Qual é o lugar de um cinema livre?

Qual é o lugar de um cinema livre, calcado no experimentalismo, como o de Julio Bressane, aos olhos das novas gerações e, sobretudo, aos olhos da predatória estrutura de distribuição do circuito exibidor brasileiro contemporâneo? A melhor resposta a esta questão veio de um gesto criativo, tomado pelo diretor de “O Anjo Nasceu” (1969), como um sintoma de sua necessidade de explorar as diferentes potências da imagem em mais variadas latitudes. Há alguns meses, Bressane propôs aos amigos e parceiros de trabalho Bruno Safadi, Rodrigo Lima e Moa Batsow a ideia de realizarem quatro filmes na posição de produtores-realizadores, num período curto, com um orçamento pigmeu. Era o projeto Tela Brilhadora, fomentado por uma verba de R$ 150 mil do Canal Brasil, que rendeu, de cara, o mais novo experimento do cineasta de 69 anos: “Garoto”, com Marjorie Estiano, seu 29º filme. A ele, somam-se “O Prefeito”, de Safadi, “O Espelho”, de Lima, e “Origem do Mundo”, de Batsow. Mais do que uma nova prerrogativa para o cenário da produção no país, Tela Brilhadora é uma celebração da amizade.

“Não é uma tendência que estamos lançando. É só um estado de espírito de quatro pessoas que trabalham juntas há 15 anos, desde que fizemos “Dias de Nietzsche em Turim” (2002). Tivemos o desejo de fazer quatro filmes, mas que pudessem funcionar como partículas soltas, sem criar síntese, compartilhando apenas a energia de uma mesma vontade. Era uma partilha de trabalho, num prazo curto de filmagem. O trabalho ainda permanece”, diz o diretor, que chega em casa diariamente em torno das 20h saído das instalações do Centro Técnico do Audiovisual (CTAv), onde lida com as imagens de Marjorie em “Garoto”.

O lugar do cinema independente: ser produtor-realizador

Bressane classifica a operação da Tela Brilhadora de “deslocamento”, um deslizamento para o ponto de vista do produtor-realizador, figura que surgiu no início do cinema, representada por diretores como os Lumière, D. W. Griffith e George Méliès, mas que acabou desaparecendo. “O realizador-produtor era uma figura que concebia às vezes dois, três projetos em prazo curto, com autonomia criativa, pautado pelo desejo de expressão apenas. Tentamos resgatar esse espírito num processo no qual a amizade entre nós fosse a força motriz. É um experimento que toca em duas questões centrais para o cinema: memória e afeição”, diz o diretor.

Segundo Bressane, “a imagem de um filme é sempre a memória inconsciente de um tempo” e, portanto, no confronto com estes nossos tempos, diante da ilha de edição, não há como ele, agora, definir qual é o tema de “Garoto”. Sabe-se apenas que Marjorie Estiano e Gabriel Leone soltam-se na tela guiados pela proposta de fazer um ensaio sobre educação sentimental da juventude, tema que vem sendo recorrente na obra do diretor, em especial depois de “Miramar” (1997).

Marjorie Estiano, à direita, em cena de “Garoto”, coproduzido pelo Canal Brasil: uma aposta de Bressane na produção coletiva

Ideologia independente na prática

“Um exercício como esse, que nós fizemos, tem muitos significados, muitas representações, no qual cada personagem te leva para um caminho, um achado. Tudo aquilo que um cineasta filma é sempre o que está ao seu redor. Mas eu sou muito lento para perceber o que eu mesmo faço. Por isso, não sei como “Garoto” pode afetar a mim ou a outros. Há uma energia corpórea que vem dessa troca entre nós, que corre pelo organismo do filme e se apresenta em fuga. Não há como descrevê-la. É preciso que ela seja sentida, vista, vivida”, diz Bressane, que afirmou, no novo longa, sua parceria criativa com Safadi.

Realizador premiado por “Éden” (2012) e “Meu Nome é Dindi” (2007), Safadi atribui a paternidade de Tela Brilhadora à inquietação de Bressane. “A intimidade que temos trouxe liberdade para as criações e similaridades conscientes e inconscientes entre os quatro filmes. Além da amizade e das conversas artísticas, houve o Bressane como personagem central e força motriz desse projeto jovem e apaixonado de se fazer cinema entre amigos”, diz Safadi.

Diante do cenário em que o cinema brasileiro se encontra, tomado por comédias, com filmes autorais mendigando espaço em circuito, o olhar de Bressane é um contraponto a tudo o que está no mercado. Não há e nunca houve interesse do cineasta em dialogar com os conceitos impostos pelo mercado vigente. “Hoje, o elemento dominante no cinema brasileiro é a guloseima, o filme de consumo rápido. Mas a guloseima também carrega uma inconsciência de significado em si. Todos os filmes têm dois elementos intrínsecos: de um lado, a invisibilidade; do outro, a sobrevivência de uma memória inconsciente. Este último aspecto é a condição pela qual os filmes que o cinema produz não precisam de explicação e sim de interpretação”, filosofa Bressane.

Para Bressane, um cineasta engendra sua patologia num movimento que não é consciente e é percebido ao longo do processo de realização e de recepção. É o caminho do sentido, e no qual as teorias cinematográficas de Bressane se apoia. “Quanto à invisibilidade… ela diz respeito ao fato de que tudo na imagem não passa de máscaras de papelão, ou seja, o que existe, de fato, não está na imagem em si e sim no que vem por trás dela. A iconologia é, por isso, a leitura do que reside nessa invisibilidade. Tudo no cinema tem seu peso”, conclui.

 

Por Rodrigo Fonseca

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