“Black Tea” mostra as complexas relações entre África e China em tempos de expansão da Rota da Seda
Por Maria do Rosário Caetano
O cineasta mauritano Abderrahmane Sissako (foto) está no Brasil para mostrar e debater seu mais novo longa-metragem ficcional, “Black Tea – O Aroma do Amor”, que participou da disputa pelo Urso de Ouro no Festival de Berlim.
O filme, que tem a expansão da “Rota da Seda” pela África como ambiente econômico e social, é o convidado de honra da Mostra de Cinemas Africanos. O evento, organizado pela pesquisadora Ana Camila Esteves, dedicado à difusão (no Brasil) do cinema dos mais diversos países da África, acontece no CineSesc até essa quarta-feira, 18 de setembro. Daqui, segue para a Bahia, onde movimentará, por uma semana (de 18 a 25 desse mês), exibições e conversas entre os cineastas convidados e o público soteropolitano. O globe trotter Abderrahmane Sissako é, claro, um deles.
A Mostra de Cinemas Africanos mobilizará cinco salas na capital baiana — o Cineteatro Dois de Julho, o Cinema do Museu, o CineMAM, o Circuito Saladearte e o Cinema da UFBa (Universidade Federal da Bahia).
O mauritano Sissako nasceu em 1961, em Kiffa, filho de pai malinense e mãe originária da Mauritânia. Ainda infante, Sissako e família mudaram-se para o Mali. Foi neste país que o adolescente concluiu seus estudos de nível médio. Em 1983, aos 22 anos, foi estudar cinema na mais antiga escola audiovisual do mundo, a VGIK (Universidade de Cinema de Moscou, que hoje carrega o nome do cineasta Sergei Guerassimov, um de seus mais dedicados docentes).
Anderrahmane Sissako permaneceu em Moscou até 1989 e lá realizou seus primeiros curtas e médias-metragens. Depois da experiência na União Soviética, ele regressou à África, continente que representou, com seus primeiros filmes, em muitos festivais europeus. Até radicar-se na França, onde vive e trabalha há quase três décadas. Mas sempre ocupado com temáticas africanas.
Nessa terça-feira, 17 de setembro, o mauritano vai apresentar e, depois, debater com o público paulistano, no CineSesc, o mais cosmopolita de seus filmes — “Black Tea – O Aroma do Amor”. Chá preto, registre-se, é a metáfora usada para definir sua protagonista, uma jovem da Costa do Marfim, chamada Aya.
Esta nova narrativa de Sissako traz ressonâncias de “Amor à Flor da Pele”, o mais sensorial dos filmes de Wong Kar-Wai, realizado em 2001 e hoje objeto de culto entre muitos cinéfilos. Como o filme de Kar-Wai, protagonizado por Maggie Cheung e Tony Leung, o longa de Sissako se passa na China e gira em torno de dois personagens — a jovem africana Aya (Nina Mélo) e o chinês Cai (Chang Han), dono de pequena empresa dedicada ao comércio de chá. A belíssima fotografia de Aymerick Pilarski envolve os protagonistas em ambientes muito coloridos (em especial, o salão de beleza frequentado pela marfinense) e a casa de chá, aromatizada pela fragrância das mais variadas ervas.
Aya é vista no início de filme, em seu país de origem, vestida de noiva e pronta para casar-se com um conterrâneo bem situado na escala social. Mas ela dirá não ao noivo causando perplexidade a ele, ao oficiante e aos convidados. E se mudará para uma cidade na província de Cantão, na China. Não se pode esquecer que são, hoje, das mais estreitas, as relações da potência oriental com as diversas economias africanas. A Rota da Seda expande-se a olhos vistos e há chineses trabalhando em grandes projetos na África magrebiana, na Meridional, Ocidental e Oriental.
Cai ensinará Aya a entender a ritualística do chá. Para os asiáticos, os chineses em especial, “não se bebe chá, saboreia-se”. Ele é degustado, em três goles: o primeiro “revela a atmosfera”, o segundo, “a fragrância”, e o derradeiro “abre nossa mente e exalta nossos sentimentos”. É nesse universo que a jovem marfinense se envolverá com seu empregador. Mas nada no filme é muito definido. O real e o onírico se misturam. Sissako trabalha mais com ideias sensoriais, que com uma história concreta.
Separado da esposa, Cai deixou uma filha em Cabo Verde, fruto de experiência extraconjugal. Ele irá ao país-ilha, ex-colônia portuguesa, para conhecer a jovem, uma sino-africana de olhos puxados, cabelos crespos e pele morena. Lá, ouvirá mornas interpretadas por cantora cabo-verdiana, herdeira da malemolência de Cesária Évora. Aliás, imensa foto da estrela-símbolo de Cabo Verde será vista colada à parede da singela casa de shows. O filme é falado, quase em tempo integral, em idioma chinês, mas se ouvirá também o francês (da Côte d’Ivoire), o árabe, pois comerciantes do Magreb estarão na China para comprar mercadorias, e o crioulo cabo-verdiano.
O país que Aya escolheu para viver passa por imensas transformações. Mas o racismo persiste na China (ainda) socialista e contemporânea. Quando os sogros e a ex-esposa de Cai o visitam para um jantar, a marfinense terá que esconder-se no quarto. Só o filho do empresário do chá terá os olhos abertos para a plena aceitação dos africanos. “Se queremos ampliar a Rota da Seda, antes de tudo temos que aceitar o outro”, dirá, convicto, aos avós. Os velhos pensam diferente e não escondem o preconceito contra os que vieram da África.
Abderrahmane Sissako, que integrou o mais recente júri do Festival de Veneza (este presidido por Isabelle Huppert e integrado por Kleber Mendonça, Giuseppe Tornatore, Agnieska Holland e outros), conhece o mundo e os preconceitos que marcam a história dos povos. Afinal, ele é filho da África árabe. Mas não se dá por vencido. “Black Tea – O Aroma do Amor” é um filme que mostra, com sutileza, o processo de globalização, gerador de imensos deslocamentos de grupos étnicos para os mais diversos destinos. Deslocamentos que causam verdadeiras convulsões em países (em especial, os europeus e os EUA), que valem-se da mão de obra estrangeira, mas teimam em fechar suas fronteiras ao diferente.
Pode-se, até, não gostar do clima melancólico, sentimental e enigmático que envolve o filme de Sissako. E também do excesso de temas por ele insinuados. Mas ninguém poderá negar que o realizador mauritano (e cidadão do mundo) soube criar envolvente atmosfera visual. E trazer, sem nenhum didatismo, questão crucial de nosso tempo — o racismo. Além de construir a história de uma mulher em busca de sua autoafirmação.
Em 2015, Sissako viu seu longa-metragem “Timbuktu” indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Antes, o mesmo filme lhe rendera o prêmio do Júri Ecumênico e o Troféu François Chalais, ambos no Festival de Cannes. Ele é figura reconhecida e frequente nos três maiores festivais do mundo.
Quem não puder assistir, nesse momento, a “Black Tea” (em São Paulo ou Salvador), na companhia do diretor, poderá fazê-lo em novembro (a partir do dia 28), quando o filme será lançado pela Imovision, distribuidora de Jean-Thomas Bernardini, dedicada full time à difusão do audiovisual planetário. Aquele produzido nos mais diversos idiomas e em dezenas de países dos cinco continentes.
Black Tea – O Aroma do Amor | Black Tea
Mauritânia, França, China, 2024, 110 minutos
Direcão: Abderrahmane Sissako
Roteiro: Kessen Tal e Abderrahmane Sissako
Elenco: Nina Mélo, Hang Chan, Wu Ke-Xi, Michael Chang
Fotografia: Aymerick Pilarski
Trilha sonora: Armand Amar
Montagem: Nádia Ben Rachid
Figurino: Anie Melza Tiburce
Distribuição: Imovision
FILMOGRAFIA
Abderrahmane Sissako (Kiffa, Mauritânia, 1961)
2024 – “Black Tea – O Aroma do Amor” (ficção)
2014 – “Timbuktu” (ficção)
2008 – “8” (filme coletivo, em parceria com Mira Nair, Wenders, García Bernal, Jane Campion, Jan Kounen, Gaspar Nóe, Gus Van Sant)
2006 – “Bamako” (ficção)
2002 – “Abouna, Outro Pai” (ficção)
2002 – Heramakono – Esperando a Felicidade” (doc, longa-metragem)
1998 – “A Vida sobre a Terra” (ficção)
1997 – “Rostov-Luanda” (doc, longa-metragem)
1993 – “October” (média-metragem)