“O Agente Secreto” derrota “Manas” e seus aliados empresariais e conquista indicação para representar o Brasil na disputa por vaga ao Oscar internacional
Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília (DF)
“O Agente Secreto”, quinto longa-metragem do pernambucano Kleber Mendonça Filho, laureado com duas Palmas de Ouro (melhor direção e melhor ator para Wagner Moura), Prêmio Fipresci (Crítica Internacional) e Art et Essai (Arte e Ensaio), no Festival de Cannes, é o indicado brasileiro para disputar vaga ao Oscar na categoria melhor filme internacional.
O anúncio, feito pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Visuais, nessa segunda-feira, 15 de setembro, revelou os nomes dos integrantes do júri. Esta prática (manter segredo até o final) foi adotada há três anos para evitar pressão sobre os jurados (veja, no final desse texto, a robusta lista com os nomes dos profissionais que escolheram “O Agente Secreto”).
A disputa foi acirrada, pois, na última semana, a cineasta (também pernambucana, embora nascida em Brasília), Marianna Brennand, de 45 anos, mobilizou apoios importantes, como o do ator Sean Penn, um de seus apoiadores de produção, e de 70 empresários, muitos deles ligados às ramificações do grupo Brennand, atuante nas áreas de cerâmica, vidros, energia e imóveis. Sobrinha-neta do pintor e ceramista Francisco Brennand (1927-2019), Marianna preside o conselho deliberativo de magnífico parque-museu (Oficinas Brennand), situado nos arredores do Recife.
Outros grupos empresariais (Vale e Vibra, entre eles), sem ligação com o setor cinematográfico, apoiaram com empenho a candidatura de “Manas”, ampliando o cacife do filme. A ponto dele ganhar imensa visibilidade na imprensa, na hora derradeira. E tornar-se o maior concorrente de “O Agente Secreto”.
Os representantes das empresas se manifestaram na disputa “como patrocinadores de campanhas contra o abuso de menores”, tema do filme de Marianna, premiado na Jornada dos Autores, mostra paralela do Festival de Veneza. Lançado no circuito comercial, “Manas” teve desempenho modesto. Menos de 30 mil espectadores. Já “O Agente Secreto”, que só chegará aos cinemas brasileiros no dia 6 de novembro, pretende superar a bilheteria de “Bacurau”, que se aproximou dos 900 mil ingressos. Para tanto, sua distribuidora, Silvia Cruz, da Vitrine Filmes, pretende lançá-lo em 500 salas.
“O Agente Secreto”, o mais ambicioso dos filmes de Kleber Mendonça Filho, 56 anos, foi exibido na noite inaugural da quinquagésima-oitava edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro para plateia que lotou o Cine Brasília. O diretor subiu ao palco na companhia de sua produtora, Emilie Lesclaux, de parte de seu elenco (Maria Fernanda Candido, Isabel Zuaa, Alice Carvalho e Laura Lufési), de sua distribuidora Silvia Cruz, do diretor de arte Thales Junqueira e da equipe brasiliense que deu suporte a sequência filmada na capital da República.
O cineasta pernambucano foi sintético em sua apresentação. Contou que concebera “O Agente Secreto” como “um filme de época” (a década de 1970), mas que, ao concluí-lo, percebera que realizara “um filme sobre o Brasil contemporâneo”.
KMF agradeceu à Petrobras, que patrocina o complexo processo de distribuição do filme (a estreia norte-americana está programada para poucas semanas depois da brasileira, ainda em novembro). A empresa petrolífera, por sua vez, distribuiu ao público presente no Cine Brasília, vistoso jornalzinho de quatro páginas. Sob manchete e vistosa foto de Wagner Moura, o protagonista, cercado de um delegado e dois agentes policiais, a empresa destacou, na publicação, seu decidido apoio ao filme.
Na condição de “maior patrocinadora do cinema brasileiro” — detalhou — “há 30 anos, incentivamos o audiovisual e os grandes talentos dessa indústria”. Na página dois, foi lembrada “a parceria transformadora” com KMF, presente nos quatro filmes de ficção que ele realizou (“O Som ao Redor”, “Aquarius”, “Bacurau”, este com Juliano Dornelles, e agora “O Agente Secreto”).
A empresa sequenciou a publicação destacando outros filmes por ela apoiados, sendo “Carlota Joaquina, Princesa do Brazil”, de Carla Camurati, o primeiro. E citou outros títulos, como “Cidade de Deus”, “Amarelo Manga”, “Bicho de Sete Cabeças”, “Boleiros 2”, “Durval Discos”, “Cinema, Aspirina e Urubus”, “Carandiru”, “Saneamento Básico”, “Tropa de Elite” etc. etc. Houve um tempo em que, frente ao logotipo da petroleira, estrangeiros perguntavam se ela era um similar da Pelmex (Películas Mexicanas). Não do Pemex (Petróleo do México). Ficavam surpresos ao saber que o logotipo representava uma empresa brasileira dedicada a combustíveis (gasolina e derivados). Não uma produtora de cinema.
No catálogo do Festival de Brasília, KMF resume, com raro poder de síntese, a complexa trama de “O Agente Secreto”: “um thriller político que acompanha Marcelo (Wagner Moura), um especialista em tecnologia, que foge de passado misterioso e volta ao Recife em busca de paz”. Mas, “logo perceberá que a cidade está longe de ser o refúgio que procura”.
O filme é, essencialmente, um thriller político, mas híbrido, pois dialoga com o terror, o drama familiar (e de costumes) e, até, com a comédia. Sem esquecer o próprio cinema. Há muito de metalinguagem na trama de “O Agente Secreto”. Já nos créditos, o filme recorre ao mesmo recurso utilizado na poderosa abertura de “O Som ao Redor”, na qual víamos fotos-registros das relações de trabalho no Brasil, entre senhores de engenho e lavradores. Dessa vez, KMF presta tributo ao audiovisual brasileiro, encadeando imagens de clássicos de nossa cinematografia — “A Lira do Delírio”, “Iracema – Uma Transa Amazônica” — a astros de novelas (Tarcísio e Glória), sem esquecer Os Trapalhões, famosos na TV e recordistas nas bilheterias cinematográficas.
O que se verá a seguir, em “O Agente Secreto”, se passa num posto de gasolina, nas franjas do Recife. O impacto é grande. Marcelo posiciona seu Fusca amarelo na bomba de gasolina, atordoado pela visão de um corpo morto, cercado de moscas varejeiras. E cobiçado por cães, que serão, seguidas vezes, afugentados por empregado da gasolineira, volumoso e desdentado (há muitas arcadas dentárias avariadas no filme).
A trama, da qual se deve contar o mínimo possível (e que dura 158 minutos), prosseguirá em seu ano-chave, 1977, com Marcelo e sua espessa barba. Depois o veremos, sem barba, três anos antes, quando era casado com Fátima (Alice Carvalho) e dedicava-se à vida intelectual, interagindo com dois representantes da elite brasileira, Ghirotti (Luciano Chiroli) e seu filho (interpretado Gregório Grazziozi, do longa “Obra”).
A narrativa terá, ainda, uma terceira temporalidade — o presente. Que envolve pesquisa de nossa memória histórica e um banco de sangue. Aliás, o que não falta em “O Agente Secreto” é o sangue que jorra de corpos brutalmente assassinados. Na mais notável sequência do filme (com quase sete minutos de duração), registro de um massacre, ouviremos a Banda de Pífanos de Caruaru embalando a vertiginosa trilha sonora (com os instrumentos à toda na agitadíssima “A Briga do Cachorro com a Onça”). E veremos corpos com membros desfigurados, como registrados na maioria dos filmes de terror.
KMF, porém, não cairá no sensacionalismo. Mesmo recorrendo à lenda urbana da “Perna Cabeluda”, invenção da imprensa apelativa de Pernambuco, ele o faz com recomendável distanciamento crítico.
Tal invenção jornalística atormentou a infância do cineasta. Ele contou, no debate do filme, que um certo dia, sua mãe, professora universitária, leu para ele, à mesa do café da manhã, notícia de jornal que falava dos estragos causados pela tal “Perna Cabeluda”. E, com espanto, constatava que tal narrativa, tão insólita, não figurava no caderno literário, mas na Editoria de Polícia. Ou seja, não era tratada como ficção, mas como notícia criminal. “Quando, na verdade” — ponderou —, “ela, essa lenda urbana, servia para acobertar crimes cometidos pela própria polícia”. Corpos desovados eram atribuídos, na imprensa, à Perna Cabeluda.
A sutileza se faz presente, também, na elipse do destino do protagonista, que saberemos chamar-se Armando. O nome Marcelo encobre (disfarça) sua nova persona, seu passado histórico. O de um homem que tenta sobreviver num país sob ditadura militar, que persegue, tortura ou mata os que considera dissidentes. Mas este tempo estará mais na atmosfera do filme, que na trama. Aliás, muito complexa, a ponto de exigir espectadores atentos e capazes de reconstruir o quebra-cabeça engenhosamente concebido pelo diretor-roteirista.
No debate, que lotou o auditório anexo do Cine Brasília, KMF, sua produtora (e companheira) Emilie Lesclaux, integrantes do elenco feminino (Maria Fernanda Candido, Isabel Zuaa, Alice Andrade e Laura Lufési), o diretor de arte Thales Junqueira e a distribuidora Silvia Cruz responderam a dezenas de perguntas dos jornalistas e do público. Alguns destaques do encontro.
. CARISMA E HUMOR DE DONA SEBASTIANA – “Tânia Maria (que a Variety sugere como pré-candidata ao Oscar de coadjuvante) esteve no elenco de ‘Bacurau’, contou KMF. “Ela dizia uma frase: ‘Que roupa é essa, menino?’, e depois trazia a máscara do Papangu para o personagem do Prefeito Júnior. Sua participação foi tão incrível, que ela foi escalada para o filme ‘Seu Cavalcanti’, de Leonardo Lacca, que Emilie e eu produzimos. Este filme, um híbrido de doc e ficção, está em cartaz e sugiro que o assistam. Escrevi ‘O Agente Secreto’ para Wagner Moura. E Dona Sebastiana para Tânia Maria. Pensava nela enquanto escrevia as falas. Ela, que é potiguar, não improvisou. Estava tudo no roteiro, pois escrevi cada fala sabendo que Tania se destacaria com seu imenso carisma”.
. NOVA ACADEMIA DE HOLLYWOOD – Estará a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles preparada para aceitar as invenções estético-narrativas de KMF? Serão suficientes a renovação e ampliação do quadro de associados da instituição? Ou o caráter disruptivo de “O Agente Secreto” poderá reduzir as chances do filme — se não na lista de ‘melhor filme internacional’ — figurar em outras e importantes categorias? KMF foi econômico em suas ponderações: “ Nosso filme vem tendo carreira prestigiosa em festivais internacionais. Foi premiado em Cannes e teve sessões vibrantes em outros festivais. Acabamos de chegar de Telluride, nos EUA, e de sessão para associados da Academia, em Los Angeles. Sempre com ótima recepção. Entendo que fizemos um filme universal, embora ele seja extremamente brasileiro. Como os filmes alemães, que são profundamente germânicos, mas conseguem ser compreendidos em outros lugares. Claro que nosso filme será melhor entendido aqui, mas vem alcançando forte reconhecimento no mercado internacional”.
. TRÊS PARCEIROS EUROPEUS — Emilie Lesclaux lembrou a importância dos parceiros internacionais na produção de “O Agente Secreto”. Primeiro dos coprodutores franceses, que já haviam estado em outros filmes de KMF. Mas também os alemães e holandeses. Estes últimos foram fundamentais no trabalho de finalização (som e efeitos especiais). Permitiram acabamento marcado por sofisticação e rigor. O quarto longa ficcional do diretor pernambucano exigia muito mais que os filmes anteriores, por situar-se em tempo passado, a década de 1970. Exigia minuciosa reconstituição de época. Para tanto, foi fundamental a colaboração de parceiros, em especial os pernambucanos — a Fundarpe, a UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), entre muitos outros.
. DIREÇÃO DE ARTE É MUITO IMPORTANTE — KMF contou que, em seus filmes anteriores (em especial “O Som ao Redor” e “Aquarius”), não se interessava muito por direção de arte. Entendia que as locações estavam prontas. Não havia muito o que mexer. Quando realizou, com Juliano Dornelles, vindo da direção de arte, o longa “Bacurau”, ele começou a entender que a direção de arte era, sim, muito importante. Chamou tal compreensão de “um processo de aprendizagem”, que culminou com o trabalho de Thales Junqueira em “O Agente Secreto”. Até por tratar-se de um filme de época, ambientado cinco décadas atrás. Thales detalhou os desafios enfrentados na ambientação do filme: “quase todas as sequências se passam no centro do Recife, que era muito efervescente, vital. Depois, ele foi sendo abandonado, pois o dinheiro migrou para outros lugares”. Por isso, “vieram a pobreza e a decadência”. Que, paradoxalmente, “trouxeram um caráter conservador, de preservação”. De forma que, “para valer, tivemos que criar três locações essenciais ao filme — o IML (Instituto Médico Legal), o posto de gasolina e a área de desembarque do Aeroporto de Guararapes”. Nesse último caso — detalhou — “não tínhamos saída. Muitos aeroportos são ampliados, renovados. No Recife, o antigo foi abandonado e degradou-se, pois um novo foi construído ao lado”. Thales lembrou que “O Agente Secreto” necessitava trazer ao público a evocação da ditadura militar (o retrato oficial de Geisel será mostrado duas ou mais vezes). Que essa evocação está presente no texto ambicioso de KMF. E que, ambos, em suas conversas, entendiam que as ruas deveriam ganhar centralidade. Afinal, era nessas vias de trânsito (de pessoas e carros), que Recife vivia sua faina diária. E, por fim, havia que utilizar-se dos ambientes cinematográficos (em especial o Cine São Luiz, do grupo Severiano Ribeiro) e os filmes exibidos. “Não queríamos nada em sépia, que evocasse um tempo passado. Ou névoas de horror. Queríamos filmes cheios de cores. Cores vibrantes como percebidas na época”.
. LENTES PANAVISION DOS ANOS 1970 — Para conseguir a estética típica da poderosa década de setenta, a que viu nascer a geração blockbuster (com Spielberg e Luccas como estandartes), KMF e sua diretora de fotografia (a francesa Evgenia Alexandrova) optaram por lentes e câmera Panavision, as mesmas usadas em “Amargo Pesadelo” (John Boorman, 1972), “Tubarão” e “Contatos Imediatos de Terceiro Grau” (ambos de Spielberg), entre tantos outros.
. CENAS DE SEXO EM MUITOS LUGARES — KMF lamentou o moralismo que voltou, com acentuada ênfase, ao cinema contemporâneo. E que persiste no cinema anglo-saxão. Assegurou que na Recife de seu filme se faz sexo em muitos lugares. Até no Instituto de Identificação, responsável pela emissão de carteiras de identidade. Nos parques (há cena de pegação num ambiente noturno e público). Sem esquecer a sala de cinema. “No final dos anos 1980”, contou o cineasta, “assisti a um casal praticando um boquete, enquanto o filme era projetado na tela”. Por isso, “Marcelo (Wagner Moura) vê cena semelhante e a vida segue. Nos meus filmes sexo não é algo negativo. De forma alguma. Isso acontece, no cinema norte-americano, até com John Carpenter, um diretor que admiro tanto. Em ‘Halloween’ (1978), Carpenter mostra personagens, que fazem sexo, como vítimas de assassinato. A mocinha que não transa escapa ilesa. Infelizmente, esse tipo de filme moldou a sensibilidade de nossos dias. Houve quem, gente jovem inclusive, reclamasse que havia excesso de cenas de sexo em ‘Aquarius’. Mas como? Num filme de duas horas havia dois minutos de sexo. E acharam excessivo!”.
. SOTAQUES E TRILHA SONORA — KMF povoou seu filme com os falares de todos os cantos do país. Há uma gaúcha que surge no meio do nada, “o ótimo e impressionante sotaque pernambucano de uma das ‘faces’ do ator Wagner Moura (não podemos revelar qual), o registro uber-italianado do personagem de Gregório Grazziozi, o carioquês do ex-policial Augusto (Roney Vilella) e de seu enteado Bobbie (Gabriel Leone)… Quanto à trilha sonora, ela soma a Banda de Pífanos aos frevos que embalam o carnaval, o brega (até “Eu Não Sou Cahorro Não”, de Waldick Soriano), o bolero de Ângela Maria e — fez questão de destacar KMF, “a belíssima ‘Desabafo’, do conjunto Concerto Viola, de Pernambuco”. O grupo gravou um disco pela CBS, hoje Sony, mas desapareceu. “Não está disponível nem no Spotify, o que é lamentável. Encontrei o disco num sebo, fiquei fascinado. É a primeira música que Marcelo ouve, ao chegar ao Recife, numa vitrola. A esse repertório brasileiro, KMF acrescentou composições de Ennio Morriconi (da trilha do “Guerra e Paz” hollywoodiano) e hits norte-americanos. E justificou: “Não posso ignorar a força dos sucessos internacionais em nossas vidas”. Assim como “não posso ficar preso a Eisenstein e Godard, mesmo que eles sejam grandes, imensos”. O cineasta se definiu como um cultor da “influência impura”. Por isso, no telão do São Luiz, são vistos filmes (ou cartazes) como “Tubarão”, “ O Iluminado”, “Pasqualino Sete Belezas”, “Os Trapalhões”, de J.B. Tanko, e “O Magnífico”, de Philippe de Broca.
Confira os profissionais que fizeram parte da comissão de seleção da Academia Brasileira de Cinema:
Ailton Franco Junior – Produtor (RJ)
Cecilia Amado – Diretora (BA)
Cibele Amaral – Diretora (DF)
Eva Pereira – Diretora (TO)
Felipe Lopes – distribuidor (RJ)
Hsu Chien Hsin – Diretor (RJ)
Jeferson De – Diretor (RJ)
Lázaro Ramos – Diretor e ator (BA)
Maíra Oliveira – Roteirista (RS)
Marcelo Serrado – Ator (RJ)
Rodrigo Teixeira – Produtor (SP)
Sara Silveira – Produtora (SP) – Presidente da Comissão
Simone Zuccolotto – Jornalista (RJ)
Solange Moraes – Produtora (BA)
Tatiana Issa – Produtora (SP)

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