Emiliano Queiroz, o eterno Dirceu Borboleta, ganhou Kikito em Gramado por aparição de poucos minutos

Foto: Emiliano Queiroz como Dirceu Borboleta, em cena de “O Bem Amado” © Divulgação/TV Globo

Por Maria do Rosário Caetano

Emiliano Queiroz, que morreu, nessa sexta-feira, 4 de outubro, aos 88 anos, ficará para sempre na memória de seus fãs como o atrapalhado e serviçal Dirceu Borboleta, aquele que tudo fazia para agradar ao prefeito de Sucupira, Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo).

Quando lhe coube interpretar o ingênuo Dirceu, ele já desfrutava de grande respeito como ator de teatro e cinema. Mas a telenovela de Dias Gomes – “O Bem Amado”, a primeira realizada em cores no Brasil — faria dele um astro popular, reconhecido na rua e chamado pelo nome fictício. Não pelo da carteira de identidade.

O sucesso foi tão grande, que pouco depois, o folhetim daria origem a um seriado com os mesmos astros (em novas e satíricas aventuras): o gaguejante Dirceu Borboleta, claro!, o prefeito Paraguaçu, que só pensava em inaugurar sua “maior obra”, o cemitério municipal, o pistoleiro Zeca Diabo (Lima Duarte), as elétricas Irmãs Cajazeira (Ilva Niño, Dorinha Duval e Ida Gomes), o sonhador Zelão das Asas (Milton Gonçalves), o hilário Nezinho do Jegue (Wilson Aguiar), o charmoso Doutor Juarez (Jardel Filho), a bela Telma Paraguaçu (Sandra Bréa). Enfim, um elenco estelar.

A telenovela global estreou em 1973. Emiliano Queiroz tinha 35 anos. Nascido em 1938, em Aracati, no Ceará, ele foi criado em Fortaleza, onde iniciaria, no rádio, sua vida artística. Mudou-se para São Paulo, disposto a estudar arte dramática na Federação Paulista de Teatro. Mas o começo foi duríssimo. Ninguém lhe oferecia um papel capaz de revelá-lo ao mercado e assegurar-lhe a sobrevivência. Passou por circos, boates, foi dançarino e atuou em peças infantis. Como nada dava certo, empregou-se como datilógrafo, sem esquecer seu sonho.

Em 1962, no Rio de Janeiro, conseguiu um pequeno papel no filme “Pedro e Paulo”, coprodução Argentina-Brasil, comandada por Angel Acciaresi. Coube-lhe o papel de Samuelzinho, em curiosa história protagonizada por dois padres (Jardel Filho e José Langlais), que se metiam em morro carioca dispostos a “curar” transviados (interpretados por Francisco Cuoco, Fernando Barcelos e Paulo Copacabana, liderados por Oswaldo Loureiro).

Os argentinos assistiram a este filme, que trazia um “agitador esquerdista” (Sadi Cabral), sob o curioso nome de “Tercer Mundo”. O sonho político peronista preconizava um terceiro sistema de Governo – nem capitalismo, nem comunismo – e, anos mais tarde, Fernando Solanas e Octavio Getino criariam o Tercer Cine. “La Hora de los Hornos” seria o filme-manifesto do “Terceiro Cinema” (nem entretenimento hollywoodiano, nem o cerebralismo europeu). Mas essa é uma outra história. Voltemos a Emiliano Queiroz.

Um ano depois de “Pedro e Paulo”, o ator cearense faria participação em “O Lamparina”, um ‘nordestern’ cômico estrelado pelo campeão de bilheterias Amacio Mazzaropi. Atuaria, também, ao longo da década de 1960, em “Vidas Estranhas” (Tony Rabatoni), “Engraçadinha, Depois dos 30” e “Carnaval Barra Limpa” (ambos de J.B. Tanko), “Enfim Sós… Um com o Outro” (Wilson Silva), “Jovens pra Frente” (Alcino Diniz) e “O Homem que Comprou o Mundo” (Eduardo Coutinho).

A década de 1970 iria assistir à consagração de Emiliano Queiroz. Braz Chediak o convocaria para duas adaptações de textos de Plínio Marcos, que haviam estourado no teatro. O primeiro, “Dois Perdidos numa Noite Suja”, deu a Emiliano e Nelson Xavier os papeis de protagonistas absolutos. Dois marginais fodidos, Tonho e Paco, que acabavam, depois de um assalto, por se autodestruirem.

No filme seguinte, “Navalha na Carne”, igualmente produzido por Jece Valadão, Emiliano faria Veludo, bicha pobre, que se apropriaria do dinheiro da prostituta Neusa Suely (Glauce Rocha), explorada pelo cafetão Vado (o próprio, e eterno “cafajeste”, Jece Valadão). Veludo queria apenas atrair um jovem por quem estava interessado.

O ator cearense, que já provara seu talento no teatro, chegava finalmente à condição de protagonista cinematográfico. Depois do duo com Xavier, viria o trio com Glauce e Jece. Os dois filmes alcançaram boa aceitação nos cinemas. E, ainda hoje, chamam atenção dos que os assistem.

A televisão, que busca nos palcos e nas telas de cinema seus grandes nomes — galãs e mocinhas costumavam brotar das passarelas ou indicações de agências de publicidade — ofereceria a Emiliano, depois das obras plinianas, o papel consagrador de Dirceu Borboleta. Dali em diante, tudo seria diferente.

Como gosta de dizer o ator Rui Rezende — “meu obituário será garantido pelo Professor Astromar, de Roque Santeiro” — os obituários do intérprete de Dirceu Borboleta, escritos nesse momento, 51 anos da estreia de “O Bem Amado”, evocam, em uníssono, seu personagem mais famoso.

Emiliano Queiroz faria, ainda, muitos outros filmes depois do sucesso de “Dois Perdidos” e “Navalha na Carne” (e do estouro na novela de Dias Gomes). Atuaria, em filme protagonizado por Taiguara (“O Bolão”, de Wilson Silva, diretor que mais o convocou para seus elencos). Uma divertida comédia sobre a Loteria Esportiva, mania nacional naqueles primeiros anos da década de 1970.

No folhetim patriótico “Independência ou Morte” (Carlos Coimbra, 1972), Emiliano interpretaria – e quem mais poderia ser? – Chalaça, o companheiro de farras e alcoviteiro de Dom Pedro I.

O ator seguiria aparecendo em filmes que não lhe davam o destaque merecido – “Uma Pantera em minha Cama“ (Carlos Hugo Christensen), “As Confissões do Frei Abóbora” (Braz Chediak), “As Quatro Chaves Mágicas” (Alberto Salvá), “Garotas em Maus Lençóis” (Wilson Silva), “A Difícil Vida Fácil” (Alberto Pieralisi), “Mestiça” (Lenita Perroy), “Deixa Amorzinho… Deixa” (Saul Lachtermacher), “A Extorsão” (Flavio Tambellini), “Intimidade” (Michel Sarne e Perry Salles), “O Pistoleiro” (Oscar Santana), “O Vampiro de Copacabana” (Xavier de Oliveira), “Amor Maldito” (Adélia Sampaio), “Um Brasileiro Chamado Rosaflor” (Geraldo Miranda) e “O Grande Mentecapto” (Oswaldo Caldeira).

Dois filmes, ambos exibidos em Gramado nos anos de desmonte do cinema brasileiro, quando os festivais caçavam filme a laço, merecem espaço à parte. “Primeiro de Abril, Brasil” foi dirigido por Maria Letícia, companheira e amiga eterna de Emiliano. O filme, protagonizado por Rosamaria Murtinho, levou anos para ficar pronto. E seu roteiro, coescrito por Emiliano, nasceu de recriação de peça de Leilah Assunção (“Vejo um Vulto na Janela, me Acudam que Sou Donzela”), misturada a cenas documentais.

O segundo, “Stelinha” (Miguel Faria Jr, 1990), causou sensação em Gramado. Protagonizado por Esther Góes, o filme se destacaria em safra já combalida pelo fim dos mecanismos de fomento ao cinema brasileiro. O papel para o qual Emiliano Queiroz fôra escalado poderia ser recebido como mera ponta de luxo. Afinal, dispunha de parcos minutos para dar vida a um devoto admirador, já entrado nos anos, da cantora Stelinha.

O que ator fez em sua breve participação resultou arrebatador. Seu olhar e gestos, plenos de amor por sua idolatrada musa, deixaram Gramado (público e júri oficial) em estado de êxtase. Ele arrebatou o Troféu Kikito de melhor ator coadjuvante.

Ao longa da década de 1990, Emiliano não poderia desfrutar dos êxitos dos poucos minutos que lhe haviam rendido o cobiçado Kikito. O cinema brasileiro estava muito desarticulado. Lutava para se reconstruir e uma nova geração de diretores, vinda do curta-metragem, convocava outros nomes para seus elencos. Emiliano fecharia a década com modestas atuações no telefilme “Didi Malasarte” (Rogério Gomes, 1998) e “Tiradentes” (Oswaldo Caldeira, 1999).

Nos anos 2000, a produção cresceu e Emiliano Queiroz voltou a ser convidado para vários filmes, mas em nenhum deles como protagonista. Começou o novo século, já sexagenário, atuando em “O Xangô de Baker Street” (Miguel Faria Jr, 2001) e no vibrante “Madame Satã” (Karim Aïnouz, 2002). Que se fizeram seguir  de “Mulheres do Brasil” (Malu di Martino, 2006), “Casa de Areia” (Andrucha Waddington), “Feliz Natal” (Selton Mello, 2008), “A Suprema Felicidade” (Arnaldo Jabor, 2012), “Meu Pé de Laranja Lima” (Marcos Bernstein, 2012), “O Lobo Atrás da Porta” (Fernando Coimbra, 2012), “O Concurso” (Pedro Vasconcelos, 2013), “O Fim e os Meios” (Murilo Salles, 2014), “A Floresta que se Move” (Vinícius Coimbra, 2015) e “O Paciente – O Caso Tancredo” (Sérgio Rezende, 2018).

Atuaria, ainda, em três filmes de Xuxa, todos esquecíveis: “Xuxa e os Duendes”, “Xuxa e os Duendes 2” e “Xuxa Gêmeas”. O nome de Emiliano apareceria nos créditos de duas produções realizadas em condições semiamadoras – “A Lenda do Gato Preto” (Clébio Viriato, filmado no Quixadá cearense) e “O Amigo Invisível”. Este assinado por seu anjo da guarda, a atriz, cineasta e companheira Maria Letícia. Nenhum dos dois teve lançamento digno do nome.

Emiliano Queiroz integra o elenco de um filme inédito, “Avenida Beira-Mar”, de Maju de Paiva e Bernardo Florin. Graças aos serviços de TV aberta, por assinatura (Canal Brasil) e streaming das Organizações Globo, poderá ser visto (e revisto) em reprises de dezenas de telenovelas e séries nas quais atuou. Afinal, ele estreou, em 1965, no primeiro folhetim da nascente TV Globo: “Ilusões Perdidas”, adaptação do mais famoso dos livros de Honoré de Balzac. Enquanto a saúde permitiu, Emiliano seguiu atuando nas telenovelas da Globo, emissora que comemorará, ano que vem e sem ele, seus 60 anos.

A Revista de CINEMA pediu a Braz Chediak, responsável por dois dos mais notáveis papeis cinematográficos de Emiliano Queiroz, um depoimento sobre sua parceria com o ator. Eis seu testemunho intitulado “Irmão de arte e de vida”:

“Emiliano Queiroz foi mais que um grande ator. Foi um grande amigo. Um irmão. Nos conhecemos desde muito jovens e fizemos três filmes juntos: ‘Navalha na Carne’ – do qual ele participou também como roteirista, ‘Dois Perdidos numa Noite Suja’ e num pequenino papel em ‘Confissões de Frei Abóbora’, no qual ele também foi meu assistente, juntamente com Nelson Xavier.

Falar de suas interpretações nos dois Plínios (‘Navalha’ e ‘Dois Perdidos’) é falar o óbvio: são geniais. Em ‘Navalha na Carne’, ele pesquisou muito, frequentou a Lapa e seus bordéis, percorreu ruas e vielas onde a miséria e a grandeza humana se misturavam. Sentiu o que seus personagens vivos sentiam.

Seu Veludo começou a tomar forma quando viu um rapaz que morava na Rua Taylor; os cabelos pintados há muito tempo, com as raízes diferentes da cor da pintura, o chinelo menor que o pé, que levantava a dúvida: ‘ele o achou no lixo? Ganhou de presente? Roubou?’.

Em ‘Dois Perdidos numa Noite Suja’, sua pesquisa também foi rigorosa. Era assim que ele trabalhava, com rigor, seriedade e imenso amor e compaixão por todos os personagens e pela pobre gente que via nos sombrios becos das zonas de prostituição…

Sua companheira da vida inteira, Letícia, também foi uma grande amiga, amiga de minha ex-mulher, amiga de meu filho. Há três dias ela me telefonou, falando da saúde do Emiliano. Ela esperava sua recuperação. Prometi visita-los quando fosse ao Rio…

Emiliano e Nelson Xavier estiveram sempre presentes em minha vida. Nelson me ligou poucos dias antes de partir, falou de sua saúde, da alegria de estar com a filha, Sofia, do filho que só há pouco tempo conhecera… Ele e Emiliano eram irmãos. Agora, ambos se foram.

De ‘Navalha na Carne’ e ‘Dois Perdidos numa Noite Suja’, apenas meu assistente, Sindoval, e eu estamos vivos. É assim. ‘O tempo é o senhor da razão!’. É ele que escolhe o momento de cada um.

É o tempo que escolhe grandes amigos, como escolheu pra mim o grande amigo, o grande ator.

Emiliano Queiroz partiu no dia de Francisco de Assis, o Santo que, como ele, fez da vida uma amiga. Partiu no mesmo dia em que, há 30 anos, partiu meu pai.

Que se encontrem nos Páramos, onde tudo é luz, tudo é um grande e cósmico abraço de Encontro. Onde se tornaram parte e o todo do Grande OM.”

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