Citronela Doc debate produção do interior e do litoral e aplaude “Maestra”, “Topo” e “Alma Negra”

Foto: “Maestra”, de Bruna Piantino

Por Maria do Rosário Caetano, de Ilhabela (SP)

Dois filmes chamaram atenção no Citronela Doc, o Festival de Documentários de Ilhabela, realizado no litoral norte de São Paulo – “Maestra”, da mineira Bruna Piantino, e “Topo”, do paulistano Eugênio Puppo.

O documentário de Piantino chama atenção pela originalidade de seu tema (a vida de uma mestre-de-obra da construção civil) e por seguir trilhas abertas por dois filmes de grande importância para o cinema contemporâneo de Minas Gerais — a ficção “Arábia”, de Affonso Uchoa e João Dumans (2017), e o documentário “Baronesa”, de Juliana Antunes (2018). Os três têm, em comum, olhares sobre o mundo do trabalho. Prestam significativa atenção aos difíceis ofícios laborais, aqueles que garantem a precária sobrevivência de milhões de brasileiros.

“Topo” ancora sua força narrativa em seu protagonista, o septuagenário Edivaldo Nascimento, fotógrafo, cineasta amador e morador de São Sebastião, município separado de Ilhabela por nesga de mar e unido por serviços de balsas.

“Maestra” também conta com personagem fascinante. Ela se chama Cenir Aparecida Silva, é mineira, tem 58 anos e veio de família muito pobre, marcada pela violência paterna. A operária da construção civil tem filhos, que criou sozinha, trabalhando muito e em múltiplos e humildes ofícios. Até sua vida mudar, quando foi selecionada para curso de formação de mestres-de-obra da UFMG, a poderosa Universidade Federal de Minas Gerais.

Rara figura feminina em ofício dominado por homens (os “peões” da construção civil), Cenir se destacou por méritos próprios. Na década de 1990, ela passou a atuar em mutirões autogestionados promovidos pela Prefeitura de Belo Horizonte e se impôs como mestre-de-obras. Mestra, ou maestra, já que foi convocada a ministrar oficinas de autoconstrução no projeto “Arquitetura na Periferia”. Tornou-se professora de mulheres de baixa renda. Ensinou suas discípulas a reformar e construir suas próprias casas, colaborando com a formação de importante rede de autonomia feminina.

Bruna Piantino, que apresentou o filme ao público do Citronela Doc ao lado da simpática e sorridente Cenir, acompanhou sua protagonista por longos seis anos. “Maestra” (nome sintético, forte e polifônico) lembra, coloquialmente, as dores da infância de Cenir (o pai que chegava em casa bêbado e espancava a esposa), o trabalho precoce na adolescência (“aos 12 anos fui trabalhar numa venda e tinha que subir num caixote para alcançar o balcão”) e a vida adulta (mãe solo em busca do sustento do lar).

Veremos Cenir, também, em animadas conversas com as amigas. Os assuntos podem ser sérios (o “sonho impossível” de estudar Engenharia Civil), ou divertidos (o prazer de tomar uma cachacinha). Mas a alma do filme está concentrada no trabalho. Na maestria com que Cenir exerce seu ofício e repassa seus conhecimentos às alunas. Uma delas, até a chama de mãe, por ter apenas um ano a mais que a filha mais velha da mestre-de-obra.

Cenir é articulada, se expressa em ótimo português, tem dentes brancos e bem-cuidados, cabelos grisalhos, curtos e bem-penteados. Veste roupas simples e discretas. A fotografia de “Maestra”, também assinada por Bruna Piantino, é calorosa e capaz de revelar o trabalho duro de sua protagonista, uma “combinação de cálculo, força e um certo jeito de corpo”.

O melhor do filme é sua intenção de deixar sua personagem apresentar sua vida cotidiana sem levantar bandeiras explícitas. Nós, os espectadores, depois dos enxutos 60 minutos de narrativa, ficamos enredados pela trajetória de Cenir. Uma mulher que se impôs num universo essencialmente masculino e tornou-se um exemplo, valorizou sua capacitação profissional e se dispôs, como uma maestra laboral, a preparar outras “Cenir”, operárias da construção civil. Qualificadas a erguer paredes, empenas, cumieiras e telhados. Esse projeto da UFMG em parceria com a Prefeitura de BH deveria servir de modelo aos milhares de municípios brasileiros. Afinal, dar moradia digna a milhões de brasileiros é um dos maiores desafios do país.

“Topo”, o filme de Eugenio Puppo, passa a integrar, doravante, a lista de produções ambientadas no Litoral Norte de São Paulo. Lista que começou com “Caiçara”, da Vera Cruz, lançado em 1950, e prosseguiu com dezenas de títulos, incluindo aventuras históricas (“Hans Staden”), dramas adulto-eróticos (“Eu”), infanto-juvenis (“Ilha do Terrível Rapaterra”), dramas intimistas (“A Felicidade das Coisas”) e a produção internacional “Meu Amigo Pinguim”, protagonizada pelo grande Jean “O Profissional” Reno). Até pornochanchadas escolheram a região como cenário (algumas delas citadas por Edivaldo, em “Topo”).

O longa documental que Puppo ambientou em São Sebastião teve no sebastianense Pedro Junqueira um de seus esteios. Ele ajudou na pesquisa-base do roteiro, do qual é coautor, e assumiu a assistência de direção. O título refere-se ao bairro de Topolândia, densamente povoado. Nele reside o cineasta amador Edivaldo. Apaixonado pelo cinemão de Hollywood, o sebastianense comprou, no final dos anos 1970, uma câmara Super-8. O fez em parceria com um amigo, pois a grana era curta. Vivia seus tempos de juventude e desejava, além de dirigir, protagonizar trama de ação, na qual interpretasse o mocinho. Um náufrago que, recuperado, lutava contra rivais como se fosse um herói de quadrinhos.

“Topo”, de Eugênio Puppo

Puppo conseguiu restaurar o Super-8 de Edivaldo e colocá-lo como matéria constitutiva de “Topo”. No Citronela Doc, porém, a sequência foi prejudicada, pois a introdução da figura responsável pela acessibilidade (Linguagem de Libras) estava colocada justamente sobre as cenas de ação do mocinho sebastianense. Ninguém pode ser contra a acessibilidade. Trata-se de conquista civilizatória. Mas temos que encontrar soluções tecnológicas compatíveis. Uma imagem de grandes dimensões, projetada na tela, não pode disputar espaço com a trama do filme. Existem soluções menos invasivas.

“Topo” dá seguimento a outro projeto importante de Puppo, o longa documental “São Miguel do Gostoso”, que radiografou, em 2012, as grandes mudanças verificadas no balneário potiguar. A pequena vila de pescadores transformava-se em foco turístico, graças às suas praias quentes e sedutoras, perfeitas para a prática de esportes eólicos. Mas problemas sociais múltiplos começavam a aparecer. Em especial, a questão do uso de drogas.

O filme realizado na Topolândia de São Sebastião mostra o impacto de grandes obras de infraestrutura empreendidas no município e as transformações trazidas pela expansão do turismo. Uma moradora defende os direitos dos caiçaras, vítimas da ganância de especuladores imobiliários. A jovem Yara, por sua vez, busca uma moradia para alugar. E mantém, pelo celular, a mãe informada sobre as tratativas que vai levando adiante. Ao mesmo tempo, o bairro vai sofrendo transtornos provocados pela construção de rodovia. E, para complicar, tempestade inesperada faz a lama escorrer morro abaixo e causar imensos danos.

FLASHES CAIÇARAS

. CINEMA DO INTERIOR E DO LITORAL — O Citronela Doc realizou encontro de diretores e produtores que atuam em 96 dos 645 municípios que compõem o estado de São Paulo. Eugenio Puppo e Pedro Junqueira somaram-se a duas dezenas de representantes de municípios do Vale do Ribeira, Baixada Santista e do Litoral Norte. De Jacareí (213 mil habitantes), veio o produtor e cineasta Wagner Rodrigo, integrante da diretoria do ICine (Fórum de Cinema do Interior Paulista). Esta associação criada, poucos anos atrás, como força agregadora de 12 municípios do “Oeste profundo” cresceu e conta, agora, com realizadores, produtores e distribuidores de quase cem cidades interioranas e do litoral paulista. Uma de suas máximas é produzir filmes que possam ir de “Cannes à Cana”. Tudo começou com curtas de João Paulo Miranda Maria (“A Moça que Dançou com o Diabo”, “Meninas Formicida”, “Command Action”), que chegaram a festivais europeus. E a Cannes. Dali em diante, formou-se a Cooperativa Oeste, que tem em Guilherme Xavier, diretor de “Ainda Existirão Robôs nas Ruas do Interior Profundo”, um de seus principais artífices. Ele já prepara seu primeiro longa-metragem, que será produzido por Eugênio Puppo.

. THEODORICO, O IMPERADOR DO SERTÃO — O mesmo Eugenio Puppo, dono de projetos consistentes e surpreendentes, tem novidade cinematográfica para apresentar ainda esse ano: um documentário sobre o “coronel” Theodorico Bezerra (1903-1994). Um político potiguar muito conhecido na região e que deixou herdeiros, atuantes, ainda hoje, no nosso cenário político. Responsável por oficinas audiovisuais no litoral do Rio Grande do Norte e pela Mostra de Cinema de São Miguel do Gostoso, Puppo resumiu, durante o Encontro de Realizadores do Interior e do Litoral Paulista, a experiência audiovisual potiguar. Que pode servir de paradigma a futuras experiências de municípios interioranos espalhados por outras unidades da Federação. Depois de realizar 35 curtas, que mobilizaram, ao longo de uma década, 153 oficineiros, o coletivo gostosense (Nós do Audiovisual) prepara seu primeiro longa-metragem. O filme, no qual Eugenio Puppo assina a produção, promove imersão na vida do major (ou “coronel”) Theodorico, tema de formidável média-metragem de Eduardo Coutinho, exibido em 1978, pelo Globo Repórter (em sua era de ouro). Latifundiário, quase um senhor feudal, o velho “coronel” expunha, para Coutinho, seu poder de mando sobre todos que o cercavam. O filme do Nós do Audiovisual está em adiantado estágio de produção. “Faltam apenas duas diárias para concluirmos as filmagens“, contou Puppo. O documentário deve ter sua primeira exibição ainda este ano. Será que vai abrir a Mostra de Cinema de Gostoso?

. MULHERES-PEIXE E “DO QUILOMBO AO BAILE” — O Festival de Documentários de Ilhabela abriu espaço nobre para filmes de temática indígena e afro-brasileira. Dois longas-metragens — “Mundurukuyü – A Floresta das Mulheres-Peixe”, de Aldira e Ricélia Aray e Beka Munduruku, e “Alma Negra, do Quilombo ao Baile”, de Flávio Frederico, foram muito bem recebidos pelo público ilhenho. O primeiro, produção da Pindorama de Estevão Ciavatta, encantou por sua fotografia exuberante e pelos trechos, em animação, que recriam cosmogonias Munduruku (um jovem que vira anta, moças que mergulham no mar e transmutam-se em peixes). A vibração com “Alma Negra” era esperada, inevitável. Embora o filme tenha um lado cabeçudo (com intelectuais que explicam o racismo estrutural brasileiro), não há como resistir aos números musicais que embalam sua vibrante trilha sonora. Tim Maia e Cassiano causam furor. Outros astros da Black Music mandam ver. Tony Tornado arrasa com sua lisérgica interpretação de “BR 3” e relato sobre sua aventura matrimonial com a loura Arlete Salles. Sandra de Sá fecha o filme com seu canto impregnante (“Olhos Coloridos”), enquanto, na tela, desfilam heróis da negritude (aqueles que não estão mais entre nós): Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Ruth de Souza, Léa Garcia, Abdias Nascimento, Zózimo Bulbul, Dona Ivone de Lara, Grande Otelo, Milton Santos, Milton Gonçalves, Marielle Franco e muitos outros. O filme se fez representar no Citronela Doc por BiD, seu produtor, cocriador e arregimentador de talentos da soul music. Embora seja de origem polonesa, o brasileiríssimo trilheiro de cinema (colaborador de Laís Bodanzky, Walter Salles) e produtor musical (inclusive de disco de Chico Science) é fã juramentado do canto de Sandra de Sá e de toda a  irmandade black. Um músico que não resiste  aos versos “Os meus olhos coloridos/ Me fazem refletir/ Eu estou sempre na minha/ E não posso mais fugir// Meu cabelo enrolado/ Todos querem imitar/ Eles estão baratinados/ Também querem enrolar (…)// A verdade é que você/ Tem sangue crioulo/Tem cabelo duro/ Sarará crioulo”.

. ARTACHO JURADO, SINFONIA DE UM ARQUITETO — O cineasta Pedro Gorski, integrante da Associação Cultural Citronela, que organiza o Festival de Documentários de Ilhabela, tem um novo longa documental para mostrar, primeiro nos festivais, depois nos cinemas, TVs e plataformas de streaming: “Artacho Jurado, Sinfonia de um Arquiteto”. Trata-se, claro, de registro sobre a obra do brasileiro, de origem espanhola, João Artacho Jurado (1907-1983), que construiu prédios-referência em São Paulo e Santos. O interesse de Pedro Gorski pela arquitetura e pelo urbanismo é imenso. Tanto que ele já realizou um documentário sobre outro nome de primeira grandeza de nossa história arquitetônica — o paranaense-uspiano Villanova Artigas (1915-1985). Aliás, registre-se: por sorte, a filmografia brasileira dedicada a nossos arquitetos e urbanistas vem crescendo de forma exponencial. Oscar Niemeyer, claro, é o mais lembrado. Mas já tiveram suas vidas documentadas, Lúcio Costa, Sergio Bernardes, Affonso Reidy, Paulo Mendes da Rocha, os Irmãos Roberto (Marcelo, Milton e Maurício) e Jaime Lerner. Todos nomes incontornáveis da arte da moradia e de monumentos (palácios, estádios, cinemas, centros de convenções etc.).

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