Em “O Último Pub”, de Ken Loach, proletários ingleses confrontam imigrantes sírios

Por Maria do Rosário Caetano

Dave Turner, o protagonista do novo filme de Ken Loach – “O Último Pub”, estreia dessa quinta-feira, 8 de agosto, nos cinemas brasileiros – era bombeiro até aposentar-se, em 2014. A convite do festejado diretor de “Terra e Liberdade” desempenhou pequenos papeis em “Eu, Daniel Blake”(2016) e “Você Não Estava Aqui” (2019).

O bombeiro, que por décadas atuou em brigadas que apagavam incêndios no norte da Inglaterra, teve a sorte de estrear num filme que renderia ao realizador britânico sua segunda Palma de Ouro em Cannes (“Eu, Daniel Blake”). A primeira viera com “Ventos da Liberdade”, em 2006.

Aos 86 anos (completou 88 em junho último), Ken Loach resolveu correr imenso risco. Entregou a Dave Turner a missão de interpretar o principal personagem de “The Old Oak” (“O Velho Carvalho”, no título original).

O bombeiro conseguiu, com resultado convincente, dar vida a Thomas John Ballantyne, o TJ, dono do pub nortista, que batiza o filme. Em tempos idos, a região ocupava papel crucial na economia britânica, pois lá estavam minas de carvão que empregavam milhares de trabalhadores.

As primeiras imagens do filme trazem fotos em preto-e-branco do tempo do pleno emprego e de greves mobilizadoras que reivindicavam melhores salários. Vistosas legendas situam acontecimentos históricos: Desfile dos Mineiros de Durhan, Tragédia em Ellery, Greve de 1984. No fundo do The Old Oak (Pub) há um amplo salão, espaço de históricas reuniões sindicais. E em suas paredes estão expostas imagens de imensa força e poder evocativo, retratos de um proletariado outrora influente.

Com o desemprego, velhos trabalhadores, liderados pelo mordaz Charlie (Trevor Fox), passam o tempo bebendo cerveja e lembrando os bons tempos. E, claro, culpando os imigrantes pelos maus dias. No caso, os vindos da Síria, pois o roteirista de Loach, o escocês Paul Laverty, situa “O Último Pub” em espaço e tempo precisos: Norte da Inglaterra, 2016. Ou seja, em tempo da Guerra da Síria.

A coprotagonista de “The Old Oak” é Yara (Ebla Mari), jovem que exerce a mesma profissão de um tio fotógrafo de TJ. Ela registra as dificuldades de seu povo no exílio e também de quem lhe requisita serviços, caso das sorridentes mulheres que trabalham num salão de beleza.

No começo do filme, entrevero entre os revoltados britânicos com a “invasão” dos imigrantes vindos da Síria acabará danificando a máquina, instrumento de trabalho da jovem e bela moça. Ao buscar ajuda no The Old Oak, ela será conduzida por TJ ao bagunçado (e desativado) salão. Lá irá se deparar com duas câmaras fotográficas defasadas, mas que, passadas nos cobres, poderão pagar o conserto do equipamento avariado.

Bem mais velho que Yara, TJ encontrará nela motivação para praticar seu humanismo, paralisado por grande melancolia. Afinal, os frequentadores de seu pub, de origem proletária, hoje são intolerantes e hostilizam os imigrantes. Os tomam como responsáveis por suas desgraças. A ponto de ironizarem quando Yara entra no pub: “Pensa que é a dona. Só falta construir uma mesquita!”.

Quem se encantou com o realismo crítico de “Kes” (1969) e de “Terra e Liberdade” (1995) ou com duas incursões cômico-loachianas – o delicioso e boleiro “À Procura de Eric (Cantona)” e o etílico “A Parte dos Anjos” – há de achar que o quase nonagenário Ken Loach realizou, com “Pub”, seu filme mais sentimental. Até a perda de uma cachorrinha, única companheira de TJ até a chegada de Yara, entra no tecido narrativo urdido por Laverty.

Que Ken Loach é um humanista, todos sabemos. Mas à medida que os anos vão passando e os triunfos do neoliberalismo e da extrema-direita vão se multiplicando pelo mundo, parece que ele se mostra predisposto a dirigir filmes marcados por algum traço de esperança. E a parceria com Paul Laverty, um ex-advogado de Direitos Humanos (que foi ator em “Terra e Liberdade”) acaba tornando o cinema de Ken Loach mais suave. Menos dialético.

A aposta num filme esperançoso (e mais didático) cobrou preço alto à dupla britânica. Eles saíram de Cannes sem nenhum prêmio. E ganharam uma mísera estrela da revista Cahiers du Cinéma.

Em, compensação, o comunista L’Humanité e os moderninhos Band à Part e Rolling Stone foram generosos (4 estrelas). O Libération, criado por Sartre e parceiros, deu cotação justa (3). Le Monde e Les Inrock pesaram a mão (apenas 2).

Ken Loach, visto retrospectivamente, é um cineasta que soma momentos luminosos e inovadores como os de seus primeiros anos na BBC (com os subversivos “Cathy Comme Home”, “Poor Cow” e “Up the Junction”). Seguiriam-se, décadas a fora, “Kes” e “Terra e Liberdade”, ambos construídos em denso diálogo entre o documentário e a ficção. Mesmo em seus filmes menores, ele se mostra um conhecedor apaixonado de seu ofício.

Em “The Old Oak”, Loach elege a fotografia fixa como sua fonte de diálogo. E como metáfora. Registro de um tempo em que o proletariado era internacionalista e sonhava com a transformação. Hoje, nacionalista e tacanho, vê no estrangeiro (o “outro”) o perigo. De tal forma, que Paul Laverty acaba sendo obrigado a recorrer a boas doses de didatismo. Coloca na boca do personagem progressista fala demonstrativa: “mas nossa situação já estava ruim antes da chegada dos imigrantes (sírios)”.

O filme encerra-se com mais fotografias, registro de magnífica catedral construída pelos normandos, desfile de estandartes nos quais lemos palavras mobilizadoras (“Força, Solidariedade, Resistência”) e trecho do filme “House of Ashes”.

Ah, um registro: o bombeiro aposentado Dave Turner, que virou ator-protagonista de Ken Loach e teve sua estampa impressa no cartaz do filme, ao lado de Ebla Mari – visitou o Brasil. Poucos meses atrás, ele participou do FestinCineJP, na capital paraibana, e acompanhou a sessão de “O Último Pub”. Em coletiva de imprensa foi econômico ao falar de si mesmo. Preferiu destacar seus colegas. Em especial, os “parceiros sírios, que eram realmente imigrantes refugiados do conflito bélico”, que abalara o Oriente Médio.

Já em Cannes, onde o derradeiro longa-metragem de Ken Loach disputou a Palma de Ouro, ele garantiu à imprensa francesa não estar preocupado com seu futuro como ator. Afinal – assegurou – “como Loach diz que esse será seu último filme, não serei mais convocado por ele para novo e tamanho desafio”.

O cineasta, registre-se, encantou-se pelo bombeiro aposentado ao deparar-se com o conhecimento que ele tinha das lutas sindicais do norte da Inglaterra e pelo seu carregado sotaque. Carregado como convém a um mineiro nortista.

Se há um procedimento que Ken Loach nunca abandonou foi o de trabalhar com atores pouco ou nada conhecidos. Ele, que já dirigiu atores conhecidos como Terence Stamp (“Poor Cow”), Peter Mullan (“Meu Nome é Joe”), Benício del Toro, Tim Roth e Adrien Brody (“Pão e Rosas”) nunca se cansou de buscar atores sociais. Seja na Escócia, na Irlanda, na Nicarágua ou no norte da Inglaterra.

Em “O Último Pub”, o elenco nos parece totalmente desconhecido. Só um loachiano de carteirinha se lembrará do rosto de Dave Turner nos secundários papeis que ele desempenhou em “Eu, Daniel Blake” e “Você Não Estava Aqui”.

 

O Último Pub | The Old Oak
Reino Unido, França, Bélgica, 113 minutos
Direção: Ken Loach
Roteiro: Paul Laverty
Elenco: Dave Turner, Ebla Mari, Trevor Fox, Col Tait, Debbie Honeywood, Joe Armstrong, Reuben Bainbridge
Fotografia: Robbie Ryan
Trilha sonora: George Fenton
Distribuição: Synapse

 

FILMOGRAFIA
Ken Loach (Inglaterra, 17 de junho de 1936)
Diretor de 40 longas-metragens (documentais e ficcionais) feitos para TV ou cinema

2023 – “O Último Pub”
2020 – “Você Não Estava Aqui”
2016 – “Eu, Daniel Blake” (Palma de Ouro em Cannes)
2016 – “Conversa com Jeremy Corbyn” (doc)
2014 – “Jimmy’s Hall”
2013 – “O Espírito de 45”(doc)
2012 – “A Parte dos Anjos”
2010 – “Rota Irlandesa”
2009 – “À Procura de Eric”
2007 – “Mundo Livre”
2006 – “Ventos da Liberdade” (Palma de Ouro em Cannes)
2004 – “Apenas Um Beijo”
2002 – “Felizes Dezesseis”
2001 – “The Navigators” (doc)
2000 – “Pão e Rosas”
1998 – “Meu Nome é Joe”
1996 – “Uma Canção para Carla”
1995 – “Terra e Liberdade”
1994 – “Ladybird, Ladybird”
1993 – “Chuva de Pedras”
1991 – “Riff-Raff”
1990 – “Agenda Secreta”
1986 – “Fatherland”
1984 – “Which Side Are You On?” (doc)
1983 – “The Read and the Blue” (doc)
1981 – “A Question of Leadership”
1981- “Look and Smiles”
1980 – “The Gamekeeper”
1978 – “Black Jack”
1977 – “The Price of Coal”
1975 – “Days of Hope”
1972 – “Vida em Família”
1971 – “The Rank and File”
1969 – “The Big Flame”
1969 – “After a Lifetime”
1969 – “Kes”
1968 – “A Lágrima Secreta” (Poor Cow)
1967 – “In Two Minds” (BBC, 75 minutos)
1966 – “Cathy Comme Home” (BBC, 75 minutos)
1965 – “Up the Junction” (BBC, 75 minutos)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.