“Grande Sertão”, o antifavela movie de Guel Arraes, abre Cine PE e estreia em 300 salas de todo país
Foto: Luisa Arraes e Caio Blat, em cena do filme / Helena Barreto
Por Maria do Rosário Caetano
“Grande Sertão”, novo filme de Guel Arraes, abre, na noite dessa quinta-feira, a vigésima-oitava edição do Cine PE, festival pernambucano de cinema, que terá o Teatro do Parque, no Recife, como seu principal cenário. Ao mesmo tempo, o épico cinematográfico, resultante de adaptação contemporânea de “Grande Sertão: Veredas”, obra-prima de João Guimarães Rosa, chega ao circuito exibidor em grande estilo. O distribuidor Márcio Fracaroli, da Paris Filmes, confirma 300 salas em cinemas espalhados por todo território brasileiro. O produtor Manoel Rangel aposta em número ainda maior.
Para Jorge Furtado, que adaptou o romance roseano com Guel Arraes (e o transportou dos ermos das Gerais para a periferia de uma grande metrópole brasileira), “Grande Sertão” é “um antifavela movie”. Ou seja, um filme que deseja afastar-se do mais famoso dos exemplares do gênero, o díptico “Tropa de Elite”, de José Padilha. O roteirista gaúcho entende que os filmes protagonizados pelo Capitão Nascimento e seus colegas no Bope (Batalhão de Operações Especiais) traz “o ponto de vista da polícia”, por entender que “a favela é o espaço a ser conquistado” e “bandido bom é bandido morto”.
O “Grande Sertão” de Arraes e elenco estrelar (Caio Blat, como Riobaldo, Luisa Arraes, como Diadorim, Luis “Zé Bebelo” Miranda, Rodrigo “Joca Ramiro” Lombardi, Eduardo “Hermógenes” Sterblitch, Mariana “Otacília” Nunes e Lellem “Nhorinhá” de Castro) – pondera o roteirista gaúcho – “adota, assim como o romance de Rosa, o ponto-de-vista dos guerreiros, sejam eles integrantes dos diferentes bandos de fora-da-lei ou policiais, homens fortes, impiedosos, dispostos a matar ou morrer em nome da honra, numa guerra sem fim”.
Jorge Furtado acredita que, no épico roseano, “o realismo é insuficiente”. Ele e Guel foram o mais fiel que puderam à prosódia dos personagens criados pelo escritor mineiro, nascido em Cordisburgo em 1908 (e falecido 59 anos depois). “Tentamos usar, o máximo que fosse possível, as palavras do romance”, garante o gaúcho.
Daí que, numa favela brasileira, em tempo indeterminado, o público ouvirá construções do mais puro ‘roseanismo’: “O senhor já viu guerra? Demais é que se está: muito no meio de nada“. Assim sendo, prossegue Furtado, “a dimensão épica das grandes batalhas, dos gestos de coragem ou covardia, é sustentada, no filme, pela inigualável prosa poética de Rosa”. E mais: “no cenário desta guerra, veremos os brasileiros mais pobres, homens e mulheres, trabalhadores, estudantes, crianças”.
O gaúcho estabelece a intenção de “Grande Sertão”, mais um projeto que o uniu a Guel Arraes, em duradoura parceria que já dura três décadas: “nosso objetivo eram as palavras de Rosa e a história da nossa ferocidade”. Sendo assim, “só podíamos imaginar como essa narrativa e esses acontecimentos tocariam a sensibilidade de brasileiros reais, os que vivem a realidade cruel desses conflitos, neste cenário, o de nossas periferias urbanas”.
“Grande Sertão”, o filme, ao trocar o universo violento dos jagunços do sertão pelo território das organizações criminosas de periferia urbana, o faz em espaço cercado por muros gigantescos. E opta por um tempo indeterminado. A história, narrada em tom épico, centra-se na trajetória de Riobaldo, professor que ingressou no bando armado por amor a Diadorim, uma das integrantes do grupo.
E essa transposição soa forçada?
Não para o escritor, ensaísta e professor universitário Silviano Santiago. Em gravação divulgada pela equipe do filme, o autor de “Em Liberdade” e “Machado” vê pertinência na transcriação cinematográfica de “’Grande Sertão: Veredas’ (publicado em 1956 e com trama situada no Brasil da República Velha) empreendida pela dupla Arraes-Furtado.
“O romance de Guimarães Rosa”, avalia, “é um dos projetos mais ambiciosos da literatura brasileira”. Nele, “o espaço é o sertão, aquele enclave que foi constituído por uma modernização às pressas, corrida, podendo ser exemplificado pelo que constituiu, no final do século XIX, a favela ou as prisões atuais, onde os valores dominantes são a anarquia e a ferocidade”. Está muito claro, no romance, “que para assegurar a sobrevivência naquelas condições, você tem que matar”, conclui Silviano.
O Cine PE apresentará e debaterá “Grande Sertão” com o pernambucano Guel Arraes, seus atores Caio Blat, Luisa Arraes, Luís Miranda, Rodrigo Lombardi, Eduardo Sterblitch e a diretora de segunda unidade, Flávia Lacerda.
O público pernambucano terá muito que discutir com o cineasta, integrante do Clã Arraes, nascido e criado no Recife, e que foi viver com o pai e irmãos no exílio. Primeiro, na África (em Argel), depois em Paris, onde estudou cinema. E com passagem por Moçambique, onde chegou a integrar equipe de projeto africano de Godard. Deste assunto, Guel fala muito pouco.
E o filme?
Está à altura do romance que lhe deu origem?
A modernização de seu tempo histórico e a mudança de sua geografia (dos sertões para as favelas) serão bem aceitas pelo público? E, em especial, pela confraria de roseanos que disseca, em estudos os mais qualificados, esse autor que vive no Olimpo de nossa literatura, ao lado de Machado de Assis, Graciliano Ramos e Carlos Drummond?
A resposta é sim. O público deve se envolver com a trama, de sintéticos 108 minutos, pois ela conseguiu captar a essência de “Grande Sertão: Veredas”. Claro que roseanos ortodoxos sentirão falta das profundas meditações filosóficas do prosador mineiro. E da metafísica que se espalha por densa narrativa de mais de 500 páginas. O que Guel e Furtado fizeram foi buscar a trama do livro, urdida com histórias de guerra sangrenta, amor homoafetivo e pacto com o demônio.
As batalhas levadas a cabo por “jagunços” fora-da-lei e por detentores do poder legal de extermínio (a Polícia, vista na figura do comandante Zé Bebelo, homem de palavra, e por comandados, alguns deles traficantes de armas) são muito bem filmadas. Guel Arraes contou com a valiosa retaguarda de Flávia Lacerda, diretora de segunda unidade. E com a poderosa fotografia de Gustavo Hadba, trilha na medida certa e direção de arte que evoca a crueza de “Cidade de Deus” e, principalmente, de ficções científicas distópicas como “Mad Max” e assemelhadas. Sem esquecer os balés estilizados do cinema asiático que seduziu o mundo algumas décadas atrás.
Com evidente embalo pop (sem, no entanto, abrir mão da complexidade do romance-de-origem), “Grande Sertão” se constrói como um grande filme. E por caminhos opostos aos adotados por Roberto Santos no clássico (e insuperável) “A Hora e Vez de Augusto Matraga” (1965).
O elenco rende de forma singular. O pequeno Caio Blat, que acaba de completar 44 anos, convence na pele de um sensível professor de meia-idade e como o velho Riobaldo que, em monólogo interior, relembra os fatos vividos e as perdas que o marcaram para sempre. O ator tem seu maior desempenho. Que, aliás, vem embasado em formidável montagem teatral (feita filme) comandada por Bia Lessa.
Luísa Arraes, com sua imagem quase andrógina, dá credibilidade ao mistério de Diadorim, destruído já na saída por Sônia Clara, em “Grande Sertão Veredas” (Irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira, 1964) e Bruna Lombardi, na minissérie global, dirigida por Walter Avancini (Rede Globo, 1985).
Em grandes papeis estão, também, Luís Miranda e Eduardo Sterblitch, geralmente dedicados a desempenhos cômicos. Os recursos dramáticos de Miranda já eram conhecidos, pois ele brilhou em “Jean Charles” (Henrique Goldman, 2009) e foi elogiado até pelo diretor britânico Stephen Frears. Já o rendimento de Sterblitch, na pele do demoníaco Hermógenes, é dos mais impressionantes. Lombardi, Mariana Nunes e Luellem de Castro também estão notáveis.
O festival recifense, que escolheu “Grande Sertão” como seu programa inaugural, nasceu na segunda metade da década de 1990, quando o cinema brasileiro saía de umas de suas maiores crises (a da Era Collor). E o fez num momento em que o cinema pernambucano renascia com força única, escorado no sucesso de “Baile Perfumado” (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1996), força seminal do chamado Árido Movie.
O Recife fervia com o Mangue Beat. Cinema e música fertilizavam um novo tempo para o estado que vivera, na época do cinema silencioso, o Ciclo do Recife. O festival começou no histórico Cine São Luiz. E carregou o nome da cidade. E seu público cresceu tanto, que ele foi parar no Centro de Convenções Guararapes, entre Recife e Olinda. Um super-auditório que abrigava 3 mil espectadores. A sessão de “Central do Brasil”, com Fernanda Montenegro apresentando o filme, foi algo impressionante. Idem para a sessão de “Eu Tu Eles”, de Andrucha Waddington. Nova recepção de imenso entusiasmo, multiplicada em cidades do sertão pernambucano. Ambos foram exibidos em telões ao ar livre, para milhares de pessoas.
O clima eufórico da retomada passou, o Brasil mudou, sofreu traumas políticos, e o centro de Convenções de Recifolinda tornou-se grande demais. O festival, que mudara de nome em seus primeiro anos (de Festival de Recife para Cine PE) regressou ao Cine São Luiz (992 lugares). Com a reforma do tradicional cinema do centro histórico recifense, o festival mudou-se para outro espaço histórico, o Cine Teatro do Parque, criado em 1915 (também com ótima lotação — 800 lugares).
Claro que o Cine São Luiz e o Teatro do Parque não são o “Maracanã dos Festivais”, aposto que acompanhava o Centro de Convenções recifolindense. Mas convenhamos, são ambos espaços largos e perfeitos para um festival. Quem há de achar reduzida a lotação de salas que ofertam, respectivamente, 992 e 800 poltronas?
O festival de Pernambuco, depois de anos intempestivos e grandes alterações (para pior) na vida política brasileira, continua dedicado, integralmente, ao cinema brasileiro e se estrutura com programação super-enxuta – uma competição de longas (com apenas cinco títulos), uma de curtas brasileiros (com 15 produções vindas dos muitos Brasis), uma de curtas pernambucanos (sete selecionados) e uma mostra (também de curtas), batizada de “Inquietações”, para a qual foram selecionados nove filmes, a maioria nordestinos. Um deles, a animação paraibana “Era uma Noite de São João”, de Bruna Velden, venceu o Festival Aruanda. Da mesma Paraíba vem “Destino Brasília”, de Kalyne Almeida, Leandro Cunha e Sandro de França, que acompanha a jornada de três amigos rumo à capital federal para documentar a terceira posse de Lula na presidência da República. Durante o percurso, de carro, o medo e a ansiedade tomam conta do trio, mas os encontros vividos e a esperança acabarão falando mais alto.
Dos raros títulos fora dos territórios nordestinos, um dos programados é dos mais mobilizadores – “Utopia Muda”, de Júlio Matos, que acompanha os momentos de efervescência de rádio livre (ou pirata, segundo o ponto de vista das autoridades) desenvolvida no campus da Unicamp (Universidade de Campinas).
A homenageada desse ano será a cantora e atriz Tânia Alves, de 74 anos, que destacou-se nos filmes “Cabaret Mineiro” (Carlos Alberto Prates Correia, 1979), “Parahyba, Mulher Macho” (Tizuka Yamasaki, 1983) e “O Mágico e o Delegado” (Fernando Coni Campos, também de 1983). Ela interpretou Maria Bonita, ao lado do Lampião de Nelson Xavier, em famosa minissérie da Rede Globo.
No campo da reflexão e da política cinematográfica, o Cine PE – que prossegue até dia 11 de junho – promoverá o lançamento de livro “Conversa com Edmar Bacha”, de Cristovam Buarque. A publicação une dois economistas e educadores. Seu autor, o pernambucano (de Recife) Cristovam, de 80 anos, é ex-reitor da Universidade de Brasília, e o mineiro (de Lambari) Edmar Bacha, 82, um dos artífices do Plano Real (durante o Governo Itamar Franco).
Em 2022, Buarque e Bacha participaram do seminário “Cenários Econômicos, Políticos e Sociais para 2023: O que Será do Brasil?”, parte da programação do 26º Cine PE. Nesta edição do evento, os dois economistas se reencontram para debater o livro e oportunidades para o desenvolvimento do país. Nunca é demais lembrar que Cristovam Buarque, que foi governador do Distrito Federal e senador da República, é autor de lei que prevê a exibição de filmes brasileiros em escolas da rede pública.
No campo da memória, o Cine PE perde a oportunidade de festejar sua própria história. Como faleceram, no mês passado, os cineastas e produtores Toni Venturi e Guilherme Fiúza Zenha, ambos premiados com o Troféu Calunga, cairia bem uma sessão especial dos dois filmes – o longa-metragem “Estamos Juntos”, protagonizado por Leandra Leal e dirigido por Toni, e o curta-metragem “Os Filmes que Não Fiz”, que Fiúza produziu e Gilberto Scarpa dirigiu.
Confira os filmes selecionados:
Competição de longas-metragens (Troféu Calunga)
. “Memórias de um Esclerosado” (RS), de Thaís Fernandes e Rafael Corrêa
. “Cordel do Amor Sem Fim” (SP), de Daniel Alvim
. “Invisível” (RJ), de Carolina Vilela e Rodrigo Hinrichsen
. “Geografia Afetiva” (SP), de Mari Moraga
. “No Caminho Encontrei o Vento” (PE), de Antonio Fargoni
Competição de curtas-metragens brasileiros (Troféu Calunga)
. “Hoje Eu Só Volto Amanhã”, de Diego Lacerda (PE, anim.)
. “Dentro de Mim”, de Dayane Teles (AL, doc). “O Silêncio Elementar”, de Mariana de Melo (MG, doc)
. “Cacica – A Força da Mulher Xavante”, de Jade Rainho (MT, doc)
. “Resistência”, de Juraci Júnior (RO, doc)
. “Vermelho Oliva”, de Nina Tedesco (doc, RJ). “Dependências”, de Luisa Arraes (RJ, fic)
. “A Chuva Não me Viu Passar”, de Leonardo Gatti (SC, fic)
. “Jogo de Classe”, de Quico Meirelles (SP, fic)
. “Sempre o Mesmo”, de João Folharini (SP, fic)
. “Guaracy”, de Eliete Della Violla e Daniel Bruson (SP, anim.)
. “Zagêro”, de Victor Di Marco (RS, fic)
. “Solange Não Veio Hoje”, de Hilda L. Pontes e Klaus Hastenreiter (BA, fic)
. “Sertão, América”, de Marcelo Ilha Bordin (ES. doc)
. “Flores da Macambira”, de Crianças e Adolescentes da Comunidade Macambira (ES, anim.)
Competição de longas-metragens pernambucanos (Troféu Calunga)
. “Das Águas”, de Adalberto Oliveira e Tiago M. Rêgo (doc)
. “Descarrego”, de Joana Claude (doc)
. “Moagem”, de Odília Nunes (doc)
. “Chão”, de Philippe Wolney (fic)
. “Emocionado”, de Pedro Melo (fic)
. “Mãe”, de Natália Tavares (fic)
. “Náufrago”, de Vitória Vasconcelos (fic)
Mostra Inquietações (não-competitiva)
Composta com nove curtas-metragens
Exibições no Cinema do Porto-Cinema da Fundação (Bairro do Recife, dias 8 e 9 de junho, às 14h, sessões são gratuitas)
. “Era uma Noite de São João” (PB), de Bruna Velden
. “Estação Janga-Lua (O Segundo Mundo do Rádio)” (PE), de Rui Mendonça
. “Dinho” (PE), de Leo Tabosa
. “Adam” (PR), de Ana Catarina
. “Cida Tem Duas Sílabas” (SP), de Giovana Castellari
. “Lagrimar” (RN), de Paula Vanina
. “Seu Adauto” (PE), de Edvaldo Florêncio dos Santos
. “Destino Brasília” (PB), de Kalyne Almeida, Leandro Cunha e Sandro Alves de França
Mostra Infantil
Dia 6, às 14h, no Cinema do Teatro do Parque (para alunos inscritos junto à Secretaria de Educação da Prefeitura do Recife (alunos da rede pública de ensino)
. “Coração de Fogo” , de Laurent Zeitoun e Theodore Ty (animação, 92’)