“Primavera em Seul”, rebatizado com estranho título de “12.12: o Dia”, registra apavorante golpe militar na Coreia
Por Maria do Rosário Caetano
“Primavera em Seul”, nome poético, sedutor e capaz de evocar histórias passadas, chega aos cinemas brasileiros nessa quinta-feira, 24 de abril, rebatizado com o estranho título “12.12: o Dia”.
Decerto a distribuidora Sato, dedicada à difusão do cinema asiático no Brasil, preferiu apostar em título numérico. Tornou-se moda, em nossos dias, títulos salpicados de algarismos (vide o filme de ação “G20” estrelado por Viola Davis!).
Ao optar por dois números 12, a Sato decerto entendeu que estaria livre de “título romântico”, daqueles capazes de atrair espectadoras incautas. E, para complicar, embutia subliminar referência à Primavera de Praga, que abalou o Leste Europeu, em 1968.
Com data histórica que nada diz ao espectador brasileiro, o título ainda retira do filme, dirigido por Kim Sung-soo, sua carga política. Os coreanos, porém, não pestanejaram. Apostaram no título poético, na “Primavera em Seul”. E o longa-metragem fez imenso sucesso por lá (maior bilheteria de 2023 e indicação ao Oscar pela Academia de Cinema da Coreia do Sul).
“12 do 12” data no calendário da Coreia do Sul um terrível dia — o 12 de dezembro de 1979, quando golpe militar triunfou e deu por iniciado regime ditatorial que se estenderia por oito anos. Sob Lei Marcial, a Coreia capitalista (sempre alerta aos perigos do Norte comunista), viveu sob graves restrições democráticas. Hoje, a potência asiática assiste a verdadeira primavera audiovisual – vide o êxito planetário do arrebatador “Parasita”.
O material de divulgação de “12.12: o Dia” dá relevo ao atual cenário político da Coreia do Sul. Em dezembro passado, o país assistiu ao impeachment do presidente Yoon Suk-yeol. Na condição de chefe do Executivo, ele surpreendeu a seus concidadãos ao declarar Lei Marcial, fechar o Parlamento e restringir a liberdade de imprensa. Como se vê, quis adotar medidas semelhantes às tomadas por aqueles dispostos a interromper processos democráticos.
A tentativa de golpe não deu certo e as medidas do presidente, que sofreria impeachment, foram garantidas por forte resistência popular e parlamentar. O mesmo não aconteceria em 1979, quando se deu o desmonte da “Primavera de Seul”.
Poucos anos atrás, o público brasileiro pôde assistir a filme sul-coreano muito esclarecedor sobre as consequências do Golpe de 1979 – “O Motorista de Táxi”, dirigido por Hun Jang (2017, 135 minutos). Vale lembrar sua trama, construída com a mistura de gêneros que faz a força de megassucessos realizados no país de Bong Joon-ho (e seu vibrante “O Hospedeiro”).
Misturando drama político, filme de ação e comédia, “Motorista de Táxi” (no caso, o eclético Taxi Driver sul-coreano), contou a história de um pai viúvo, que ganhava o sustento da família conduzindo seu carro de aluguel. Um dia, ele aceitou, sem medir consequências, corrida da capital, Seul, até a cidade de Gwangiu. Seu passageiro era um jornalista alemão, disposto a tudo para cobrir os principais lances da Revolta de 1980. Ou seja, rebeliões populares (e estudantis) contra o governo ditatorial, que tocava o terror, garantido por Lei Marcial. Motorista e repórter viveriam, pois, um verdadeiro pesadelo.
Kim Sung-soo, o diretor de “Primavera em Seul”, também realizou eficaz mistura de gêneros. Mas seu foco principal concentra-se no drama de ação, daqueles bem eletrizantes. No começo da narrativa, que dura mais de duas horas (exatos 141 minutos), o espectador desavisado ficará perdido. Quem são esses personagens fardados? O que está acontecendo em Seul?
Logo, logo, mesmo esse espectador desavisado entenderá o que o espera: um duelo entre um comandante militar honesto, corajoso e belo (um deus de olhos puxados!), interpretado por Jung Woo-sung, e um militar cara-dura, careca e mau, feito vilão de filme de 007. No papel, está o ator Hwang Jung-min (de “O Veterano 1” e “O Veterano 2”, “Narco-Santos” e “Livrai-me do Mal”).
O presidente da Coreia do Sul convoca o militar honesto para comandar a Segurança de Seul. Ele não aceita a tarefa. Tem planos de dedicar-se à família, à bela esposa que pacientemente o aguarda. Mas o presidente o convencerá da importância de tê-lo como aliado, pois forças golpistas estão se articulando contra ele. O bonitão acaba aceitando a tarefa. E aí vai enfrentar as articulações comandadas pelo líder golpista e seus fiéis (fidelíssimos) seguidores. O bem contra o mal se desenharão em sequências de tirar o fôlego. Quem conhece um mínimo que seja da história da Coreia do Sul saberá que final aguarda os dois contendores. Quem não conhece, vai suar as mãos até o desfecho.
O filme se passa, como avisa o (enigmático) título brasileiro, em um dia e uma noite. Marcados, ambos, por ferrenha (e armada) luta pelo poder. Luta na qual dilemas morais se colocarão para quem é guiado por princípios éticos. E a hierarquia autoritária tentará se impor.
Um detalhe chama atenção na “Primavera em Seul”: o vilão careca tem algumas qualidades. Ele é ousado, embora ardiloso, e sabe comandar seus seguidores com pulso de ferro. Sua figura física, em tudo oposta ao apolíneo chefe da Segurança da capital sul-coreana, não é aleatória. Quem prestar atenção nas fotos que acompanham os créditos finais, verá que o militar que fez história naquele dezembro de 1979 era calvo, muito calvo. É desprovido dos encantos físicos de seu contendor. O ator Hwang Jung-min teve que abrir mãos de sua cabeleira farta e passar por longas sessões de maquiagem.
O diretor Kim Sung-soo evocou memórias de sua juventude ao construir sua trama de ação. Ele tinha 19 anos, em 1979, quando o presidente Park Chung-hee foi assassinado (em 26 de outubro) e viu a Coreia do Sul viver semanas de muita agitação. E ser submetida à Lei Marcial. Tais acontecimentos levaram o General Chun Doo-gwang a liderar tentativa de golpe de Estado. O comandante Lee Tae-shin, responsável pela defesa da capital, tentou impedir o uso político do Exército coreano.
O cineasta, de 63 anos, misturou, aos acontecimentos históricos, elementos fictícios, pois queria captar as sensações que o tomaram naquele 12 de dezembro, coberto pela neblina, 46 anos atrás.
“Minha intenção” – detalhou quando do lançamento do filme – “foi levar o público a sentir o frio que sentimos naquela noite gelada e carregada de tensão”. E mais: “fiquei por uns 20 minutos sentindo o ar gelado daquela noite de inverno e ouvindo os tiros ecoando pelo céu. Foi uma experiência aterrorizante, mas ao mesmo tempo repleta de curiosidade”. Ele sempre carregou consigo duas perguntas: “quem estava lutando contra quem, e qual era o motivo dessa luta?”.
Com as regras do cinema de ação, ele construiu sua visão da “Primavera em Seul”, primeiro filme da Coreia do Sul a reconstruir, fora do campo do documentário, o golpe militar de 1979”. Até porque “O Motorista de Táxi” começa no ano seguinte à derrocada democrática.
Detalhe a se observar: se o golpe militar engendrado por Jair Bolsonaro e alguns generais das Forças Armadas brasileiras contasse com líder e liderados tão articulados quanto os que seguiram o General Chun Doo-gwang (e a Guerra Fria ainda pautasse o mundo), Luiz Inácio Lula da Silva não teria tomado posse, pela terceira vez, na Presidência da República.
Kim Sung-soo construiu seu novo filme como um espetáculo apavorante. Um espelho no qual Nações e suas instituições democráticas não devem se mirar. O que devem fazer é lutar contra o triunfo de regimes pautados pelo autoritarismo, pela exceção.
12.12: o Dia | Primavera em Seul
Coreia do Sul, 2023, 141 minutos
Direção: Kim Sung-soo
Elenco: Jung Woo-sung (Comandante Lee Tae-shin ), Hwang Jung-min (General Chun Doo-gwang), Lee Sung-min, Park Hae-joon, Kim Sung-kyun
Produção: Hive Media Corp
Produtor: Kim Won-kuk
Fotografia: Lee Mo-gae
Design de producão: Jang Geun-young
Figurino: Kwak Jung-ae
Distribuição: Sato Company
Indicação: 14 anos
FILMOGRAFIA
Kim Sung-soo (Coreia do Sul, 15 de novembro de 1961)
2023 – “12:12: o Dia”
2016 – “Asura: The City of Madness”
2013 – “The Flu” (A Gripe)
2003 – “Please Teach me English”
1999 – “City of the Rising Sun”
1997 – “Beat”