Festival de Brasília faz “Pacto com a Viola”, mostra bombeiro inflamável e futurismo Guarani

Foto: Equipe do longa “Pacto da Viola”, de Guilherme Bacalhao

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília (DF)

A segunda noite da mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro foi marcada pelo ecletismo. O público que lotou o Cine Brasília assistiu a dois curtas — a ficção brasiliense “Inflamável”, de Rafael Ribeiro Gontijo, e a ficção futurista “Javyju – Bom Dia”, dos paulistas Kunhã Rete e Carlos Eduardo Magalhães — e ao longa candango “Pacto da Viola”, de Guilherme Bacalhao.

Com a exibição de dois filmes brasilienses, era normal ver o palco do cinema ocupado por grandes equipes artísticas e técnicas. Gontijo se fez acompanhar de seu protagonista, Eduardo Gorck, e de uma dezena de atores coadjuvantes, técnicos e produtores.

Bacalhao apresentou seu longa “Pacto da Viola” ao lado dos atores Wellington Abreu, Gabriela Corrêa, Sergio Vianna e Márcia Costa, todos brasilienses, e de muitos de seus colaboradores. Subiram ao palco uns 30 profissionais. Por sorte, a apresentação do filme se notabilizou pela síntese e eficiência.

Poucos representantes do “Pacto da Viola” fizeram uso da palavra. Nem a estrela da noite — o ator Wellington Abreu, protagonista absoluto do filme — discursou. Vale notar, aliás, o contraste de sua imagem atual (marcada por imensa barba), com a figura impressa no cartaz do “Pacto da Viola”. Nesta, o vemos mais jovem e de rosto limpo, encarnado na pele do violeiro Alex, obrigado a deixar a cidade grande rumo ao Urucuia, cidade e rio, para cuidar do pai enfermo.

Só no dia seguinte, durante o debate do “Pacto”, Wellington, ator revelado por filmes de Adirley Queirós  (“Dias de Greve”, “A Cidade é Uma Só?” e “Era uma Vez Brasília”), justificou a dessemelhança entre a figura do filme e sua estampa atual.

— “Este meu novo visual é de responsabilidade do Adirley, que me convocou para o papel de Hermógenes no seu novo filme (‘Grande Sertão, Quebrada’), que encontra-se em processo de produção.

Para em seguida, prestar sólido e fascinante testemunho sobre sua trajetória como “ator e palhaço”.

— Eu estudava numa escola, em Ceilândia, e chamava atenção por ser muito engraçado. Um dia um diretor de teatro apareceu por lá e me perguntou se, sendo tão desinibido, eu não desejava ser ator. Claro que sim, respondi. Contei com a valiosa colaboração do diretor Humberto Pendrancini e não parei mais. Já atuei em 27 espetáculos teatrais. Estou na estrada há 30 anos.

O cinema chegou à vida de Wellington Abreu algum tempo depois. Primeiro, em dois filmes de Afonso Brazza:

— Fui figurante em “Gringo Não Perdoa, Mata” e “Inferno no Gama”. Lutei, dei murro, levei soco, rolei na lama. Mas não apareci na montagem final de nenhum dos dois longas. Mas valeu a experiência e meu agitado contato com o cinema”.

Em 2008, Wellington se viu integrado à equipe de Adirley Queirós, ex-jogador de futebol e cineasta formado pela Universidade de Brasília (UnB).

O jovem realizador filmava o clipe de “Lá no Morro”, do Viela 17 (disponível no YouTube). Além de ajudar no que fosse preciso, na base do “pau prá toda obra”, Wellington conheceria o diretor com o qual estabeleceria profundas relações de amizade. E que o introduziria, agora para valer, no campo do audiovisual.

— Esse videoclipe (“Lá no Morro”) nos uniu. No ano seguinte, ele me agregava ao elenco do filme “Dias de Greve”, um divisor de águas na minha trajetória. Adirley me convidou para interpretar um marceneiro, que ao longo do processo virou um serralheiro. E me desconstruiu. Eu cheguei, com minha experiência no teatro, para representar um personagem. Ele não queria que eu ‘atuasse ou representasse’, mas sim que eu vivenciasse o serralheiro. Foi uma experiência que mudou a lógica da minha vida”.

Depois de atuar como produtor de “Fora de Campo”, incursão de Adirley no mundo do futebol, Wellington “atuaria” em dois longas-metragens do criador do coletivo Ceiperiferia (CEI-Ceilândia) — “A Cidade é Uma Só?”, obra que desconstrói o discurso da Brasília idealizada por Niemeyer e Lúcio Costa (daí a interrogação do título) e “Era uma Vez Brasília”, ficção científica em diálogo com o documentário (2017). Passados sete anos, o ator está de volta a um set comandado por Adirley (o de “Grande Sertão, Quebrada”).

Nos últimos anos, Wellington atuou no longa “New Life S.A.”, estreia do diretor fotografia André Carvalheira na realização, e ganhou o prêmio de melhor ator (na Mostra Brasília, braço candango do festival) por sua envolvente “interpretação” do professor-protagonista do vibrante e engajado curta “Escola sem Sentido”.

O ceilandense Wellington Abreu expressou, no debate brasiliense, sua gratidão a Bacalhao, que o convocou para protagonizar “Pacto da Viola” e pela oportunidade de trabalhar com colegas (todos) brasilienses, sob a supervisão da preparadora de elenco Vanise Carneiro.

A mesma Vanise cuidou da integração dos atores profissionais aos não-profissionais, estes, moradores do município mineiro de Urucuia (15 mil habitantes), onde o filme foi rodado.

Wellington definiu seu personagem, o violeiro Alex, como fruto de “aprendizado que levarei pela vida”, pois Baca (Guilherme Bacalhao) “soube documentar uma região, a urucuiana”, e ao mesmo tempo “fertilizá-la com os recursos da ficção”.

Bacalhao contou que “Pacto da Viola” nasceu da leitura do artigo “As Vicissitudes da Fama: os Dons Divinos e os Pactos Demoníacos Entre os Tocadores de Viola 10 Cordas do Norte e Noroeste Mineiro”, escrito pelo antropólogo Luzimar Paulo Pereira. O locus de tal pesquisa se deu justo nas margens do Rio Urucuia.

O roteiro do filme foi amadurecido nos últimos anos pelo cineasta e seus parceiros (Roberto Robalinho e Aurélio Aragão), primeiro com consultoria de Di Moretti, depois de Helen Beltrame-Linné, brasileira que dirigiu a Casa Ingmar Bergman, na ilha de Faro-Suécia.

Para transformar o roteiro em um longa-metragem 100% brasiliense (sem esquecer a contribuição cultural mineira), Bacalhao mudou-se com sua equipe para o Urucuia. Além da sólida experiência de André Carvalheira na direção de fotografia, o cineasta mobilizou os melhores quadros artísticos e técnicos de Brasília  — o montador Marcius Barbieri, o violeiro erudito Roberto Corrêa, na trilha sonora (em parceria com Eliezer Neto) e o produtor Getsemane “Plano B” Silva.

Na trama urdida para o filme, pai e filho são violeiros. Alex vive num centro urbano e tenta se firmar como cantor sertanejo-raiz. Mas o fracasso o persegue. Seus shows são para gatos pingados e seus CDs encalham aos montes.

O pai, Lázaro (Sérgio Vianna), vive atado ao Rio Urucuia e às suas tradições. Informado do grave estado de saúde do pai, Alex regressa às suas origens geográficas. Encontra o Urucuia tomado pelo poder do agronegócio, que se apropria da água do rio e divide caminhos com suas porteiras.

Lázaro, capitão da Folia de Reis, credita sua doença ao fato de não ter pago dívida com os santos. Só que, no sertão do Urucuia, muitos creem que a dívida foi contraída em pacto com o diabo. A dívida é, pois, demoníaca. Não divina.

Caberá a Alex definir os novos rumos de sua vida. Para salvar o pai e a si mesmo, ele terá que empreender novo mergulho nas crenças religiosas do lugar e cruzar a fina fronteira que separa os santos do diabo.

Para contar essa complexa história, Bacalhao escolheu o diálogo entre a ficção e o documentário. Não quis trilhar os caminhos do cinema de horror. E assim agiu por entender que, para os oficiantes da Folia de Reis, a devoção explícita a Deus e o temor ao diabo são parte da realidade cotidiana.

O curta candango “Inflamável” trabalhou tema de alta combustão: o perfil de um jovem integrante do Corpo de Bombeiros (Eduardo Gorck), que participou dos atos golpista do Oito de Janeiro. Depois de ser suspenso pela corporação, ele vê chegada a hora do regresso ao batente. Incapaz de compreender seus desejos, o rapaz ouve conselhos da mãe e convive com sua bela e solar namorada. Nem assim consegue iluminar suas zonas de sombra. E são essas recorrentes zonas de sombra que o levarão a agir como um moralista ressentido.

O diretor e roteirista Rafael Ribeiro Gontijo explicitou, no debate brasiliense, sua intenção de aprofundar o perfil de uma personagem (o bombeiro Carlos) movida pelo ódio e pelo revanchismo. E quis fazê-lo sem apelar a símbolos óbvios. Ou seja, sem estabelecer conexão direta entre Carlos e o Bolsonarismo, com seu programa extremista e seus símbolos verde-amarelos.

Carlos Eduardo Magalhães, que realizou “Javyju – Bom Dia”, em parceria com a cacica Kunhã Rete, debateu seu novo filme e justificou a opção pela ficção científica: “os povos originários, incluindo os Guarani, gostam de realizar previsões futuristas. Por isso, nosso filme se passa em futuro próximo, depois que a Terra foi devastada”.

Filmado na aldeia Guarani do Jaraguá, “Bom Dia” nos mostra os poucos sobreviventes da hecatombe. Entre eles, estão os Guarani, que graças à proteção dos Encantados, resistiram. O Pajé da aldeia convoca três jovens a visitarem a metrópole destruída em busca de respostas úteis ao futuro.

Carlos Eduardo dedica-se, há 30 anos, ao audiovisual. Primeiro como assistente de direção de muitos filmes e comerciais publicitários. Até realizar sua estreia, em 2018, com “Palavra Cantada em 3D”, sobre a formação musical paulistana que encanta a crianças e adultos.

Em 2018, iniciou sua parceria com os Guarani e recebeu o Prêmio Rigoberta Menchu em festival canadense dedicado aos povos originários. O filme laureado — “Ara Pyau – Primavera Guarani” — rendeu alguns atritos com o povo indígena.

Já “Javyju”, que significa “um longo Bom Dia”, nasceu profundamente integrado aos Guarani. Inclusive pela participação da Cacica Kunhã Rete, que, além de liderar seus parentes, foi fundamental na criação do curta-metragem (de 25 minutos). Por sinal, “Bom Dia” já foi disponibilizado em escolas edificadas em comunidades indígenas de vários pontos do país.

O diretor Carlos Eduardo estará, findo o Festival de Brasília, de partida para o Jaraguá, onde realizará, em breve, o Guarani Lab, projeto que atenderá a 18 cineastas indígenas, oriundos de diversas aldeias espalhadas pelo território brasileiro.

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