Transgressão de júris de festivais amplia emoção das competições e gera soluções inesperadas
Por Maria do Rosário Caetano
Inconfidências de dois integrantes do júri da septuagésima-oitava edição do Festival de Cannes – o cineasta coreano Hong Sang-soo e o ator norte-americano Jeremy Strong – revelaram que havia no colegiado, presidido por Juliette Binoche, quem quisesse atribuir a Palma de Ouro de melhor filme ao brasileiro “O Agente Secreto” (foto), de Kleber Mendonça Filho.
Como a maioria preferiu entregar a Palma dourada ao iraniano Jafar Panahi, por “Un Simple Accident”, os defensores de “O Agente Secreto” se empenharam em entregar dois prêmios de significativa importância ao concorrente brasileiro – melhor ator, para Wagner Moura, de 48 anos, e melhor direção, para KMF, de 56.
Só que dois prêmios tão importantes não poderiam, pelo regulamento do festival, ser atribuídos a um único filme. Pelo que reza a cartilha dos jurados, só podem ser premiados duplamente filmes que ganharem o Prêmio do Júri (com possível acréscimo de melhor atriz ou melhor ator). Caso o filme tenha seu roteiro laureado, ele, também, poderá receber um upgrade (melhor atriz ou melhor ator).
O colegiado cannoise resolveu desrespeitar a regra e laurear duplamente “O Agente Secreto”. Com direção e ator. Deu de ombros para o que estava escrito. Sinal de que a paixão despertada pelo filme pernambucano foi realmente grande e envolvente. Para completar o quadro, a Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema) atribuiu seu prêmio principal ao sexto longa-metragem de KMF. Para obra de diretor estreante (ou de segundo filme), a Fipresci escolheu o britânico “Urchin”, de Harris Dickson. E finalizou sua cota anual de três prêmios, em Cannes, com “Dandelion’s Odissey”, de Hasan Hadi, presente na Semana da Crítica.
Com a escolha de “Un Simple Accident” como detentor da Palma de Ouro, o iraniano Panahi entrou para o seleto time de detentores da Tríplice Coroa. Ou seja, venceu Cannes, Veneza (Leão de Ouro, com “O Círculo”, em 2000) e Berlim, por “Táxi Teerã” (2015).
Tal consagração foi atribuída, antes, ao italiano Michelângelo Antonioni, que ganhou o Urso de Ouro, com “A Noite” (1960), o Leão de Veneza, com “O Dilema de uma Vida” (“Il Deserto Rosso”, 1963), e a Palma de Ouro, com “Blow-Up – Depois Daquele Beijo” (1967).
Um norte-americano, Robert Altman, também brilhou em Cannes, com “M.A.S.H.” (1970), em Berlim, com “West Selvagem” (“Buffallo Bill and the Indians or Sitting Bull’s History Lesson”, 1976), e Veneza, com “Short Cuts – Cenas da Vida” (1993).
O primeiro cineasta, porém, a ostentar a Tríplice Coroa foi o francês Henry-George Clouzot (1907-1977). Tudo começou em Veneza, que premiou “Anjo Perverso” (“Manon”), em 1949. E prosseguiu em Cannes, 1953, quando ele viu seu eletrizante thriller petroleiro “O Salário do Medo”, protagonizado por Yves Montand, conquistar a Palma de Ouro. Depois, com o mesmo filme!, conquistaria o Urso de Ouro no Festival de Berlim.
O que se passou com o mais famoso dos filmes de Clouzot é algo impensável hoje em dia. Nenhum dos festivais ‘Classe A’, categoria que engloba os três grandes certames europeus, aceita filme já mostrado em tela concorrente. Só selecionam filmes 100% inéditos.
Mas júris são voluntariosos e onipotentes em suas decisões. O caso de Clouzot só foi possível pelo que se passava com os festivais na década de 1950. Com a humanidade condoída pelos traumas da Segunda Grande Guerra, o diretor de “Salário do Medo” pôde se inscrever na história do cinema como “o único filme premiado em dois dos maiores festivais do mundo”. Isto porque ele disputou edição banhada pela generosidade e pelo humanismo do pós-Guerra. Premiava-se o maior número possível de filmes. Por gênero cinematográfico.
Em 1953, depois de atribuir ao “Salário do Medo” o Grande Prêmio cannoise, os jurados resolveram sequenciar a entrega de muitas outras láureas. sempre guiados por gênero. Apostaram, então, em conceitos bem elásticos. Para o brasileiro “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, foi atribuído o prêmio de melhor filme de aventura. Para o espanhol “Bienvenido, Mr Marshall”, de Luís García Berlanga, coube o troféu de melhor comédia. O melhor filme dramático foi “A Cruz da Minha Vida”, do estadunidense Daniel Mann. Mas, a partir desses gêneros, digamos, clássicos, os jurados começaram a inventar: para “Lili”, do estadunidense Charles Walters, atribuíram o prêmio de melhor filme “de diversão”. Para “Magia Verde”, do italiano Gian Gaspare Napolitano, coube o troféu de “filme de exploração”. O finlandês “Valkoinen Peura”, de Erik Blomberg, levou a láurea de “filme legendário” (recriação de uma lenda?). Mas o prêmio mais surpreendente coube ao mexicano “La Red”, de Emilio “Indio” Fernández, classificado como “melhor filme de narrativa por imagens”. Decerto o júri queria destacá-lo como um filme experimental. Uma obra que acreditou na força da imagem, deixando os diálogos em segundo plano.
A experiência de Henry Clouzot em Berlim é curiosa e digna de nota. O festival germânico nasceu, em 1951, sob os auspícios dos EUA, que desejavam fomentar, no país derrotado (junto com a Itália e Japão), na Segunda Guerra Mundial, vitrine cultural capaz de fazer frente ao que se passava no lado oriental. Com o Plano Marshall a todo vapor e a Guerra Fria instalada — depois de breve interlúdio com a URSS — por que não criar, em solo germânico, um festival tão importante quanto Cannes e Veneza?
Transformado em realidade pelos alemães, apoiados pelos EUA, Berlim iniciava sua movimentada trajetória. Mas, até 1956, o evento viveria período experimental. Quem atribuía o Urso de Ouro (o urso é o símbolo da cidade de Berlim) era o Júri Popular. Só cinco anos depois, quando a FIAP (Federação Internacional de Associações de Produtores Cinematográficos) reconheceu o festival, foi instituído um júri oficial.
Festivais têm histórias incríveis para lembrar (ou esquecer, dependendo do ponto de vista!). Veneza não aconteceu durante os anos de 1943, 44 e 45, por causa da Segunda Grande Guerra. Aliado de Hitler, o fascista Mussollini (o festival foi criado por seu irmão, Vittorio, grande amante do cinema) enfrentava as Forças Aliadas. Em 1944, foi enforcado e pendurado num poste. Realmente não havia clima para uma grande festa cinematográfica. E, para agravar, muitas cidades italianas estavam devastadas.
Outro dado impressionante sobre a festa veneziana. Ela não foi competitiva de 1969 a 1979. Se Cannes teve sua festa interrompida em 1968, o mesmo não aconteceu na Itália. O alemão “Artistas na Cúpula do Circo – Perplexos”, de Alexander Kluge, ganhou o Leão de Ouro. Mas, no ano seguinte, a vaga rebelde que varria o mundo (vide Maio de 68) se fez notar na península. Foram onze edições sem Leões dourados atribuídos por colegiado de julgadores.
Em 1980, a competição veneziana foi retomada. E resultou em polêmica. Ao ver Louis Malle (“Atlantic City”) e John Cassavetes (“Glória”) dividirem o Leão de Ouro, o brasileiro Glauber Rocha, que competia com “A Idade da Terra” encenou, com fúria indômita, ruidosa performance-protesto contra o duplo prêmio para o cinema de Hollywood (o francês Malle também realizou seu filme nos EUA, embora a grana fosse francesa e canadense).
No ano seguinte, tudo voltaria ao normal. “Os Anos de Chumbo”, da germânica Margarette Von Trotta, ganharia o Leão de Ouro. E o brasileiro “Eles Não Usam Black-Tie”, de Leon Hirszman, dividiria o Prêmio Especial do Júri com “Sogni d’Oro”, de Nanni Moretti.
Cannes, também, sofreu solução de continuidade em seus primeiros anos. Criado em 1946, ele começou atribuindo prêmios a filmes de várias geografias (uns três para realizações da URSS). E laureou, com o Grande Prêmio, “A Batalha dos Trilhos”, do francês René Clement.
Parou nos anos 1948 e 1950. Só viveria algo parecido em 1968. Com o país inflamado pelas Manifestações de Maio, a festa na Cote d’Azur prosseguia, aos trancos e barrancos. Até que cineastas (entre eles, Godard, Truffaut e outros) invadiram o espaço, dispostos a tudo. Inclusive a pendurar-se nas cortinas do principal cinema. O jeito foi interromper a competição.
O acontecimento mais impressionante da história do Festival de Berlim se verificaria dois anos depois do turbulento “Maio francês”. Corria o ano de 1970 e os EUA estavam atolados na Guerra do Vietnã. Em apoio ao Vietnã de Sul, invadiram o país de Ho-Chi-Min (o Norte que defendia o socialismo) com milhares de soldados e bombas (inclusive de Napalm).
Berlim era um festival concebido para enfrentar a “guerra cultural” da época, que antagonizava o Oeste capitalista, nucleado nos EUA, e o Leste comunista (cujo epicentro era a URSS).
Na Berlim socialista, Bertoldt Brecht (1898-1956) brilhava com o Berliner Ensemble. Na Itália, o Partido Comunista ganhava força. Muitos intelectuais, entre eles, Picasso e Jorge Amado, participavam da Campanha Mundial pela Paz, patrocinada pela URSS, pois temiam nova Guerra, agora do Ocidente contra o Leste Europeu (Rússia e seus satélites).
A competição da Biennale de 1970 transcorria bem. Até que um fato virou tudo pelo avesso. O cineasta Michael Verhoeven, diretor do filme “OK”, participava da competição. O júri, presidido pelo poderoso George Stevens (1904-1975), diretor de “Os Brutos Também Amam” e “Assim Caminha a Humanidade”, avaliava os filmes.
Porém, ao assistir ao concorrente germânico – “OK”, narrativa de caráter “experimental” (ou documental, ou desconstruído), dirigido por Michael Verhoeven –, Stevens propôs que ele fosse retirado da competição, por vê-lo como “um insulto aos EUA”.
Vale conhecer a trama de “OK”, transformado no pomo da discórdia. Verhoeven recriou incidente real, ocorrido na Guerra do Vietnã, em cenário bávaro.
O que acontecera no Sudeste Asiático?
Um grupo de soldados norte-americanos, entediados em suas posições estratégicas, estuprou e matou jovem vietnamita, que passava pelo local. Um dos soldados, aquele que se recusou a participar, relatou o ocorrido a seus superiores, mas sua denúncia foi ignorada. Os perpetradores do crime até seriam condenados, mas recorreriam da sentença. E a pena seria reduzida significativamente.
A intenção de George Stevens de excluir “OK” da competição não deu certo. Foi rejeitada por todos os outros membros do júri, que preferiram renunciar em bloco. O festival encerrou-se sem que fosse atribuída premiação.
Michael Verhoeven (1938-2024), companheiro da atriz austríaca Senta Berger, sequenciaria sua carreira realizando filmes politizados. Um deles, “A Rosa Branca” (1982), seria finalista ao Oscar internacional. Ao contrário do holandês Paul Verhoeven (mesmo nome do pai de Michael), o diretor de “OK” só teve um filme lançado comercialmente no Brasil (“Uma Cidade sem Passado”). Mesmo que tenha seguido em seu ofício, por muitas outras décadas. Quando faleceu, em abril do ano passado, Verhoeven, razão do imbroglio na Berlinalle, já se aproximava dos 90 anos.
É da natureza de júris que reúnem pessoas inquietas criar prêmios de nomes curiosos ou laurear “atores ou atrizes” que nem são vistos na tela. O professor, roteirista, ator e cineasta Jean-Claude Bernardet gosta de subverter regras dos júris que o têm como integrante. Dois exemplos comprovam seus atrevimentos.
Em meados da primeira década do século 21, ele convenceu seus colegas de júri, no Cine PE recifense, a atribuir o prêmio de “melhor atriz” a Rita Lee (pelo filme “Wood & Stock – Sexo, Orégano e Rock’n’Roll”, de Otto Guerra). Trata-se, como todos sabem, de um filme de animação, no qual a cantora (ou cantriz) só comparece como a voz de uma personagem, a Rê Bordosa.
No Festival de Brasília, anos antes, o mesmo Bernardet criaria categoria especial para premiar “Isto É Brasil” (1997), fecho de trilogia dedicada, por Rogério Sganzerla, a Orson Welles: “melhor montagem antropofágica”. No palco, o inquieto cineasta, diretor do “Bandido da Luz Vermelha”, não mostrou nenhum apreço pelo prêmio recebido.
O mesmo Sganzerla, sempre tomado por sua natureza rebelde, rebatizaria Nelson Pereira dos Santos, que presidira júri que avaliara seu média-metragem “Noel por Noel”, no mesmo Festival de Brasília, como Nelson Pereira dos Diabos. Os júris dos festivais também sofrem.