“Limonov, o Camaleão Russo”, a mais nova provocação de Kirill Serebrennikov chega aos cinemas brasileiros
Por Maria do Rosário Caetano
Quem gostou de «Verão» («Leto») e de «A Esposa de Tchaikovsky», do russo Kirill Serebrennikov, tem encontro marcado com seu novo e controvertido filme, «Limonov, o Camaleão Russo», estreia dessa quinta-feira, 17 de abril, no circuito de arte e ensaio brasileiro.
O filme, o nono longa-metragem de Serebrennikov, participou da competição pela Palma de Ouro, ano passado, em Cannes. Foi selecionado para a disputa cannoise, apesar de contrariar um dos mandamentos sagrados da cinefilia francesa – o respeito ao idioma do protagonista. Eduard Veniaminovich, dito Limonov (soma da acidez do limão com explosivos), expressa-se, full time, durante os 138 minutos do filme, em inglês. Seu idioma materno era o russo.
OK, ele viveria parte de sua longa e complicadíssima vida adulta, em Nova York, nos EUA (de 1974 a 1987). Lá foi, além de poeta, praticante dos mais disparatados ofícios ou procederes: delinquente, mendigo, amante frustrado, mordomo de um milionário. Tornar-se-ia escritor famoso e excêntrico em Paris, onde viveria, com cidadania francesa, de 1987 a 2011. Aliás, as nacionalidades de Limonov são curiosas. Ele nasceu soviético e assim permaneceu até 1974, quando migrou para os EUA e tornou-se um «apátrida». A França o festejou como artista. E atribuiu-lhe cidadania bleu-blanc-rouge. Ao regressar ao seu país natal, depois da queda e desmonte da URSS, Limonov tornou-se cidadão da Federação Russa e elegeu-se deputado. E o fez por um partido ultranacionalista. Sempre pautado pela contradição.
Na Rússia pós-soviética, Limonov fundou, com Aleksandr Dugin, o Partido Nacional Bolchevique. Se existiu um movimento de alma internacional, esse foi o que estabeleceu as bases da Revolução de 1917. Mas coerência nunca foi o forte do poeta nascido em 1943, em solo soviético. Aliás, ao regressar à Rússia, fixou-se em Moscou, onde viveria até sua morte, em 2020 (aos 77 anos).
O comando de Cannes teve três razões para colocar «Limonov, o Camaleão Russo» em sua principal competição. Primeiro, o prestígio de Kirill Serebrennikov, hoje com 55 anos, que conseguiu notoriedade no cinema mundial graças à plataforma cannoise. Segundo: o filme baseia-se em best-seller do festejadíssimo escritor, cineasta e roteirista parisiense Emmanuel Carrère, de 67 anos, autor de «Outras Vidas Além da Minha», «O Adversário» e «A Classe da Neve», este filmado por Claude Miller. Terceiro: seu protagonista, o ator britânico Ben Whishaw, de «O Lagosta», «Perfume: A História de um Assassino» e presença em filmes da franquia 007, goza de significativo prestígio na Europa.
E, afinal, o filme «Limonov, o Camaleão Russo» merecia estar na competição de Cannes?
Vale a pena enfrentar suas 2h18′? A se julgar pela reação ao filme, em Cannes (embora não tenha recebido nenhum prêmio), e pela recepção da crítica francesa, o risco continua sendo recomendável. Les Inrock gostou (4 estrelas). Le Monde e L’Humanité, este o jornal comunista, ficaram no meio termo (3 estrelas). Cahiers du Cinéma e Libération só o acharam digno de 2 estrelas.
“Limonov, o Camaleão Russo” tem momentos envolventes e muito bem filmados. Serebrennikov conhece seu ofício, tem alma roqueira e rebelde. Mas, em muitos momentos, dialoga com excessos similares aos do britânico Ken Russel (1927-2011). E deixa o espectador muito confuso. Como bem observou o crítico francês Mohamed Berkani, «apesar da inspirada mise en scène» do cineasta, «a parte derradeira do filme nos deixa frustrados». Torna-se difícil compreender «o percurso de um poeta utópico, que transformou-se em (político) fascista».
Outro crítico francês, Nicolas Schaller, definiu «Limonov, o Camaleão Russo» como «o retrato de um Zelig do final do século XX, uma alma russa monstruosa, sintoma de várias décadas de descaminhos ideológicos que desembocaram em Putin». Como muitos o fizeram, Schaller elogia o protagonista, «encarnado com determinação pelo camaleônico (e britânico!) Ben Whishaw».
Como se vê, são duas as heresias de Serebrennikov: substituir (unificar) as três experiências linguísticas do poeta (o russo materno, o inglês dos tempos de NY e o francês da fase parisiense) somente pela língua de Byron. E designar um ator britânico para dar vida ao protagonista. Curioso notar que a Inglaterra não se interessou pela produção do filme. Nem os EUA. Quem o fez foram produtores franceses, italianos e espanhóis.
O crítico Christophe Caron viu no «Camaleão Russo», um «herói, cuja misantropia pseudo-dissidente e, sobretudo, oportunista”, revela «sua preocupação em deixar uma marca». Para tanto, ele «maltrata severamente a noção de ideologia». O que sobra é «um portrait excessivo, ambíguo e incômodo».
Serebrennikov escreveu o roteiro do filme com parceiros (Ben Hopkins e Pawel Pawlikowski) a partir de «Limonov», o livro que Emmanuel Carrère publicou em 2011. Sua intenção era retratar as aventuras e muitas desventuras do poeta Eduard Limonov, o Eddie. Ele nasceu em Dzerjinsk, em 1943, amadureceu na cidade de Kharkiv, até deixar a União Soviética, rumo aos EUA, acompanhado da esposa, Elena Shchapova, também escritora. Em Nova York, decepcionou-se com o capitalismo e seguiu vida marginal. Escreveu novos versos e romance de estética assemelhada ao punk, com conteúdo sexual explícito. Relatou, em especial no autobiográfico «É Um Caso Complicado» (publicado na França e depois traduzido em várias línguas), experiências de quem viveu realmente pelas bordas.
O filme, como o livro de Carrère, toma liberdades e sintetiza sua paixão por uma bela musa, também eslava, que o deixava em sua miséria cotidiana, para viver em braços (e camas) de homens mais abonados. Suas experiências homoeróticas também ganham relevo.
Em Paris, outro paradeiro fundamental para sua existência, Limonov transformou-se em sensação literária. Após a queda do comunismo, ele regressou à Federação Russa, onde fundou o Partido Nacional Bolchevique, de alma fascista. Acabou atraindo, para seu estranho ideário, muitos jovens moscovitas e de outras cidades. Mas o filme de Serebrennikov não abre o devido espaço reflexivo para essa terrível fase derradeira.
Limonov, o Camaleão Russo | Limonov: The Ballad of Eddie
França, Itália, Espanha, 2024, 138 minutos
Direção: Kirill Serebrennikov
Elenco: Ben Whishaw (Limonov), Viktoria Miroshnichenko (sua amada), Sandrine Bonnaire (escritora), Tomas Arana, Corrado Invernizzi , Evgeniy Mironov, Andrey Burkovskiy, Maria Mashkova, Odin Lund Biron, Vadim Stepanov, Vlad Tsenev, Céline Sallette e Louis-Do De Lencquesaine
Roteiro: Kirill Serebrennikov, Ben Hopkins e Pawel Pawlikowski
Fotografia: Roman Vasyanov
Trilha sonora: Massimo Pupillo
Direção de arte: Liubov Korolkova e Cynthia Sleiter
Edição: Yuriy Karike
Figurino: Tatiana Dolmatovskaya e Maurizio Basile
Efeitos especiais: Vlad Ogay
Produção: Wildside, Chapter 2, Fremantle Spain, France 3 Cinéma e Hype Studio
Distribuição: Pandora Filmes
FILMOGRAFIA
Kirill Serebrennikov
Diretor russo de teatro e ópera, roteirista e diretor de cinema, radicado na França. Ele nasceu em Rostov do Don, em 07/09/1969, e radicopu-se em Moscou, depois Nova York, depois Paris.
2025 – «La Disparition de Josef Mengale»
2024 – «Limonov: The Ballad of Eddie»
2022 – «A Esposa de Tchaikovsky»
2021 – «A Febre de Petrov»
2018 – “Verão (Leto)”
2016 – “O Estudante”
2012 – «Betrayal»
2008 – «Yuri’s Day»
2006 – «Playing the Victim»
2004 – «Ragin»