Mensageira” estreou com força e causou impacto no público. Afinal, trata-se do mais ambicioso dos projetos da dupla Cláudio Marques e Marília Hughes. Os dois mantêm parceria conjugal e artística há muitos anos. Quando não dirigem os filmes em parceria, um produz o outro.
Em 2013, Cláudio estreou no longa-metragem com “Depois da Chuva”, marcado por reminiscências autobiográficas. O filme foi bem recebido pela crítica, mas alguns resenhistas estranharam a ausência total de afro-brasileiros na trama, já que a história se passa em Salvador, nossa “Roma negra”. 21 anos depois, o cineasta elabora roteiro protagonizado por personagens de pele preta, marcados por complexidade e a tão necessária subjetividade. A começar pela protagonista absoluta do filme, a jovem oficial de justiça Íris (a bela Clara Paixão).
A trama se dá no plano real (Íris, que trabalha no Fórum de Salvador, é mensageira de terríveis mandados judiciais) e no plano simbólico-espiritual (os cultos ancestrais dos pretos da Bahia). Quando a jovem entrega mandado de desapropriação de quilombo urbano nas cercanias de Salvador, ela se depara com casal de líderes dos moradores (interpretados por Hamilton Borges e Márcia Limma).
Mais tarde, caberá a Íris acompanhar (auxiliada por dois policiais), o líder comunitário para depor em uma delegacia. Ele desaparecerá de forma misteriosa. Intrigada, a jovem oficial da Justiça soteropolitana vai investigar o que se passou. Acabará descobrindo grande esquema de grilagem de terra. Especuladores imobiliários cobiçam o amplo terreno para a construção de megashopping center.
O filme causará surpresa aos que estão acostumados à gramática do cinema naturalista (e mesmo realista). Ao longo de 2h20’, Cláudio Marques filma seus personagens à moda de Robert Bresson (e seu cinema ascético e desdramatizado). Quem entrar no arriscado registro de “A Mensageira”, vai fruir narrativa instigante e reveladora.
O filme baiano contou, como todos da competição brasileira, com dois debates. O primeiro, no Cinemark Muller, após sua première. Houve prenúncio de que algo semelhante ao ocorrido, no Festival de Brasília, com “Vazante” (Daniela Thomas, 2017) se passaria em Curitiba. Vozes se levantaram para questionar a presença de um diretor branco dirigindo filme sobre a gente negra da Bahia. E duas sequências de sexo entre Íris e Vasco (Daniel Farias), seu namorado e colega de trabalho no Fórum, foram tachadas de “exploração do corpo de uma mulher preta”.
O efeito “Vazante” não vingou por aqui. Os atores Hamilton Borges, o líder comunitário que desaparece na trama, e Clara Paixão (Íris) se posicionaram, com firmeza, em defesa do diretor Cláudio Marques. Asseguraram que ele se pautara pela construção de personagens complexos, marcados pela tão almejada subjetividade. E que ouvira e dialogara com todos os integrantes da equipe artística e técnica.
No debate do dia seguinte, no auditório do Cine Passeio (disponível no portal do Olhar de Cinema) foi possível ouvir diretor e intérpretes falarem sobre concepção estética e composição de personagens. E Flávio Rebouças discorrer sobre a fotografia, que imprimiu em preto-e-branco. Foi comentada, também, a trilha sonora, marcada por composições do trovador Elomar (“O Pedido”) e por apaixonantes sambas de Batatinha. Cláudio, que ocupara a trilha de “Depois da Chuva” com alta dosagem de rock’n roll, confessou-se contaminado pela paixão da companheira Marília Hughes: “se deixar, ela ouve Batatinha o dia inteiro”.
“Greice”, que Leonardo Mouramateus realizou depois de “António Um Dois Três”, há de intrigar os apreciadores de seus curtas e primeiro longa, marcados pela subjetividade e inquietação. Perto deles, “Greice” parece um projeto voltado à conquista do público. Afinal, a história das artimanhas da estudante brasileira, radicada em Lisboa, pode ser qualificada como uma chanchada cearense-lusitana.
A jovem Greice (a ótima e despachada Amandyra) se vira nos 30 para resolver problemas cotidianos que se avolumam em sua temporada lisboeta. Ela vive de bicos (como figurinista para clipes da cantora interpretada por Isabél Zuaa, e como vendedora num quiosque). Numa de suas aprontações, ela conhece o herdeiro Alfonso (o português Mauro Soares), que disputa bens materiais com filhos bastardos (e brasileiros) de seu falecido pai. Forrado nas leis lusitanas, ele levará a melhor.
Fato ocorrido na festa de recepção aos calouros — a queima de quadro do acervo da Escola de Belas Artes — forçará a jovem Greice a regressar temporariamente a Fortaleza. Hospedada em divertido e inusitado hotel, ela vai conviver com Felipe Dipas, um faz-tudo apaixonado, e com atrevida concierge (interpretada pela atriz e youtuber trans Faela Maya).
Andy Malafaya, produtor do filme, assegurou, no debate, que “Greice” é uma obra autoral. Que a produtora paulistana Glaz Entretenimento o convocou a buscar jovens diretores capazes de enriquecer e diversificar sua carteira de projetos e conquistar espaço em festivais. Os primeiros nomes que lhe ocorreram foram os de Mouramateus, Cynthia Domit e Fábio Baldo. A eles foram dadas liberdades criativas plenas.
“Greice”, produção luso-brasileira, vem conquistando espaço em festivais autorais como Roterdã, na Holanda, e o Olhar curitibano.
Para entendemos a instigante surpresa causada por “O Rancho da Goiabada, ou Pois é meu Camarada, Fácil, Fácil Não é a Vida” (título longo e com três vírgulas!), temos que evocar versos de Aldir Blanc (musicados por João Bosco), presentes na faixa “Rancho da Goiabada” do disco “Galos de Briga” (1976): “Os bóias-frias/ Quando tomam umas biritas/ Espantando a tristeza/ Sonham com bife-a-cavalo/ Batata-frita e a sobremesa/ É goiabada, cascão com muito queijo…”
A marcha rancho de Aldir e Bosco está na origem do improvisado roteiro do filme. E alguns de seus versos funcionam como marcadores de capítulos da trama, conduzida por personagem de nome Alex (o ator Alex Rocha), que perambula por plantações de cana do interior paulista ou pela cozinha de movimentado restaurante. Ou, ainda, por vias nada turísticas da convulsiva metrópole sul-americana.
O papel de Alex é o de provocador de intensas conversas — nos moldes do Tião Brasil Grande, de Peréio, no seminal “Iracema, uma Transa Amazônica” — com cortadores de cana e outros trabalhadores sazonais. Nesse filme, o proletariado é substituído em grande parte pelo precariado contemporâneo.
Guilherme Martins, o diretor, é um maluco-beleza, de fala anárquica e, na aparência, desarticulada. Ele parece apostar todas as suas fichas na intuição. E que intuição! Com pouquíssimos recursos (R$80 mil, destinados a um curta) fez um longa. Contou com a rica colaboração do diretor de fotografia André Lorenz Michiles (as imagens das usinas de cana-de-açúcar são arrebatadoras) e com a criativa montagem de Eduardo Liron.
O ator-provocador Alex, vestido com a camisa do craque egípcio M. Salah (com quem tem imensa semelhança física), consegue tirar muito, muito mesmo, de seus interlocutores. E, assim sendo, empreendemos mergulho num Brasil sob o transe bolsonarista, com trabalhadores braçais entorpecidos por labuta brutal e pelo ganho diminuto.
Na trilha sonora (Martins não tem, por enquanto, os direitos autorais de “Rancho da Goiabada”), ouviremos Cida Moreira escandir “Veja (Margarida)”, de Vital Farias; um cortador de cana cantar trecho de “Estrada da Vida”, sucesso de Milionário e José Rico, e composições do trilheiro José Calixto.
Por sua originalidade e mergulho no mundo do trabalho precarizado e embrutecedor, o filme de nome comprido e triplamente “virgulado” desponta entre os favoritos ao Troféu Olhar da décima-terceira edição do Festival de Cinema de Curitiba.