“Greta Garbo dos Trópicos” e “Alô, Alô, Carnaval” emocionam o público e resgatam passado na Mostra de Ouro Preto
Por Maria do Rosário Caetano, de Ouro Preto (MG)
Dois filmes, “O Silêncio de Eva” e “Alô, Alô, Carnaval”, evocaram os tempos heróicos do cinema brasileiro nas telas da Cine OP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, e emocionaram o público mais vivido.
Já os espectadores mais jovens lotaram o Cine Praça, situado entre o Museu da Inconfidência e a estátua de Tiradentes, para assistir ao documentário “Ritas”, sacudida história da roqueira Rita Lee, com seus cabelos cor de fogo e língua ferina.
Como o festival mineiro é dedicado à preservação de nosso patrimônio audiovisual, constituiu privilégio assistir, numa mesma noite (e numa cidade tombada como Patrimônio Histórico da Humanidade), a filmes dedicados a uma de nossas primeiras estrelas de cinema, Eva Nill (1909- 1990), nascida no Cairo egípcio e radicada em Cataguases, e a astros de nosso cancioneiro popular, como a luso-carioca Carmen Miranda (1909-1955).
“O Silêncio de Eva”, novo longa-metragem da belo-horizontina Elza Cataldo, levou significativo público ao novo espaço cultural da Cine OP, o Cine Anexo do Museu da Inconfidência. Além da diretora, prestigiaram a sessão o prefeito de Ouro Preto, Ângelo Oswaldo, e os atores Inês Peixoto, que revive Eva Nill, a “Greta Garbo dos Trópicos” na maturidade, e Eduardo Moreira, que interpreta o pai dela, o diretor de fotografia ítalo-egípcio-mineiro Pietro (Pedro) Comello.
A sessão de “Alô, Alô, Carnaval” (foto © MRC), de Adhemar Gonzaga, o mais famoso dos “filmusicais” brasileiros, foi apresentada, no Cine Praça, pela filha do cineasta, a atrevida Alice Gonzaga. Com sua franqueza costumeira, a herdeira do produtor, diretor e criador do Estúdio Cinédia Adhemar Gonzaga avisou ao público (muitos de cabelos grisalhos), que assistiriam ao “único filme em que Carmen Miranda não aparece vestida de baiana”.
A brazilian bombshell tem duas aparições apoteóticas no filme. Na primeira, trajando calça e blusa de lamê, arremata por imensa gravata-laço, ela canta e encanta com a marchinha carnavalesca “Querido Adão” (“Adão, meu querido Adão/ todo mundo sabe que perdeste o juízo/ por causa da serpente tentadora/ o nosso Mestre te expulsou do paraíso)”.
Na segunda, apoteótica, aparece junto com a irmã Aurora Miranda. Trajadas com vistosos terminhos dourados (ou será prateados, já que as imagens foram captadas pelo mestre Edgard Brazil em preto-e-branco?) Carmen e Aurora causam furor com “Cantoras do Rádio”, de Lamartine Babo e parceiros.
Alice Gonzaga, com voz firme, apesar dos “90 anos e meio”, avisou aos espectadores (super-agasalhados e protegidos por aquecedores a gás espalhados pelo Cine Praça), que assistiriam a uma “cópia recém-restaurada em 4K, formato digital que vem dando nova vida a milhares de filmes”. A última restauração de “Alô, Alô, Carnaval” aconteceu em 2001, em 35 milímetros, formato que, hoje, encontra raríssimos pontos de exibição. Todo o parque de exibição brasileiro, atualmente com 3.532 salas, adotou, em definitivo, projetores digitais.
“Não conseguimos patrocínio para realizar essa restauração”, lamentou a herdeira da Cinédia, estúdio que está comemorando 95 anos de serviços prestados ao cinema brasileiro. “Infelizmente” — prosseguiu Alice Gonzaga — “faltam recursos para restaurar 26 dos 30 filmes produzidos por meu pai”.
Frequentadora assídua da Cine OP, a protagonista do documentário “Desarquivando Alice” (Betse de Paula, 2017) prometeu: “se conseguirmos apoio para o devido restauro”, apresentar, na vigésima-primeira edição da Mostra de Cinema de Ouro Preto, em 2026, o melodrama “O Ébrio” (Gilda Abreu, 1946), o maior sucesso comercial da Cinédia (estima-se que o filme tenha vendido entre 8 milhões e dez milhões de ingressos nas décadas de 40 e 50).
Entre os 26 filmes herdados por Alice Gonzaga e que ainda não foram restaurados está outro melodrama, “Obrigado, Doutor” (Moacyr Fenelon, 1948). E entre os que sonham vê-lo está o Maestro Leonardo Bruno, filho do clarinetista Abel Ferreira (1915-1980), um dos maiores nomes do choro brasileiro. Bruno espera rever, em especial, a atriz Hebe Guimarães, segunda esposa do pai, e responsável pela criação dele e da irmã, a cantora Vânia Ferreira, órfaos de mãe quando eram pequenos.
“Alô, Alô, Carnaval” é biscoito fino, o mais importante ‘filmusical’ da história do cinema brasileiro. Realizado em 1936, ele conseguiu registrar, em poderosas imagens (repita-se, de Edgard Brazil, o diretor de fotografia do “Limite”, de Mário Peixoto), os maiores nomes da música brasileira da primeira metade do século XX: além de Carmen e Aurora Miranda, os geniais Mário Reis, Francisco Alves, Irmãs Pagãs, Dircinha Batista, a dupla Joel e Gaúcho, Alzirinha Camargo, Almirante, o Bando da Lua, Benedito Lacerda e os 4 Diabos, a vedete Heloisa Helena, o pianista Herivelto Muraro e, de quebra, em participação especialíssima, Lamartine Babo. Sem esquecer o jovem Oscarito, que rouba a cena em suas hilárias e aliciantes intervenções. O ator brasileiro, de origem espanhola, só se transformaria em astro do riso e parceiro de Grande Otelo na década seguinte.
A trama do filme, comédia pura, gira em torno de uma dupla de “empresários” sem grana, Prata e Tomé (os cômicos Barbosa Júnior e Pinto Filho), que deseja montar a revista musical “Banana da Terra”, no Cassino Mosca Azul. Recorrem até à roleta em busca de grana, mas perdem o pouco que têm. Um lance de sorte — a companhia francesa que faria temporada na casa noturna cancela sua vinda ao Brasil — fará com que sejam convocados para a urgente substituição. Dali em diante, assistiremos a um desfile de astros, em especial intérpretes de marchinhas carnavalescas, gênero que vivia seu apogeu. Um desfile entremeado com esquetes cômicos, protagonizados pela dupla de empresários fuleiros e (até) pelo dono do Mosca Azul, empresário esperto (Jaime Costa), de corpo roliço, terno bem cortado e inseparável charutão.
O público aplaudiu, emocionado, e acompanhou — apesar do frio — Aurora e Carmen Miranda, afinadíssimas, anunciarem “Nós somos as cantoras do rádio/ levamos a vida a cantar/ de noite embalamos seus sonhos/ de manhã nós vamos te acordar”.
Parte da plateia do Cine Praça atravessou a rua estreita e entrou, esbaforida, no Cine Anexo do Museu para prestigiar a sessão de “O Silêncio de Eva”. Valeu a correria. O filme de Elza Cataldo é fruto de poderosa pesquisa. Durante anos, ela levantou tudo que foi possível sobre a “Greta Garbo dos trópicos”. Buscou a retaguarda analítica em três fontes — a pesquisadora Luciana Correia de Araújo (UFSCar), o professor José Ricardo Júnior (Centro Universitário UNA) e Ronaldo Werneck, que sabe tudo sobre a história de Cataguases e seu Ciclo Cinematográfico. E, no terreno da ficção (condimentada com pegada documental), recorreu a talentoso trio de atores mineiros — Inês Peixoto, Eduardo Moreira (estrelas do Teatro Galpão) e à jovem Bárbara Luz (de “Ainda Estou Aqui”).
Como a atriz dos primeiros filmes de Humberto Mauro (“Valadião, o Cratera” , “Na Primavera da Vida”) se tornou fotógrafa, depois de abandonar os sets cinematográficos, Cataldo recorreu a dois cidadãos de Cataguases (a bem-humorada Carmelita Novais Machado e o irresistível Luiz Schelb) para mostrar fotos suas (de quando eram lindos infantes) e de seus parentes. Todas feitas por Eva Nil. Ou melhor, por Eva Comello, nome registrado em cartório egípcio.
Por que o nome artístico de Eva Nil vem sempre acompanhado do aposto “Greta Garbo dos trópicos”?
Porque, depois de atuar em filmes de Humberto Mauro, do pai, Pedro Comello (“Senhorita Agora Mesmo”) e de Adhemar Gonzaga (“Barro Humano”), ela desiludiu-se com a profissão. Abandonou os sets ainda muito jovem (Greta Garbo aos 36, ela antes dos 25). E enviou carta à revista Cinearte solicitando que seu nome não fosse mais citado na influente publicação, que lhe dedicara duas belas capas. E, mais, que suas fotos fossem devolvidas a ela.
A comparação com a sueca Greta Garbo (1905-1990) é mostrada no documentário (híbrido) pelas atrizes Inês Peixoto e Bárbara Luz. Em frente a uma tela, elas assistem a filmes protagonizados pela própria Greta, por Janet Gaynor, Lilian Gish, musa de Griffith, e pela exótica Theda Bara (com risos da plateia, claro, pois uma das estrelas do Grupo Galpão, Teuda Bara, carrega nome assemelhado). O título “O Silêncio da Eva” já evoca a precoce despedida de Eva Nill da arte cinematográfica, que tanta amava. E que praticou na década de 1920, quando o cinema brasileiro era sinônimo de precariedade. O que causou o abandono de Eva Nill?
Ao longo dos 106 minutos de narrativa engendrados por Cataldo (de “Vinho de Rosas” e “As Orfãs da Rainha”) veremos estudiosos e personagens refletindo sobre as motivações de Eva. A mais provável é que ela tenha se cansado da precariedade da produção audiovisual brasileira, que engatinhava e, claro, enfrentava a avassaladora indústria norte-americana. Indústria poderosa ao ponto escantear o cinema europeu e monopolizar telas espalhadas por todos os cantos do planeta.
Há quem entenda que, por espírito prático e apego ao pai Pietro Comello, Eva Nill tenha se preocupado com a sobrevivência da família (o irmão Ben Nill, também ator, a mãe figurinista e o pai diretor de fotografia e cineasta). Preferiu investir no estúdio fotográfico da família, trabalho de renda garantida.
O filme de Elza Cataldo tem muitas qualidades e grande valor educativo. Pode (e deve) ser adotado nas escolas de cinema, pois constrói retrato reflexivo dos anos pioneiros de nossa fase silenciosa. Já para conseguir dialogar com o público leigo, o filme exigirá um necessário enxugamento (106 minutos resultam demasiado). A narrativa custa a encontrar um final definitivo.
Registre-se que a pesquisa empreendida por Cataldo e sua equipe é exemplar, paradigmática. O filme relembra um tempo marcado pela precariedade (o cinema brasileiro do começo do século XX), mas, mesmo rodado (em parte) durante a pandemia (caso dos ricos testemunhos dos dois professores-pesquisadores universitários), tudo chega valorizado por fotografia bem cuidada (de Fernanda Tanaka e Marcelo Borja), pela caprichosa direção de arte (de Moacyr Gramacho), pelos figurinos. Só os testemunhos de Luciana Araújo e Ricardo Jr tiveram captação à distância.
O desempenho do trio de atores é notável. O casal Inês Peixoto-Eduardo Moreira e a filha Bárbara Luz (a cara de Eva Nill, branca, melancólica, fugidia) são, mais que parceiros, cúmplices de Elza Cataldo. Seja em reconstituições ficcionadas, seja em participações documentais, eles brilham. Inclusive nas conversas domésticas, já que transformam o próprio lar em réplica da residência mineira dos Comello. A casa dos Peixoto-Moreira virou um fascinante estúdio contemporâneo capaz de transportar rumo ao passado.
Num dos mais belos momentos do filme, os atores são maquiados. As mulheres, brancas como personagens do kabuki, e Eduardo Moreira rejuvenescido por tinta preta (tanto no bigode farto quanto nos cabelos, idem). Ele se assemelhará, então, o italiano Pedro Comello naqueles anos de tortuosa aventura cinematográfica. Emoção também causam os fugazes fragmentos (imagens em movimento) de “Senhorita Agora Mesmo” e “Barro Humano”, que sobreviveram à incúria. Nunca é demais lembrar que a quase totalidade do cinema brasileiro dos anos 1910 e 1920 foi apagada de nossa história visual. Desapareceu sem deixar vestígios.