Festival de Brasília aplaude Ruy Guerra de pé e recebe “A Fúria” com palmas catárticas

Foto: Ruy Guerra © Humberto Araújo

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília (DF)

Nunca se vira algo semelhante na longa história do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro: um cineasta, participante da disputa pelo Troféu Candango, ser aplaudido de pé ao apresentar seu filme.

Pois isso aconteceu no momento em que Ruy Guerra, de 93 anos, subiu ao palco do Cine Brasília, com sua equipe, posicionou-se no proscênio e começou a apresentar “A Fúria”, fecho de trilogia iniciada em 1964, com “Os Fuzis”, e sequenciada, em 1977, com “A Queda”.

Ao lado da codiretora Luciana Mazzotti, do diretor de fotografia Luiz Abramo e de outros integrantes de sua trupe, Ruy Guerra falou longamente sobre aspectos da linguagem de seu novíssimo longa-metragem. E pediu que todos os que estavam com ele no palco destacassem o filme por seus aspectos criativos. E que não perdessem tempo falando dele, o diretor.

O cineasta, nascido em Moçambique, educado na Europa e brasileiro por opção, abordou, sim, aspectos estéticos de composição de seu décimo-oitavo longa-metragem, mas não perdeu a chance de mobilizar a plateia com suas costumeiras falas políticas. E incendiárias. Como incendiário é seu filme.

O diretor de “Os Cafajestes” evocou os “tempos sombrios” ora vividos pela humanidade. “Nossa sociedade está doente. Aqui e no mundo inteiro, ela vai murchando em seus valores civilizacionais”.

Uma década atrás, Ruy Guerra anunciou que arremataria a Trilogia dos Fuzis. Realizou esboços do roteiro e decidiu que Mário (Nelson Xavier), o soldado do primeiro filme e o genro do empreiteiro Salatiel (Lima Duarte), em “A Queda”, seria o protagonista. Só que, em 2017, um câncer encurtou a vida do grande ator.

“Tivemos que mudar tudo”, disse Ruy à Revista de CINEMA. “Mudamos o roteiro e transformamos Mário, agora interpretado por Ricardo Blat, em um homem assassinado pela ditadura militar brasileira, que sai das entranhas da terra, com seu rosto marcado por imensas cicatrizes, em busca de vingança”. Sim, futuros espectadores, saibam que o politizadíssimo diretor de “Estorvo”, estabelece, dessa feita, diálogo com o cinema de gênero. No caso com o terror.

“Foi o filme mais difícil de toda minha carreira”, admitiu. E explicou a razão principal das dificuldades que o cercaram nos últimos anos.

“Quatro atores do filme morreram durante o processo. Depois de Nelson Xavier, que não pôde interpretar Mário, morreram Antônio Pedro, Roberto Frota e Paulo Cezar Peréio”. Estes três ainda tiveram tempo de realizar seus papéis. Pereio, o único “fuzil” a aparecer em todos os filmes da Trilogia, encontrava-se, durante as filmagens, já muito doente. Mesmo assim, empenhou todas as energias que lhe restavam e deixou sua imagem impressa em “A Fúria”.

Ruy Guerra não citou explicitamente o Governo Jair Bolsonaro (o então presidente da República aparece no filme encarnado no ator Joelson Medeiros). Mas houve imenso mal estar durante a gravação de motociata verde-amarela, semelhante às que costumavam reunir seguidores do líder da extrema-direita brasileira.

Cena — ficcional — de um atentado ao então presidente, realizada para o filme, foi noticiada na imprensa em 16 de julho de 2022 como motivo de investigação ordenada pelo então ministro da Justiça, Anderson Torres.

Da segunda parte da Trilogia dos Fuzis, quem retorna, com destaque, é Lima Duarte. O ator, também nonagenário, reencarna o empreiteiro Salatiel, que vive em sua mansão, equipada como hospital doméstico, ao lado da neta, a rebelde Laura (Simone Spoladore).

A construção civil fez de Salatiel um ‘capo’ bilionário, que financia campanhas parlamentares, em especial, a de Feijó (Daniel Filho, de “Os Cafajestes”), candidato à presidência da Câmara dos Deputados. Um êmulo, claro, de Arthur Lira.

Trechos de “Os Fuzis”, registrados pela seminal fotografia de Ricardo Aronovich, serão vistos em preto-e-branco contrastado. Destaque para a sequência em que o soldado interpretado por Peréio esquadrinha o uso de um fuzil. De antologia. Mesmo caso da sequência resgatada de “A Queda”. Nela, vemos Isabel Ribeiro (1941-1990), intérprete da mulher do personagem de Nelson Xavier, discutindo com o pai, Salatiel (desempenho notável e diabólico de Lima Duarte). Imagens feitas pelo diretor de fotografia Edgar Moura.

“A Fúria” é a ficção que melhor registrou, no calor da hora, o pesadelo político dos anos Bolsonaro. Quando Mário sai das profundezas da terra e retorna ao mundo dos vivos, ele recebe acolhimento do indígena Palavra (Urutau Guajajara). Em sua busca por vingança, ele contará, ainda, com a ajuda de três mulheres — a deputada em ascensão Petra Machado (Grace Passô), a líder de facção paramilitar Monalisa (Lux Nègre, atriz trans) e Laura, a neta de Salatiel.

Petra e Monalisa são mulheres negras. Palavra é um carismático representante dos povos originários. Os jovens roteiristas Leandro Saraiva, vindo do Coletivo Sinopse, da USP, e Pedro Freire, diretor e roteirista do festejadíssimo “Malu”, elaboraram a convulsiva (e definitiva) trama do filme. E o fizeram de olho na crônica diária do pesadelo brasileiro-bolsonarista. E em estreita parceria com os diretores Ruy Guerra e Luciana Mazzotti.

Os últimos filmes de Ruy Guerra dialogam com o cinema brechtiano do dinamarquês  Lars von Trier. O de “Dogville” e “Manderlay”. Ou seja, abandonaram locações naturalistas e, centrados nos personagens, acontecem em espaço imaginário. Ou onírico. No caso do dinamarquês, riscos no chão delimitam a geografia espacial. No de Ruy Guerra (foi assim em “Quase Memória”, em “Aos Pedaços”), o espaço é abstrato, composto com massas luminosas e objetos rarefeitos.

Luciana Mazzotti, que foi diretora-assistente de “Aos Pedaços”, contou no palco do Cine Brasília que Ruy Guerra, diretor consagrado e em atividade aos 93 anos, fez questão de “distribuir seu poder com uma mulher”, parceira na concepção e direção do filme.

“A Fúria” amplia a presença feminina em sua narrativa. “Os Fuzis” era um filme de homens — soldados que chegavam a povoado miserável para defender a propriedade de um poderoso de possível saque perpetuado por flagelados pela seca. Só Maria Gladys ganhava destaque ao interpretar a moça que viveria rascante sequência de amor com o Mário de Nelson Xavier.

Em “A Queda”, os homens continuam no centro da narrativa, envoltos com as obras do Metrô carioca. Mas Isabel Ribeiro ganha destaque naquele mundo dominado pela testosterona.

Em “A Fúria”, os homens (o deputado ambicioso, o empreiteiro bilionário, até o presidente de extrema-direita etc., etc.) continuam no centro da trama. Mas as mulheres ganham maior protagonismo. As personagens de Grace Passô e Lux Nègre, enchem a tela. A primeira com discurso escandido de forma visceral. Como é do feitio dessa grande atriz mineira.

No final da sessão de “A Fúria”, no Cine Brasília, os aplausos foram catárticos. A trama, que arrancara risos em projeção aberta (especialmente com as aparições do presidente-zumbi-verde-amarelo), causou algumas (mesmo que poucas!) defecções. Decerto de alguns dos simpatizantes do ex-presidente.

A maioria absoluta do público permaneceu na Sala Vladimir Carvalho do Cine Brasília e aplaudiu demoradamente os créditos do furioso filme, embalados pela pauleira sonora de Plínio Profeta. Bota pauleira nisso. Ruy Guerra continua um subversivo incurável!

Dois curtas-metragens fluminenses completaram a safra selecionada para a competição no formato — o documentário “Dois Nilos”, de Samuel Lobo e Rodrigo de Janeiro, e a ficção “E seu Corpo É Belo”, de Yuri Costa.

“Dois Nilos”, referência duplicada ao caudaloso e fértil rio egípcio, resgata figura e discursos do cineasta Afrânio Vital. Dono de fala envolvente, Afrânio divide suas rememorações com o ator Wilson Rabelo, de “Bacurau” e “O Pai da Rita”.

Diretor de curtas e de três longas-metragens (“Os Noivos”, “A Longa Noite de Prazer” e “Estranho Jogo do Sexo”), ele começou no cinema no início da década de 1970 , como faz-tudo em “Anjos e Demônios”, de Carlos Hugo Christensen. Depois, trabalhou com Walter Hugo Khouri. Dirigiu dois curtas fotografados por Murilo Salles (um deles sobre Augusto dos Anjos). Aliás, Afrânio presta, em “Dois Nilos”, homenagem ao poeta paraibano, recitando um de seus mórbidos e fascinantes sonetos.

Durante os 17 minutos do documentário de Lobo e Janeiro, Afrânio Vital caminhará pela Cinelândia carioca e lamentará a destruição de cine-palácios responsáveis pelos anos de ouro da exibição no Brasil. Muitos foram destruídos a marretadas. Outro, o Pathé, virou templo da Igreja Universal. Só o Odeon sobrevive, apesar de todas as dificuldades.

O cineasta aposentado de seu ofício por múltiplas razões, constatará que seus curtas e longas-metragens também foram destruídos pelo tempo e pela incúria. Deixaram poucos vestígios. Por isso, não são, nem serão, exibidos no Canal Brasil, nem chegarão ao streaming.

A ficção do nilopolitano Yuri Costa narra, ao longo de 24 minutos, conturbada história de amor homoafetivo, ambientada em bailes soul music, aqueles que sacudiram as noites suburbano-cariocas, em especial, na década de 1970.

O jovem Carlos reencontra, num baile black, seu ex-namorado, Tony, ao lado de novo parceiro. O encontro fará aflorar mágoas doloridas. O filme vai, então, introduzir elementos de terror no romance embalado por hits da soul music.

No palco do Cine Brasília, Yuri Costa, que é mestre em Comunicação pela UFRJ, chamou atenção do público para seu projeto estético, que navega pelas águas do afrossurrealismo.

A Mostra Brasília, promovida pela Assembleia Legislativa do DF, exibiu os três últimos filmes de sua competição — o longa documental “Tesouro Natterer”, de Renato Barbieri, e os curtas “Cemitério Verde”, ficção de Maurício Chades, e “Kwat e Jaí — Os Bebês Heróis do Xingu”, animação de Clarice Cardell.

“Tesouro Natterer” venceu, em abril último, a parte brasileira do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade. Por isso, credenciou-se a disputar vaga na lista de longas documentais que concorrerão ao Oscar, março de 2025. A lista de 15 semifinalistas será anunciada pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, no próximo dia 17.

O filme de Barbieri tem parentesco temático com um dos títulos que despontam em várias categorias do Oscar  — o franco-senegalês “Dahomey“, da atriz e cineasta Mati Diop.

Vencedor do Urso de Ouro, em Berlim, o filme africano registra a devolução de parte dos tesouros do continente negro espoliados pelos franceses. O de Barbieri mostra o trabalho do naturalista austríaco Johann Natterer, integrante, no século XIX, de Expedição Austríaca patrocinada pela então Arquiduquesa Leopoldina (depois imperatriz do Brasil).

Natterer permaneceu em solo brasileiro, a partir de 1817, por quase duas décadas e catalogou coleção de mais de 50 mil itens, todos trasladados para a Áustria. Essa riquíssima coleção de nossa história natural segue depositada em dois dos principais museus de Viena, capital da Áustria.

Esse material deve ser devolvido ao Brasil? Esse é um dos temas do filme brasileiro.

Já o documentário de Diop vai fundo na questão da espoliação que o Primeiro Mundo promoveu em suas colônias. Por isso, sua temperatura é bem mais quente-efervescente que a adotada, em tom mais conciliador, pelo documentário brasileiro.

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