“Cinco Tipos de Medo” coloca o Mato Grosso no mapa do cinema brasileiro ao conquistar o principal prêmio do Festival de Gramado

Foto: Premiados do 53º Festival de Cinema de Gramado © Cleiton Thiele/Ag.Pressphoto

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)

Deu “Oeste” outra vez! O Centro-Oeste do Brasil, representado pelo estado do Mato Grosso, conquistou — pela segunda (e consecutiva) vez — o prêmio máximo do Festival de Gramado, o Kikito de melhor filme de ficção. Depois do goiano “Oeste Outra Vez”, vencedor do ano passado, chegou a hora e vez de “Cinco Tipos de Medo”, do cuiabano Bruno Bini.

O primeiro prêmio da milagrosamente enxuta “Noite dos Kikitos” foi entregue ao montador do mesmo “Cinco Tipos de Medo”, que vem a ser o próprio Bini. Ao empalmar o Kikito, ele iniciou seu longuíssimo agradecimento olhando para a estatueta e, depois, para o público. Sorvendo cada palavra, calmamente, o cuiabano constatou: “esse é o primeiro Kikito destinado a um longa-metragem do Mato Grosso”. Minutos depois, ele regressaria ao palco para buscar um segundo Kikito, o de melhor roteiro. Sim, Bruno Bini dirigiu, escreveu e montou seu thriller banhado em sangue e violência.

O filme mato-grossense ganharia um quarto Kikito, o de melhor ator coadjuvante, para o rapper e ator Xamã. Ele empreendeu esta que tornou-se sua estreia no cinema, com garra e personagem marcante, o traficante Sapinho. O jovem lidera gangue que toca o terror no bairro de Jardim Colorado, na periferia cuiabana.

Não houve, porém, consagração arrasadora a “Cinco Tipos de Medo”, pois o carioca “Papagaios”, de Douglas Soares, também empalmou quatro Kikitos. Incluindo o de melhor ator para Gero Camilo, magistral na pele de Tunico, um “papagaio de pirata”, louco para aparecer na TV e nas páginas ilustradas de jornais populares.

No palco, o ator cearense-paulistano deu um novo show, com discurso articuladíssimo e ousado. Como fizera no debate do filme, dias antes. Ensaiou breves passos de xaxado, moveu o corpo com a maestria de um clown e agradeceu ao parceiro Ruan Aguiar, com quem dividiu o protagonismo pirateiro. “Esse prêmio deveria ser dividido entre nós dois”, comentou, generoso. E encerrou sua vibrante fala alertando que não era “o melhor ator”. Apenas “o destaque” daquele momento. Como dissera no citado debate, a vida de um ator, nordestino e distante do padrão hegemônico de beleza, não é nada fácil.

“Papagaios”, de Douglas Soares recebe o prêmio do Júri Popular, entregue pelo Presidente do Conselho de
Administração da Gramadotur Rafael Adam © Cleiton Thiele/Ag.Pressphoto

Douglas Soares, ao receber o Prêmio do Júri Popular, agradeceu o reconhecimento e lembrou que ele e sua equipe fizeram um filme capaz de mobilizar o público de cinema e o da TV. No que está certo, pois aparecer na televisão é a meta de seus dois protagonistas — Tunico, o mais convicto dos papagaios de pirata de um Rio suburbano, e seu aprendiz, Beto, jovem obsessivo e enigmático. E a trama incluiu apresentadores de programas populares, como Claudete Troiano. Mais dois troféus foram parar nas mãos de “Papagaios”, fruto de parceria entre cariocas e paulistas (Glaz Entretenimento): o de melhor direção de arte e o de melhor desenho de som.

Outros dois filmes brilharam na distribuição dos Kikitos: o paranaense “Nó”, de Laís Melo, e o brasiliense “A Natureza das Coisas Invisíveis”, de Rafaela Camelo. Cada um empalmou três estatuetas.

“Nó”, história de operária de fábrica de processamento de alimentos, que rompe com marido abusivo e tenta reconstruir sua vida como mãe-solo de três filhas, rendeu à sua realizadora o Kikito de melhor direção. Que somou-se ao Prêmio da Crítica e o de melhor fotografia.

“A Natureza das Coisas Invisíveis”, narrativa delicada, lacunar e alusiva, recebeu Prêmio Especial do Júri e de melhor trilha sonora, para o chileno Alekos Vuskovic. Trata-se de uma coprodução Brasil-Chile. Mas, de seus troféus, o que mais causou sensação foi o de atriz coadjuvante para a veterana Aline Marta Maria.

Ela foi levada ao palco, em cadeira de rodas, pelo Corpo de Bombeiros. A esperava, vestida como uma sílfide, a atriz gaúcha Vitória Strada. Emocionada, a jovem entregou o Kikito à atriz candanga. Que agradeceu, também emocionada, à diretora Rafaela Camelo por tê-la convidado para o papel de Bisa, uma luminosa bisavó de uma das crianças que protagonizam o filme. Mas, com charme e savoir-faire, a veterana atriz confessou: “eu sabia que esse papel seria meu, disse isso à minha agente no primeiro instante”. Foi muito aplaudida.

“Cinco Tipos de Medo”, de Bruno Bini, recebe o prêmio de Melhor Filme, entregue por Marcus Aurelius Valente, Gerente Geral da Petrobras © Edison Vara/Ag.Pressphoto

Até os dois filmes (num total de seis concorrentes) que tiveram recepção bastante controvertida — as comédias de Miguel Falabella (“Querido Mundo”) e do luso-brasileiro Paolo Marinou-Blanco (“Sonhar com Leões”) — foram lembrados pelo júri que não quis deixar ninguém na condição de “olvidado”. O primeiro longa fez jus ao Kikito de melhor atriz, para Malu Galli. O segundo, a uma modesta menção honrosa.

Malu Galli  é uma grande atriz, mas garantiu seu primeiro troféu Kikito com papel de construção duvidosa. O roteiro de Falabella, que atualiza peça escrita 32 anos atrás, tem mais furos dramáticos que uma peneira. A atriz foi obrigada a regressar ao Rio para as gravações do remake de “Vale Tudo”, no qual interpreta Celina, a irmã gente-boa da megera Odete Roitman (Débora Bloch).

E foi de um set do Projac que Malu Galli agradeceu ao prêmio, com simpatia e presença de espírito. Já Paolo Marinou-Blanco subiu ao palco do Palácio dos Festivais para buscar a discreta menção honrosa atribuída a “Sonhar com Leões”. Um filme carregado nas costas por sua protagonista, Denise Fraga. E foi a ela, que poderia ter ganho o Kikito de melhor atriz (mesmo caso de Saravy, protagonista de “Nó”), que o cineasta dedicou seu maior reconhecimento. “Denise é uma atriz maravilhosa, quero fazer muitos outros filmes com ela”.

Bruno Bini, de “Cinco Tipos de Medo”, recebe o prêmio de Melhor Roteiro, entregue por Maria do Rosário Caetano © Edison Vara/Ag.Pressphoto

Depois da entrega do principal Kikito a “Cinco Tipos de Medo”, os defensores de “Nó” (ou de “A Natureza das Coisas Invisíveis”, dois filmes que pesquisam temas e novas formas de expressão) — lamentaram “o coroamento de um filme-espetáculo, aparentado ao mainstream”.

Quem conhece a história cinquentenária do Festival de Gramado sabe que seus curadores nunca vestiram figurino cabeçudo. Ou seja, nunca tiveram preconceito contra filmes narrativos e protagonizados por elencos estelares. E, nesse terreno, o segundo longa-metragem de Bruno Bini constitui-se como uma boa surpresa. Soma roteiro engenhoso, atores de imenso talento e ritmo vertiginoso. E o júri, composto com os cineastas Sergio Rezende, Petrus Cariry e Fernanda Lomba, e com os atores Isabel Fillardis e Edson Celulari, não seguiu apenas a cartilha do cinema espetáculo. Vide os dez troféus atribuídos a “Papagaios” (quatro), “Nó” (três) e “Coisas Invisíveis” (três).

Menos feliz foi o júri de longas documentais, formado com o ator Marcos Breda e os documentaristas Bertrand Lira e Thais Fernandes. Eles escolheram, entre quatro concorrentes, o filme “Lendo o Mundo”, da californiana Catherine Murphy, codirigido pela baiana Iris de Oliveira. Este documentário, apresentado como uma “produção potiguar”, destaca-se mais pelo tema (a experiência de alfabetização de adultos empreendida por Paulo Freire em Angicos), que por sua construção narrativa.

O prêmio, se os jurados tivessem privilegiado o exercício do cinema como expressão artística, deveria ser atribuído ao documentário “Para Vigo me Voy”, dos pernambucanos Lírio Ferreira e Karen Harley. Ou mesmo ao amazonense “Os Avós”, de Ana Lígia Pimentel. Este documentário sobre mulheres que foram mães aos 13, 14 ou 15 anos e veem suas filhas seguir pelo mesmo caminho, traz poderosas imagens da Amazônia e de sua gente. Em especial de mães adolescentes e avós muito jovens (de 29 ou 30 anos), repetindo o ciclo da maternidade precoce. “Os Avós” peca, sim, por certa redundância, mas instiga o espectador a refletir sobre a tragédia social resultante da falta de planejamento familiar que, na Amazônia, principalmente no seio de famílias indígenas, assume proporções devastadoras.

Confira os premiados:

LONGAS-METRAGENS FICCIONAIS BRASILEIROS

. “Cinco Tipos de Medo”, de Bruno Bini (MT) – melhor filme, melhor roteiro (Bruno Bini), melhor ator coadjuvante (Xamã), melhor montagem (Bruno Bini)
. “Papagaios”, de Douglas Soares (RJ) – melhor filme pelo Júri Popular, melhor ator (Gero Camilo), direção de arte (Elsa Romero), desenho de som (Bernardo Uzeda, Thiago Sobral e Damião Lopes)
. “Nó”, de Laís Melo (Paraná) – melhor direção, Prêmio da Crítica (Accirs-Abraccine), fotografia (Renata Corrêa)
. “A Natureza das Coisas Invisíveis”, de Rafaela Camelo (Brasília) – Prêmio Especial do Júri, atriz coadjuvante (Aline Marta Maria), trilha sonora (Alekos Vuskovic)
. “Querido Mundo”, de Miguel Falabella (RJ) – melhor atriz (Malu Galli)
. “Sonhar com Leões”, de Paolo Marinou-Blanco (SP) – Menção honrosa do júri

LONGAS DOCUMENTAIS BRASILEIROS

.”Lendo o Mundo” (RN), de Catherine Murphy e Iris de Oliveira – melhor longa documental
. “Para Vigo me Voy!” (RJ), de Lírio Ferreira e Karen Harley – Menção honrosa do júri

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