Festival de Brasília homenageia Zezé Motta e mergulha nos sonhos de Sidarta Ribeiro
Foto: Zezé Motta recebe homenagem do festival © Humberto Araujo
Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília
A noite inaugural da quinquagésima-sétima edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro começou com o Cine Brasília lotado, tributo à memória de artífices do audiovisual candango (Vladimir Carvalho, Malu Moraes e Pedro Anísio) e homenagem à atriz Zezé Motta, que recebeu um Troféu Candango por sua trajetória artística.
Antes da exibição do longa documental “Criaturas da Mente”, sobre pesquisas realizadas pelo neurocientista brasiliense Sidarta Ribeiro, o secretário de Cultura do DF, Cláudio Abrantes, garantiu que “ano que vem, o festival acontecerá em sua data histórica, o mês de setembro”. Portanto, voltará a disputar filmes inéditos com festivais de primeira linha como o do Rio de Janeiro e a Mostra de São Paulo.
A homenagem a Vladimir Carvalho começou com exibição de pequeno documentário realizado por seu irmão, o diretor de fotografia e cineasta Walter Carvalho. Ao som de “Menestrel das Alagoas”, de Fernando Brant e Milton Nascimento, na voz deste, Walter mostrou trechos da trajetória cinematográfica do irmão e provou que os versos da canção — “Quem é esse viajante/ Quem é esse menestrel/ Que espalha esperança/ E transforma sal em mel?/ Quem é esse saltimbanco/ Falando em rebelião?” — feitos para o alagoano Teotônio Vilela cabiam com justeza na evocação ao paraibano Vladimir.
Além da homenagem do festival e da cidade adotada pelo diretor de “O Evangelho Segundo Teotônio”, a Associação Brasiliense de Cinema e Vídeo (ABCV) também prestou seu tributo a Vladimir. A ele e à também documentarista Delvair Montagner. O prêmio de Vladimir foi recebido por sua viúva, Maria do Socorro Carvalho. Delvair subiu ao palco e fez o mais sintético e elegante dos agradecimentos já enunciados por um laureado pela ABCV.
O ator Bruno Torres lembrou a carreira de atriz, cantora e produtora de sua mãe, Malu Moraes, com enxuto documentário construído com imagens dela e dos filmes nos quais atuou, sempre destacando frases banhadas em sabedoria popular. Com uma delas, Malu justificou a longa existência de centenária tartaruga: o animal só cuidou da própria vida, sem meter-se em vidas alheias.
A agora octogenária Zezé Motta subiu ao palco para receber, passados 49 anos, um novo Troféu Candango. O primeiro lhe fora outorgado por sua “Xica da Silva”. Aplaudida de pé, a atriz e cidadã, criadora do Cidan (Centro de Informação e Documentação do Artista Negro), reconheceu sua importância na luta pela visibilidade de atrizes e atores negros no audiovisual brasileiro.
A equipe de “Criaturas da Mente” subiu ao palco do Cine Brasília liderada por Sidarta Ribeiro, que externou sua imensa alegria por voltar à sala que povoou sua infância e adolescência brasilienses. Ocupado com o estudo dos sonhos, desenvolvidos no Instituto do Cérebro, da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), e com viagens permanentes, ele acabou distante do cinema criado por Oscar Niemeyer. Teve o prazer de voltar a ele como espectador e personagem central de “Criaturas da Mente”, nono longa-metragem de Marcelo Gomes.
O cineasta pernambucano encontrava-se na Amazônia filmando sua recriação do romance “Relato de um Certo Oriente”, de Milton Hatoum, quando a pandemia da Covid-19 atordoou o mundo. Sua equipe, formada com atores libaneses, brasileiros e um italiano, teve que ser desmobilizada. E os estrangeiros, reencaminhados às suas regiões de origem. Isto num momento em que eram raros os vôos.
Impossibilitado de sequenciar as filmagens, Marcelo Gomes mergulhou em muitas leituras. Um dos textos que o marcaram, naquele momento de pandemia, foi “Ciência em Kracatoa”, de Sidarta Ribeiro, publicado pela revista Piauí.
Finda a fase mais grave da Covid-19, Marcelo procurou a VideoFilmes, de João Moreira Salles (e WSJr) em busca de parceria para viabilizar seu planejado documentário sobre o Instituto do Cérebro e um de seus principais artífices, o neurocientista Sidarta Ribeiro.
A receptividade ao projeto foi positiva tanto dos produtores Maria Carlota Bruno e João Moreira Salles, quanto do neurocientista candango-potiguar. Em 2022, Marcelo filmou no Rio Grande do Norte e em Pernambuco (Olinda). Registrou o testemunho da mãe de santo, percussionista e agitadora cultural Beth de Oxum e, claro, o Carnaval das ladeiras olindenses. Depois, filmou no Rio de Janeiro e em sítio cercado de vistosa vegetação atlântica, em Vargem Grande. Neste espaço registrou encontro de Ailton Krenak com Sidarta.
Marcelo Gomes contou, no debate brasiliense de seu novo longa-metragem, que o carnaval está registrado em praticamente em todos os seus filmes, com exceção de “Retrato de um Certo Oriente”, pois “este aborda encontro de libaneses com povos originários da Amazônia”. Mesmo assim, “dei um jeito de colocar um carimbó na narrativa”.
O primeiro filme de Marcelo Gomes — o curta-metragem “Maracatu, Maracatus” (1996) — serviu de importante matéria-prima para seu mergulho no mundos dos sonhos empreendido por Sidarta. Afinal, nele aparecem “as criaturas da mente” que emprestaram título ao filme. E o ritual do transe ganha relevo especial.
A poeta, roteirista e cineasta baiana Letícia Simões trabalhou com Marcelo Gomes na feitura do roteiro-base de “Criaturas da Mente”, sempre aberta à experimentação. Primeiro, ela convenceu o pernambucano a aparecer no filme, a colocar sua subjetividade impressa nas imagens captadas pelo diretor de fotografia Ivo Lopes Araújo. Depois, o convenceu a compreender que (ele) deveria se submeter ao ritual da ayahuasca, prática ancestral de povos originários.
As duas opções foram colocadas em prática. Além da presença física de Marcelo em significativos trechos da narrativa, outros de seus filmes foram incorporados à narrativa. Além de “Maracatu, Maracatus”, o mais recorrente, veremos trecho de imensa força de “Cinema Aspirinas e Urubus” e outros de “O Homem das Multidões”. Que irão somar-se à famosa sequência da Escadaria de Odessa (do quase centenário “Encouraçado Potenkin”, de Eisenstein) e a trechos de filmes etnográficos sobre os Xavante (de Heinz Forthman). Sem esquecer o poderoso registro documental de performance do jovem Ailton Krenak, no Parlamento brasileiro, durante a Constituinte de 1988. Aquele em que o indígena pinta seu rosto com a tinta preta do jenipapo.
O público recebeu “Criaturas da Mente” com entusiasmo, em especial, nos momentos em que Sidarta Ribeiro defende a refundação do Brasil, uma refundação baseada em novos postulados e distante do autoritarismo de governantes fincados em ciclos militares e na ação predatória do Capitalismo, sempre ocupado com o lucro e empenhado em destruir biomas (e recursos) do planeta. Houve aplausos em projeção aberta.
Passados os dois anos de perplexidade com a pandemia, Marcelo Gomes voltou a trabalhar como um remador de Ben-Hur. Nos três últimos anos, concluiu “Retrato de um Certo Oriente”, bela e poética ficção que acaba de triunfar no Festival de Huelva (e está em cartaz em nossos cinemas), filmou este “Criaturas da Mente”, tirou do papel roteiro inédito (de “Dolores”) herdado de Chico Teixeira (1958-2019), e gravou a série “Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente” (para a HBO).
Com tanto labor, resta perguntar onde Marcelo Gomes encontrará tempo para sonhar, agora que aprendeu com Sidarta Ribeiro a registrar tudo que se passa por seu inconsciente.
A passagem do cineasta pela capital brasileira foi breve. Ele assistiu ao documentário ao lado de Maria Carlota Bruno e Camila Leal Ferreira (produtora e produtora-executiva), da co-roteirista Letícia Simões e, claro, de Sidarta, o candango que encantou os espectadores que lotaram o Cine Brasília.
O criador do cada dia mais belo “Cinema Aspirinas e Urubus” dirigiu-se ao debate do Festival de Brasília, realizado no cinema niemárico, de malinha na mão, pois muitos compromissos o esperavam em São Paulo. Ele não tem encontrado tempo nem para marcar presença em festivais europeus.
Em Huelva, na Espanha, foi representado pela atriz libanesa Wafa’a Celine Halawi, protagonista feminina de “Retrato de um Certo Oriente”. Sua personagem, uma moça cristã, que se apaixona por rapaz muçulmano (Charbel Kamel), ao conhecê-lo em navio na rota Líbano-Brasil, viverá cena de amor inesquecível. Esta cena será montada em paralelo à cura, por um pajé, de grave ferimento que colocara o irmão libanês da moça em estado grave. Seu impacto foi definido durante debate no Olhar de Cinema curitibano, meses atrás, como um empolgante “orgasmo ressuscitatório”.
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