Thriller cuiabano de Bruno Bini, Paulo Freire em Angicos e avós de trinta anos movimentam dias finais do Festival de Gramado

Foto: Equipe de “Cinco Tipos de Medo”, de Bruno Bini © Cleiton Thiele/Ag.Pressphoto

Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)

O Festival de Cinema de Gramado vem dando significativo destaque ao cinema realizado fora do eixo Rio-São Paulo. Exibiu e premiou, em edições recentes, o acriano “Noites Alienígenas”, de Sergio de Carvalho”, e o goiano “Oeste Outra Vez”, de Érico Rassi. Exibiu, também, o tocantinense “O Barulho da Noite”, de Eva Pereira, em sessão histórica que trouxe imensa representação do estado nortista (quase 200 pessoas) à Serra Gaúcha.

Agora chegou a vez de um longa ficcional do Mato Grosso — o thriller social “Cinco Tipos de Medo”, de Bruno Bini — disputar, pela primeira vez, o Troféu Kikito. O cineasta cuiabano, de 47 anos, subiu ao palco do Palácio dos Festivais com sua imensa equipe artística e técnica e com sua parceira de produção, a gaúcha Luciana Druzina.

Depois da aplaudida exibição de “Cinco Tipos de Medo”, era chegada a hora de mostrar, no telão do Palácio dos Festivais, o amazonense “Os Avós”, de Ana Lígia Pimentel. A equipe da cineasta, que inclui a multiartista e performer Elizeth Tikuna, fez questão de levar a bandeira do estado nortista ao palco e exibi-la com orgulho.

Ana Lígia destacou, em sua emocionada fala, que “Os Avós” é “o segundo longa-metragem amazonense projetado em mostra competitiva do festival gaúcho”. O primeiro — “Asa Branca, um Sonho Brasileiro” (1982), de Djalma Limongi — participara da competição ao Troféu Kikito, em 1982, portanto 43 anos atrás.

Só que “Asa Branca”, o longa de Limongi, manauara formado pela USP, era uma produção concebida e realizada em São Paulo. Portanto, sem locações e temática amazônicas. Mesmo assim, Ana Lígia fez questão de defender “Asa Branca” como “um filme amazonense”. E justificou sua postura: “em nome da história do cinema de nossa região, faz-se necessário dar o devido crédito ao saudoso Djalma Limongi, patrimônio histórico e artístico de nosso estado”.

A equipe do terceiro filme da noite — o documentário “Lendo o Mundo”, de Catherine Murphy, codireção de Iris Oliveira — também representou estado não-hegemônico na produção audiovisual brasileira, o Rio Grande do Norte. Mas sua criadora, a documentarista californiana Catherine Murphy, é, na verdade, uma globe-trotter. Formada pela Universidade de Stanford e ligada a movimentos sociais e, principalmente, à educação, ela estreou no audiovisual com “Maestras” (2021), sobre brigadas de alfabetização mobilizadas pela Revolução Cubana. A diretora californiana viveu e fez estudos de pós-graduação em Havana. Justo no chamado “Período Especial”, advindo da débacle da União Soviética e de seus satélites no Leste Europeu.

Ao chegar ao Brasil, a documentarista, que estudou, em Stanford, o livro “Pedagogia do Oprimido” (obra mais traduzida de Paulo Freire), realizou o filme “Fonemas da Liberdade”. E partiu para o projeto que a trouxe a Gramado e recriou a experiência de Paulo Freire na pequena cidade potiguar. “Lendo o Mundo” sintetiza a aventura freiriana e angicana em apenas 70 minutos.

Equipe de “Os Avós”, de Ana Ligia Pimentel © Cleiton Thiele/Ag.Pressphoto

“Cinco Tipos de Medo”, o longa de ficção que encerrou a mais disputada das competições gramadenses, foi exibido para um cinema lotado (fato que não se repetiu com os dois longas documentais).

A equipe de Bruno Bini teve um “tapete vermelho” dos mais badalados, por causa da presença da cuiabana Bella Campos, intérprete da alpinista social Maria de Fátima, no remake de “Vale Tudo”.

Registre-se que o filme foi rodado dois anos atrás, portanto antes da atriz se projetar no papel que fôra desempenhado, em 1988, por Glória Pires. E que Bella entrou na equipe de “Cinco Tipos de Medo” como prata da casa. Uma cuiabana convocada a integrar elenco multiestadual. O longa foi rodado em dois bairros periféricos da capital mato-grossense (Jardim Colorado e Ribeirão do Lipa).

Bruno Bini reuniu, neste que é seu segundo longa-metragem (o primeiro, “Loop”, de 2019), elenco de peso e talento — as mineiras Bárbara Colen e Rejane Faria, os paulistas Rui Ricardo Diaz e Zécarlos Machado, e os cariocas João Vitor Silva,  Xamã e Jonathan Haagensen. No elenco de apoio, aparece nome fundamental na história do cinema mato-grossense, o ator e cineasta Amaury Tangará (ele interpreta, com brilho e nuance, um comandante da Polícia Militar). A gaúcha Mariana Catalane incorpora uma repórter de TV. E atores não-profissionais (alguns rappers) interpretam os integrantes das gangues de Sapinho-Colorado e do Ribeirão do Lipa.

O elenco é o ponto alto desse filme coral, que se propõe a mostrar medos que atormentam o ser humano e o fazem adotar reações instintivas e brutais. A narrativa soma vidas, aparentemente desconectadas, numa ciranda banhada em sangue e vingança.

O jovem músico Murilo (João Vítor) vive período de luto e dor pela morte da mãe, vítima da Covid. Casualmente, ele se encanta por Marlene (Bella Campos), enfermeira envolvida em relacionamento abusivo com o traficante Sapinho (Xamã). As histórias desse trio se cruzarão com as de Luciana (Bárbara Colen), policial movida por perturbador desejo de vingança, e de Ivan (Rui Ricardo Dias), advogado com intenções também perturbadoras e ocultas.

Outras estórias se entrelaçarão com as dos cinco protagonistas. A de uma mãe, Antônia (Rejane Faria), que vive no território comandado pela gangue de Sapinho, e a de um vizinho, Régis (Zecarlos Machado), ambos em participações sintéticas, mas muito importantes. Jonathan Haagensen, o Cabeleira de “Cidade de Deus”, em seu terceiro trabalho com Bruno Bini, interpreta policial da mesma equipe da Capitã Luciana.

O mato-grossense Bruno Bini assina três funções-chave no filme — direção, roteiro e montagem. Além da ótima direção de atores, ele conseguiu, dessa vez e inspirado na crônica policial cuiabana, construir trama vibrante. E o fez em forma de quebra-cabeça, conseguindo aclimatar séries policiais de matriz norte-americana ao calor tropical.

O roteiro adota algumas “liberdades narrativas”, que soam inverossímeis (um velho colecionador de armas em terreno conflagrado, tiros providenciais, pois poupam os protagonistas, celular manipulado por bandidos junto ao corpo de vítima muito especial). Mas isso se processa no detalhe, a ponto de não suspender a crença do espectador.

No conjunto, o filme resulta convincente ao longo de seus adrenalinados 109 minutos. E isso se deve à engenhosidade do roteiro, capaz de nos trazer verdadeiras surpresas. Traz, também, ótimo domínio dos códigos do cinema de ação, com cenas de tiroteio e brigas violentíssimas. Todas muito bem filmadas.

No debate de “Cinco Tipos do Medo”, a sequência mais comentada foi aquela que antagoniza a policial Luciana ao traficante Sapinho, respeitado como protetor de sua comunidade. A briga, coreografada, claro, resultou das mais convincentes.

O diretor-roteirista-montador assegurou que o filme se inspirou em personagens reais e que basta, aos curiosos, acessar as páginas dos jornais mato-grossenses caso queiram conferir. E mais: a personagem de Dona Antonia, aquela que sonha com a saída de Sapinho da prisão, para que ele volte a colocar ordem no bairro de Jardim Colorado, sintetiza movimento comunitário ocorrido na vida real. “A comunidade se mobilizou, efetivamente, para que o traficante saísse da cadeia e regressasse ao bairro”.

O filme, produzido pela cuiabana Plano B Filmes e pela portalegrense Druzina Contents, deixa o espectador mais sensível com uma pulga atrás da orelha. Afinal ele traz, em sua estruturação, um certo determinismo (e pessimismo). Uma policial-mulher (a Luciana, de Colen) e um advogado sorvem o cálice da vingança. A aceitação do crime (seja como prática de sobrevivência, seja como fonte de proteção comunitária) parece a todos contaminar. Mas, no final, surgem rasgos de luz no horizonte. Pequenos raios de esperança (aqueles pelos quais o produtor de Federico Fellini implorava).

Para alegria e júbilo do distribuidor Bruno Wainer, da Downtown, que deve colocar “Cinco Tipos de Medo” no mercado exibidor, no primeiro semestre de 2026!!! “Nossa première mundial se dá aqui em Gramado”, contou a coprodutora Luciana Druzina. “Daqui, partiremos para o circuito de festivais e para a preparação, com Bruno Wainer e sua poderosa Downtown, para nossa campanha de lançamento”.

MÃES ADOLESCENTES E AVÓS DE 30 ANOS  — O documentário “As Avós” introduz, no cinema brasileiro, tema da maior importância e muito pouco explorado — a gravidez na adolescência e suas consequências. Ou seja, a repetição do ciclo: mães adolescente se tornam avós aos 29, 30 anos. A diretora encontrou, entre seus personagens e agregados, uma tataravó de apenas 75 anos.

O filme amazonense, de 90 minutos, tem fotografia (de Ana Rezende e Arnaldo Bentes) e locações de grande qualidade artística e técnica. A escolha dos personagens (seis no total, cinco mulheres e um homem, que foi pai adolescente e viu sua filha tornar-se mãe também adolescente) traz alguma redundância. Mas revela uma realidade que parece muito distante de nosso cotidiano urbano. Porém, na Amazônia, vem assumindo proporções mais que preocupantes.

Ana Lígia e sua Queima Filmes uniram-se aos produtores brasilienses Patrick de Jongh e Cibele Amaral, para, ao somar forças, permitir que o documentário desse ao seu tema, tão importante e urgente, o tratamento técnico-artístico merecido.

A trupe abraçou o filme disposta a fugir do documentário tradicional e declaratório (os recorrentes “cabeças-falantes”). Quis somar, à sua natureza documental, cenas encenadas. Como aquela em que Elizeth Tikuna faz performance com os filhos, entre as imensa raízes de frondosa sumaúma. Enfim, estimular as potencialidades sensoriais da imagem.

Ana Lígia contou com “a cumplicidade de todos os seus personagens, que aceitaram expor, generosamente, suas vidas”. Há momentos impressionantes: jovens de 13, 14 anos amamentando os filhos e, em seguida, indo brincar. Ou jogar futebol. Ou jogar free fire. A Amazônia, com sua Zona Franca, coloca a tecnologia na vida de todos.

“O tema de nosso filme”, lembrou Ana Lígia, “é pesado e denso”. A religião acaba normalizando a maternidade precoce e repetindo que “tal maternidade é uma benção divina”. Mas pouco é feito para evitar as consequências, muitas vezes cruéis, já que geram conflitos geracionais, estruturais e culturais. A maior parte das meninas que engravidam não conta com nenhuma infraestrutura de apoio. E os garotos — constatam os que conhecem o assunto — utilizam cada vez menos preservativos.

Além de ocupar-se com o lançamento do filme, que deve ocorrer em 2026, Ana Lígia e sua equipe estão empenhadas na criação de “um site moderno e sedutor, sem a frieza de publicações oficiais”. Estes “se mostram incapazes” de colocar a maternidade precoce em discussão. “Estamos fugindo daquele formato clean, branco, homogêneo, e apostando em algo vivo e bastante colorido”.

PAULO FREIRE, ANGICOS E CASTELO BRANCO — O debate do documentário “Lendo o Mundo” acabou se atendo mais ao tema do filme — a educação como prática da liberdade em Angicos, no Rio Grande do Norte — que à construção de sua estrutura narrativa.

Catherine Murphy e sua equipe recorreram a gravações de testemunhos de angicanos, aqueles que foram alfabetizados em 40 horas por professoras-discípulas de Paulo Freire (entre elas, sua filha Madalena Freire) coordenadas por Marcos Guerra. Este jovem profissional atuou como braço direito do educador pernambucano em sua experiência pioneira em Angicos, ocorrida na primeira metade da década de 1960.

A documentarista e seus quatro montadores somaram aos testemunhos dos que foram alfabetizados farto material de arquivo – trechos de filmes (com “Cabra Marcado para Morrer”, “Maioria Absoluta”), imagens de Francisco Julião em sua luta pela formação das Ligas Camponesas e, principalmente, fotos, muitas fotos.

Além do histórico registro visual do “Tu Já Lê” (descoberta do mecanismo da leitura), uma fotografia, em especial, se destacará. Pertencente ao acervo pessoal de Marcos Guerra, a imagem registra o encontro de autoridades do Governo Federal, incluindo o presidente João Goulart, autoridades estaduais e municipais. E Paulo Freire (1921-1997), claro. Todos sorridentes, pois festejavam, ao lado dos alunos, o êxito obtido, em Angicos, naquela fértil experiência de alfabetização de adultos.

Uma só pessoa mantinha o rosto impassível — o então comandante do IV Exército, General Humberto de Alencar Castelo Branco, integrante da comitiva presidencial.

Dali a meses, ele que definira o que vira em Angicos como um método de alfabetização muito perigoso, pois rompia com o princípio da hierarquia, seria um dos líderes do golpe militar de 1964. E se tornaria o primeiro dos cinco presidentes do período ditatorial (1964-1984).

Catherine Murphy espera lançar seu filme no circuito comercial no primeiro semestre de 2026. Espera também vê-lo multiplicar-se no circuito popular, através de rede que unirá o Instituto Paulo Freire a sindicatos, associações de moradores e ao MST. Que, aliás, contribuiu com a realização de “Lendo o Mundo”, através de sua Brigada Audiovisual Eduardo Coutinho.

A documentarista californiana espera, também, colocar o filme em escolas, universidades, cineclubes e televisões de seu país natal, os EUA, da Europa e de outros continentes.

Satisfeita com a vitrine de Gramado, Catherine contou ao público do debate gramadense que “todo o material bruto colhido junto aos participantes da experiência potiguar de Freire, foram cedidos aos roteiristas do longa ficcional que será realizado por Felipe Hirsh, tendo Wagner Moura como protagonista (não se sabe se na pele do próprio Paulo Freire, de Marcos Guerra ou de professor fictício dedicado à pedagogia da libertação).

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