Festival de Havana reconhece momento especial do cinema brasileiro com profusão de troféus para “O Agente Secreto”, “Coração das Trevas” e Denise Weinberg

Foto: “O Agente Secreto” © Victor Jucá

Por Maria do Rosário Caetano

Nos últimos anos, o Festival do Novo Cinema Latino-Americano de Havana vinha dividindo seus principais prêmios, com significativa ênfase, entre filmes argentinos, chilenos, colombianos e mexicanos.

O Brasil, que o jornal cubano “Juventud Rebelde” definiu como “gigante sudamericano”, continuava sua trajetória angariando relativa atenção e conquistando troféus Coral. Às vezes, até o Gran Coral Negro, láurea máxima da maratona cubana. Poderia ter causado furor, ano passado, com “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, mas os produtores do filme preferiram não participar da festa caribenha.

Desta vez, porém, o triunfo brasileiro foi avassalador. Os filmes aqui produzidos conquistaram quase metade dos troféus distribuídos pelos vários júris do festival habanero. Só “O Agente Secreto”, de Kleber Mendonça Filho, ganhou seis (melhor diretor, roteiro, montagem, trilha sonora, direção de arte e Júri Popular – o disputado “Boleto de la Popularidad”, votado por verdadeira multidão de espectadores).

Denise Weinberg, protagonista absoluta do pernambucano “O Último Azul”, de Gabriel Mascaro, foi eleita a melhor atriz (ex-aqueo com a chilena Helena Mrugalski, por “Cuerpo Celeste”).

O melhor longa de animação foi o brasileiro “Coração das Trevas”, de Rogério Nunes, uma adaptação livre de Joseph Conrad, matriz do “Apocalipse Now”, de Coppola. No Rio de Janeiro, num futuro próximo, o jovem tenente Marlon recebe a missão de localizar o Capitão Kurtz, um obscuro personagem, que desaparecera em circunstâncias misteriosas. Marlon irá procurar Kurtz nas labirínticas e extensas favelas cariocas. Para ajudá-lo a cumprir a missão, é escalado o Sargento Medeiros, policial de caráter duvidoso. O filme vai acompanhar essa arriscada viagem pelas entranhas da periferia carioca.

O Brasil brilhou, também, na categoria Ópera Prima (realizações de diretores estreantes), com o brasiliense  “A Natureza das Coisas Invisíveis”, de Rafaela Camelo, e o carioca “Precisamos Falar”, de Raquel Diniz e Pedro Waddington.

O filme de Rafaela, que está em cartaz nos cinemas (projeto Vitrine Petrobras), vem somando prêmios desde sua estreia no segmento Generation, no Festival de Berlim. Já o longa de estreia de Waddington e Diniz, que estreou no Festival do Rio, inspira-se em “O Jantar”, de Herman Koch. Sérgio Goldenberg assina o roteiro (em parceria com George Moura) e, para interpretá-lo, foi escalado elenco estelar (Marjorie Estiano, Hermila Guedes, Alexandre Nero e Emilio Mello, que se somam a vários adolescentes). No centro da trama, um crime cometido por filhos hiperprotegidos por pais bem localizados na pirâmide brasileira.

E houve, ainda, vários outros prêmios (ver tabela abaixo) atribuídos a curtas documentais, ficcionais ou de animação brasileiros. Caso de “Terra Enferma”, de Fred Rahal e Kamikia Kisedje, “Safo”, de Rosana Urbes, e “O Rio Continua Lindo”, de Felipe Casanova.

A Argentina, potência audiovisual do subcontinente, com dois Oscar de melhor filme estrangeiro (“A História Oficial” e “O Segredo dos seus Olhos”), viveu muitas “primaveras” no Festival de Havana. Mas esse ano – devido à crise provocada pelo desmonte promovido pelo furacão Javier Milei – quase passou batida.

No terreno da ficção, no qual o país brilha historicamente, só conquistou um troféu (de melhor som) para “Belén”, drama feminista dirigido pela atriz Dolores Fonzi. E olhe que o filme foi indicado pelo país platino ao Oscar internacional.

Na categoria não-ficção, nosso vizinho conquistou o principal Coral da categoria – melhor longa documental, com “El Príncipe de Nanawa”, de Clarisa Navas. Na mostra Outros Territórios, mais alternativa, emplacou “Croma”, de Manuel Abramovich, e “El Origen del Mundo”, de Jasmín Lopez.

“Coração das Trevas”, de Rogério Nunes

A Colômbia, que entrou com imensa força no mapa do cinema latino-americano graças aos poderosos “O Abraço da Serpente” e “Pássaros de Verão”, conquistou poucos Troféus Coral, mas figurou como vencedora do prêmio máximo — melhor ficção — com “Un Poeta”, de Simón Mesa. E seu protagonista, Ubeimar Ríos, derrotou Wagner Moura, na categoria melhor ator. Além dessas duas láureas do júri oficial, o filme conquistou dois prêmios paralelos – o Dom Quixote, da Federação de Cineclubes, e o Signis, do Ofício Católico de Cinema.

“Un Poeta” é uma produção bem diferente de “O Agente Secreto”. Ambos estrearam em Cannes. O filme brasileiro, na competição pela Palma de Ouro (conquistou o troféu de melhor direção e melhor ator). Já o filme colombiano estreou no segmento Un Certain Regard. Fez jus ao Prêmio Especial do Júri.

“O Agente Secreto” é, para os padrões latino-americanos, uma ousada (embora disruptiva) superprodução, que uniu esforços pernambucano-brasileiros a capitais de países franceses, holandeses e alemães. Realizado com sofisticadas lentes Panavision, o filme vem acumulando prêmios por onde passa. Recebeu três indicações ao Globo de Ouro e, nessa quarta-feira, 16, pode ser anunciado como pré-finalista (na chamada short list) em algumas categorias do Oscar (além de filme internacional). A mais certa é a de melhor ator para Wagner Moura.

Já “Un Poeta” é uma pequena produção colombiana, ambientada em Medellín e filmada em 16 milímetros. A narrativa se desenvolve em torno de Óscar Restrepo, um escritor envelhecido e desiludido, cuja carreira nunca alcançou o reconhecimento sonhado. Tomado pela solidão, pelo álcool e pela frustração, ele encontra uma inesperada centelha de inspiração ao conhecer Yurlady, uma estudante talentosa, que escreve poesia. Movido pela esperança de redenção e pelo desejo de transmitir algo antes que seja tarde, Óscar decide orientar a jovem — e, talvez, se reencontrar com a própria arte.

O Chile, que ganhou um Oscar internacional antes do Brasil (com “Uma Mulher Fantástica”), conquistou o Coral de melhor ópera prima (filme de estreia) com “O Olhar Misterioso do Flamingo”, de Diego Céspedes. Trata-se de formidável realização, cheia de vida e cores. Cores mais fortes (acreditem!) que as que nos são oferecidas pelos filmes do manchego Pedro Almodóvar. A trama se desenvolve numa pequena cidade mineira, no deserto chileno, onde vivem Lídia, uma garota de 12 anos, e seus protetores, uma solidária comunidade queer. Que será acusada de espalhar o vírus de estranha doença.

A Crítica, representada pela Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema), escolheu o mexicano “En el Camino”, de David Pablos. Um filme que não mereceu nenhum prêmio do júri oficial. Coube, ainda, ao país da América do Norte, o prêmio de melhor curta ficcional – “Domingo Familiar”, de Gerado Razo.

Um registro curioso: o Prêmio Churubusco, oferecido pelo grande estúdio que fez a glória do cinema mexicano (Era Pelmex) foi atribuído a um documentário brasileiro – “Ainda Hoje Marimbás”, de Diego Kinderé e Lourenço Parente. Este filme procura — na colônia de pescadores de Copacabana, cenário do único curta documental de Vladimir Herzog, realizado em 1963 —  vestígios da experiência marimbás. E o faz como “um ensaio sobre a escuta, a permanência e as rimas trágicas da história brasileira”. Herzog (1937-1975), há que se lembrar sempre,  foi assassinado nos porões da ditadura militar brasileira.

O Prêmio Gran Coral Negro de Honor foi atribuído ao ator mexicano Gael García Bernal, revelado por Alejandro González Iñarritu no vibrante “Amores Perros” (disponível no streaming). O jovem baixinho e talentoso pensou que aquele filme seria algo passageiro em sua vida. Mas aí veio “Y Tu Mamán También”, mais um sucesso internacional no qual formou curioso triângulo amoroso com a espanhola Maribel Verdu e com o amigo (e compadre) Diego Luna.

A carreira de Gael estourou. Hoje ele vive no eixo México-EUA-Europa e participa de filmes e séries de grande sucesso. E mantém, com Diego Luna, uma produtora imprescindível e atrevida, a Canana Filmes.

Aos 47 anos, o mexicano soma os ofícios de ator, produtor e diretor. E traz no currículo filmes como “Diários de Motocicleta”, de Walter Salles (seu compadre), “O Crime do Padre Amaro”, um blockbuster mexicano, “Má Educação”, de Pedro Almodóvar, “No” e “Neruda”, ambos de Pablo Larraín, o fascinante “Museu”, de Alfonso Ruizpalácios, e “Ensaio sobre a Cegueira”, de Fernando Meirelles.

Confira os vencedores:

FICCÃO LATINO-AMERICANA

. “Un Poeta”, de Simón Mesa (Colômbia) – melhor filme, melhor ator (Ubeimar Ríos), Prêmio Dom Quixote (Federação de Cineclubes), Prêmio Signis (do Ofício Católico de Cinema)
. “O Agente Secreto”, de Kleber Mendonça Filho (Brasil) – melhor direção, roteiro (Kleber Mendonça), montagem (Eduardo Serrano e Matheus Farias), trilha sonora original (Tomaz Alves Sousa e Mateus Alves), direção de arte (Thales Junqueira), Prêmio do Júri Popular
. “O Último Azul”, de Gabriel Mascaro – melhor atriz (Denise Weinberg), ex-aqueo com Helena Mrugalski, por “Cuerpo Celeste”, de Nayrallic García
. “En el Camino”, de David Pablos (México) – Prêmio Fipresci (Crítica Internacional)
. “Cuerpo Celeste”, de Nayrallic García – melhor atriz ( Helena Mrugalski, ex-aqueo), fotografia (Sergio Armstrong)
. “Belén”, de Dolores Fonzi (Argentina) – melhor som (Leandro Loredo)
. “O Olhar Misterioso do Flamingo”, de Diego Céspedes (Chile) – melhor Ópera Prima (filme de diretor estreante)
. “A Natureza das Coisas Invisíveis”, de Rafela Camelo (Brasil) – Ópera Prima – Prêmio Especial do Júri
. “Precisamos Falar”, de Pedro Waddington e Raquel Diniz (Brasil) – Opera Prima – Contribuição Artística
. “Domingo Familiar”, de Gerado Razo (México) – melhor curta
. “O Rio Continua Lindo”, de Felipe Casanova – Prêmio Especial do Juri de melhor curta

ANIMAÇÃO (longa, média e curta)

. “Coração das Trevas”, de Rogério Nunes (Brasil) – melhor longa-metragem
. “Raptus”, de Ivette Ávila (Cuba) – melhor curta
. “Safo”, de Rosane Urbes (Brasil) – Prêmio Especial do Júri (curta)

DOCUMENTÁRIO (longa, média e curta)

. “El Príncipe de Nanawa”, de Clarisa Navas (Argentina) – melhor longa documental
. “Hijo de Tigre y Mulo”, de Annie Canavaggio (Panamá-Colômbia) – Prêmio Especial do Júri (longa)
. “Terra Enferma”, de Fred Rahal e Kamikia Kisedje (Brasil) – melhor curta (ou média) documental
. “Sueña Ahora”, de Gabriele Licchelli, Francesco Lorusso e Andrea Settembrin (Cuba-Itália) – Prêmio Especial do Júri

MOSTRA OUTROS TERRITÓRIOS

. “Croma”, de Manuel Abramovich (Argentina) – melhor filme
. “El Origen del Mundo”, de Jasmín Lopez (Argentina)

ROTEIRO INÉDITO, PÓS-PRODUÇÃO E CARTAZ

. “Noche Buena”, de Daylin Sucel Lage Barroso – melhor roteiro inédito
. “Los Pozos del Diablo”, de Jairo Boizier (Chile)
. “Para Vivir” – melhor cartaz (de Edel Rodríguez, de Cuba)

PREMIO GLAUBER ROCHA (atribuído pela Prensa Latina)

. “Belén”, de Dolores Fonzi (Argentina), e “La Hija Cóndor”, de Alvaro Olmos Torrico (Bolívia)

CORAL DE HONOR

Para Gael García Bernal, por sua trajetória de 25 anos dedicados ao cinema

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