Filme de Raoul Peck revela Ernest Cole, o fotógrafo que registrou o horror do Apartheid e combateu a servidão voluntária

Por Maria do Rosário Caetano

“Ernest Cole – Achados e Perdidos”, décimo-quinto longa-metragem do haitiano Raoul Peck, estreia nessa quinta-feira, 29 de maio, no circuito de arte brasileiro.

Antes, nessa terça-feira, o filme terá pré-estreia na Reserva Cultural paulistana, seguida de debate que reunirá Mill Müller, presidente do Instituto AfroRec, Emanuel Araquan, fotógrafo, cineasta e ativista, e Flávia dos Prazeres, apresentadora do “Café Filosófico”, da TV Cultura.

O documentário, que resgata a complexa trajetória do fotógrafo Ernest Cole, é um dos raros (apenas o terceiro) títulos do produtivo cineasta haitiano, de 71 anos, a chegar ao circuito exibidor brasileiro. O primeiro foi o também documental “Eu Não Sou seu Negro”, finalista ao Oscar 2017, baseado em escritos e trajetória do dramaturgo James Baldwin. Um ano depois, o ficcional “O Jovem Marx” conseguiu modesto lançamento no Brasil.

Entre nós, o nome do fotógrafo sul-africano Ernest Levi Tsolane Cole (1940-1990), que viveu parte de sua vida exilado em Nova York e Estocolmo, não tinha nenhuma ressonância. Até que Raoul Peck realizou, com produção franco-americana, esse documentário de tom épico e força mobilizadora.

O filme estreou, ano passado, no Festival de Cannes e conquistou o Olho de Ouro, prêmio atribuído ao melhor longa documental exibido em qualquer uma das competições do evento, seja na disputa pela Palma de Ouro, no Un Certain Regard, na Quinzena dos Cineastas, na Semana da Crítica ou no Cannes Classics.

Prêmio, registre-se, conquistado por puro merecimento. “Ernest Cole – Fotógrafo”, como o chamaram os franceses, é um filme de imensa importância, tanto por suas ousadias estéticas (principalmente em sua primeira metade) quanto por sua temática reveladora. Peck apresentou ao mundo um rapaz miúdo, nascido numa favela (Ertsterust, em Pretória, capital da África do Sul), que começou a fotografar aos oito anos, ganhou uma máquina modesta de um padre católico, abandonou a escola aos 17 anos e passou a estudar por correspondência. E o fez com afinco obsessivo.

Sem descanso, Ernest Cole realizou milhares de imagens da tragédia resultante do Apartheid, regime segregacionista imposto pelos brancos (em maioria racistas holandeses) a milhões de homens negros (a população branca da África do Sul não chega a 8% de seus 64 milhões de habitantes). Por isso, quando suas fotografias foram publicadas no Ocidente, muitos puderam ver o que fizera um profissional freelancer, capaz de imprimir em suas chapas os horrores de um dos mais abjetos governos segregacionistas do mundo contemporâneo.

Perseguido pelo governo dos afrikâners (holandeses, secundados por alemães, franceses e ingleses), Cole buscou asilo nos EUA. Foi viver em Nova York, fotografou os pretos do Harlem e, no Sul racista, percebeu – com sua inquieta câmara – que os negros eram discriminados, tratados como cidadãos de terceira classe. E que isto acontecia num país que se orgulhava de ser a maior democracia do mundo. Vivia-se, ali, nas fazendas do Mississipi, uma espécie de “apartheid em pleno mundo livre”. Havia escolas, clubes, bancos de jardim, bebedouros e outros equipamentos, que não podiam ser acessados por afro-americanos.

Nos EUA, Ernest Cole publicou, em 1967, livro que lhe renderia notoriedade: “House of Bandage” (em tradução livre, “Casa da Servidão” – ou da Escravidão). Para continuar construindo a épica dos deserdados da terra, seguiu trabalhando sem descanso. Até porque intuía que a fama era passageira. A riqueza material não veio. Buscou novos ares na Europa (na Suécia, em especial). Mas regressou aos EUA, para morrer, de câncer no esôfago, aos 49 anos.

Em sua jornada íntima – nos mostra o filme de Raul Peck –, Ernest Cole era um homem marcado pela dor, pela indignação com o processo de espoliação de tantos trabalhadores negros, espalhados por favelas, trabalhando com baixa remuneração em fábricas ou lavouras.

O fotógrafo sul-africano quis ser, e foi, um herói revoltado. Morreu pobre. Diziam que se drogava. Ele pingou os is. Nunca bebera, nem consumira alucinógenos. Seu vício era o trabalho.

Num dos trechos do filme – a narrativa se faz em primeira pessoa, como se Ernest Cole nos contasse, ele mesmo, a sua trajetória –, ficamos sabendo que abandonou a escola em 1957, portanto aos 16 ou 17 anos, pois negava-se “a seguir a educação ‘bantu para a servidão’, que havia se tornado mais rígida que a dos que a antecediam”.

Em inglês, quem empresta sua voz ao narrador-defunto é o rapper Lakeith Stanfield, ator de “Selma”, “Judas e o Messias Negro” e “Corra!”. Em francês, a narração se dá pela voz do próprio Raoul Peck. A versão que a Imovision está lançando no Brasil é a norte-americana. No que está certíssima, pois o fotógrafo teve a língua inglesa como meio de expressão (os britânicos a impuseram aos sul-africanos).

A primeira parte do documentário é arrebatadora. Conhecemos um jovem de pequena estatura e muito magro, que não se separava de sua câmara. E que mergulharia fundo na tragédia de sua gente, em especial, os moradores do bairro pobre de Eersterust, mas não só. De forma vertiginosa, veremos imagens, captadas em grandes formatos (e com profundidade de campo), se somarem a imagens-e-mais-imagens. O Apartheid vai sendo registrado de forma épica. “Somente para europeus” é a inscrição impressa em muitas das fotos, para intervir acesso a uma infinidade de lugares exclusivos. 90% da população sul-africana, por ter a pele negra, não podia desfrutar integralmente do próprio país.

A curta vida de Ernest Cole foi marcada por militantes dos Panteras Negras (Malcolm X, Stokely Carmichael), ativistas sul-africanos (a cantora Miriam Makeba, os Manhattan Brothers e Steve Biko, assassinado sob tortura) e, claro, pela legenda Nelson Mandela, o mais ilustre dos encarcerados pelos afrikâners. Como Cole adoeceu e morreu em 1990, não pôde acompanhar de perto a libertação de Mandela, ocorrida no ano de sua partida. Nem a ascensão do líder do Congresso Nacional Africano ao comando da África do Sul (1994-1999).

Se tivesse assistido à volta por cima de “Madiba”, talvez Ernest Cole aplacasse parte das dores que o tomaram por toda a vida. E a melancolia delas advindas. Quem sabe seu (sonhado e nunca concretizado) regresso à sua África do Sul natal o reanimasse. Mas não houve tempo para isso.

Raoul Peck construiu o roteiro de seu filme com fragmentos extraídos de cartas e entrevistas do fotógrafo. E, além das imagens produzidas pelo artista, recorreu a trechos de filmes, em preto-e-branco e em cores, necessários à contextualização do breve (e convulsivo) tempo histórico vivido por Cole. Não há depoimentos no filme. Só um sobrinho de Cole, responsável pela custódia de seu legado (The Ernest Cole Family Trust), terá espaço para lembrar o tio e, na segunda parte do filme, empreender resgate de 60 mil negativos deixados, na Suécia, pelo parente ilustre. Ilustre, embora tivesse vivido seus derradeiros anos no ostracismo. Foi a revelação desse tesouro, depositado num banco em Estocolmo, que trouxe à tona o imenso patrimônio deixado pelo fotógrafo sul-africano.

O sobrinho, que desembarca na capital sueca, acompanhado pelo filho, tem dúvidas quase tão grandes quanto seu entusiasmo. Quem depositou aquele acervo no banco europeu? Por que os negativos viveram por tanto tempo imersos na invisibilidade? Por que só foram revelados 26 anos depois da morte do fotógrafo? E por que 504 fotografias (avaliadas em um milhão de euros) não foram entregues aos familiares de Ernest Cole? Por que permanecem com a Fundação Hasselblad?

Questões intrigantes, que só serão equacionadas se The Ernest Cole Family Trust vencer a demanda judicial que abriu contra a Fundação europeia. O assunto é importante, mas tira do filme a força avassaladora que movia sua narrativa.

O espectador, fascinado com a descoberta de centenas e centenas de imagens produzidas na África do Sul, no Harlem e no Mississipi rural, intui que não há nada mais poderoso que essas mesmas imagens. Elas, sim, nos revelam história individual (a de Ernest Cole) e coletiva (a dos povos de pele preta da África do Sul e dos EUA). Afinal, o fotógrafo nascido em Eersterust foi o Homero da epopeia desses povos.

 

Ernest Cole – Achados e Perdidos | Ernest Cole – Lost and Found (EUA) | Ernest Colen – Photographe (França)
2014, França-EUA, 105 minutos, 14 anos
Direção e roteiro: Raoul Peck
Voz do narrador: LaKeith Stanfield (versão inglesa) e Raoul Peck (versão francesa)
Fotografia: Wolfgang Held e Moses Tau
Música: Alexei Aigui
Montagem: Alexandra Strauss
Produção: Laurence Lascary, Raoul Peck
Distribuição: Imovision

Pré-estreia especial e debate do documentário “Ernest Cole”
Data: nessa terça-feira, 27 de maio, às 19h
Local: Reserva Cultural (Avenida Paulista, 900, São Paulo/SP)
Sessão seguida de debate com os ativistas Mill Müller e Emanuel Araquan, mediados pela jornalista Flávia dos Prazeres Ingressos à venda

 

FILMOGRAFIA
Raoul Peck nasceu em Porto Príncipe, no Haiti, em 9 de setembro de 1953. Diretor e roteirista de cinema, ele vive entre o Haiti (onde foi ministro da Cultura), a França e os EUA.

2025 – “The Hands that Held the Knives (doc. sobre assassinato do presidente haitiano Jovenel Moise) – inédito
2025 – “Orwell: 2+2=5 (doc. sobre os últimos meses de vida de George Orwell) – apresentado em Cannes
2024 – “Ernest Cole – Achados e Perdidos” (doc)
2023 – “Silver Dollar Road” (doc)
2017 – “O Jovem Karl Marx” (ficção)
2016 – “Eu Não Sou seu Negro” (doc. baseado nos escritos de James Baldwin)
2014 – “Meurtre à Pacot” (ficção)
2013 – “Assistência Fatal” (doc)
2009 – “Moloch Tropical” (ficção)
2009 – “L’École du Pouvoir” (ficção)
2006 – “L’Affaire Villemin” (série de TV)
2005 – “Abril Sangrento” (ficção com Idris Elba)
2004 – “Quelques Jour en Avril” (sobre o genocídio em Ruanda, com 1 milhão de mortos)
2000 – “Le Profit en Rien d’Autre” ou “Réflexions Abusives sur la Lutte des Classes” (para TV, 57 minutos)
2000 – “Lumumba” (ficção sobre o presidente Patrice Lumumba, do Congo, assassinado por forças congolês e ocidentais)
1998 – “Corps Plonges” (comédia)
1993 – “O Homem das Docas” (ficção que evoca os governos ditatoriais da família Duvalier)
1990 – “Lumumba – A Morte de um Profeta” (doc)
1987 – “Haitian Corner” (ficção)

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