Entrevista: Roberto Lima
A descentralização do investimento de recursos federais tem sido alvo de debate constante no Ministério da Cultura desde quando Gilberto Gil assumiu a pasta, em 2003, no primeiro governo Lula. Entre avanços, retrocessos e estagnação de atividades, o setor audiovisual é o que mais tem conseguido levar essa pauta adiante, em especial, após a aprovação da Lei da TV Paga (12.485/2011), responsável por estimular a produção independente ao estabelecer cotas de exibição de conteúdo nacional no segmento.
Prevendo taxações vinculadas a esses novos conteúdos, a iniciativa deu mais robustez ao Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e fortaleceu a Agência Nacional do Cinema (Ancine) para consolidar uma política efetiva e continuada de distribuição direta de recursos em ações espalhadas pelo país. Lançado em 2014, com orçamento de R$ 1,2 bilhão para seus primeiros dois anos, o Programa Brasil de Todas as Telas visa, justamente, combater a concentração no eixo Rio-São Paulo, a partir de investimentos em linhas de desenvolvimento, produção, distribuição e exibição, através de iniciativas como o Prodecine (cinema), o Prodav (TV) e o Cinema Perto de Você (ampliação de salas de exibição).
Desde que assumiu a direção da Ancine, em janeiro de 2014, o dramaturgo e gestor cultural Roberto Gonçalves de Lima, 50 anos, tem se dedicado a estruturar o programa de regionalização de forma a garantir sua sustentabilidade, equilibrando os papéis do ente público e do mercado, prevendo injeção de recursos reembolsáveis e participação nos lucros a serem reinvestidos em outros projetos.
Nesta entrevista especial, Roberto aponta as diferentes formas de expansão do audiovisual regional e, entre dificuldades, como a que impediu o avanço de cursos de capacitação técnica na área via Pronatec, há êxitos, como a linha de suplementação regional, que acaba de encerrar inscrições para sua segunda edição. A iniciativa prevê a injeção de recursos da agência em editais estaduais e municipais a partir de indutores que privilegiam Estados historicamente desfavorecidos. Norte, Nordeste e Centro-Oeste recebem o dobro do valor aportado pelos governos. Já Sul, Minas Gerais e Espírito Santo recebem 1,5 vez a mais, enquanto São Paulo e Rio ganham o mesmo montante investido em nível local.
A ideia é fortalecer os arranjos produtivos locais a partir de mecanismos de incentivo regionais e ampliar o número de projetos contemplados. Até novembro de 2014, os números contabilizavam 597 projetos inscritos, 304 habilitados e 192 selecionados e suplementados. O primeiro edital priorizou a produção e o segundo, agora em curso, visa enfrentar o problema da distribuição desses conteúdos.
“A regionalização do desenvolvimento é uma decisão tomada pela sociedade brasileira, e por isso é irreversível, mas vai levar tempo para acontecer, até mesmo para não desestruturar as operações que já estão instaladas e não acabar prejudicando o setor como um todo”, afirma Lima na entrevista a seguir.
Revista de CINEMA – Entre o fim dos anos 1990 e o início dos anos 2000, falava-se muito da criação de polos de cinema em nível estadual como forma de estimular a produção regional. Por que esse modelo não vingou?
Roberto Lima – O processo produtivo do cinema, que está começando a mudar por conta da digitalização, exige que, para criar um polo com viabilidade econômica, se aglomerem numa mesma região empresas de produção, distribuição, infraestrutura, exibição e, em alguma medida, programadoras e radiodifusoras também. Em geral, os polos que tentaram se instalar fora do eixo Rio-São Paulo não conseguiram reunir essas condições. Além disso, a digitalização e a convergência tecnológica estão gerando novos modelos de negócio que tornam possível pensar em redes transacionais espalhadas não só por vários Estados, mas por vários países, acessíveis por diversos meios. Portanto, penso que, mais do que novos polos, devemos buscar uma grande rede produtiva que envolva todas as regiões do país, cada uma com sua especificidade.
Revista de CINEMA – Agora se fala bastante na criação de arranjos produtivos locais (APLs). Em que medida eles diferem dos polos e quais os desafios para seu estabelecimento?
Roberto Lima – Venho tentando acompanhar esses movimentos de criação e fortalecimento de APLs. Alguns se encontram em estágio avançado, como o Polo Audiovisual da Zona da Mata, em Minas Gerais, e o Porto Digital em Recife, em Pernambuco, mas existem outras iniciativas importantes em curso nesse momento.
Os APLs surgem da necessidade de buscar uma forma de organização no mercado que seja mais aderente aos novos modos de produção. Além daqueles elos clássicos da cadeia produtiva, eles buscam sinergia entre diversos atores sociais, o que torna muito mais complexo formar e manter um APL, mas também lhe dá uma governança mais consistente e capacidade de perseverar.
Os ministérios da Cultura e das Comunicações já realizaram editais específicos para eles, e há políticas de estímulo no Ministério do Desenvolvimento, Indústria e do Comércio Exterior e no Sebrae, que estamos acompanhando.
Revista de CINEMA – O Programa Brasil de Todas as Telas se dá via parcerias da Ancine com as esferas regionais e locais. Como se chegou a esse modelo?
Roberto Lima – Há muito que se debate na Ancine, a necessidade de procurar essas parcerias, e tanto suplementar os editais locais, quanto realizar editais regionalizados, como o que fazemos com a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), é fruto desse acúmulo. A Ancine foi se estruturando ao longo do tempo para lidar com esse desafio, que não é simples. Contribuiu muito criarmos uma Secretaria de Políticas de Financiamento, que está operando essas relações federativas.
Revista de CINEMA – Na Lei Rouanet, a concentração de recursos públicos destinados aos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro é, em média, de 80%. Qual é esse cálculo no que diz respeito ao campo audiovisual?
Roberto Lima – Em relação às leis de incentivo, a concentração é historicamente similar para o audiovisual, mas os investimentos do FSA nos últimos anos estão reduzindo isso. Entre os filmes lançados no circuito comercial, as obras de outras regiões financiadas com recursos federais subiram de uma média de 13%, até 2009, para a média de 24%, a partir de 2010. Em 2013, representaram algo em torno de 28% do total. Ao mesmo tempo, no ano passado, 48% dos projetos selecionados pelo FSA, nas linhas de financiamento para o cinema, que somaram R$ 375 milhões no total, vieram de fora do eixo Rio-São Paulo, com destaque para as regiões Nordeste (18%) e Sul (12%).
Quando forem contabilizados os investimentos da suplementação regional e do edital regionalizado com a EBC para compor faixas de programação da TV pública, que aportou outros R$ 60 milhões, esses números tendem a melhorar. É importante lembrar que o modelo de desenvolvimento em regiões concentradas é histórico e caracterizou a economia brasileira como um todo por um longo período. Essa concentração se reproduz no campo da cultura e é difícil de ser enfrentada. Um novo modelo, desconcentrado regionalmente, vem acontecendo no Brasil na última década e tende a ter impactos também no audiovisual.
Revista de CINEMA – A Lei da TV Paga estabelece que ao menos 30% dos recursos do Condecine sejam destinados a produtoras das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. É desse dinheiro que se abastece o programa de investimento complementar?
Roberto Lima – Sim. A medida mais evidente tomada a partir desse recurso é essa suplementação dos editais locais, criando melhores condições para as regiões citadas do que para as demais. Mas há outras ações no âmbito do FSA, como os editais em parceria com a EBC, os indutores regionais em diversas linhas do FSA e os laboratórios regionais de desenvolvimento que devemos lançar este ano, entre outras.
Se formos analisar os projetos selecionados desde 2012 no FSA, veremos que, enquanto São Paulo e Rio se mantêm mais ou menos no mesmo patamar, a quantidade de projetos das demais regiões cresce. Ou seja, estamos tendo uma expansão que não prejudica as operações instaladas, mas se amplia e se diversifica aos poucos. Reafirmo que o movimento de desconcentração não visa esvaziar o apoio a Rio e São Paulo, mas criar uma complementariedade e democratizar o acesso.
Revista de CINEMA – Em alguns Estados, o investimento próprio ainda é muito baixo em relação ao aportado pela Ancine. Há algum instrumento de estímulo para que esses valores se elevem?
Roberto Lima – O valor aportado pela Ancine é sempre proporcional ao investimento da unidade federativa. Alguns investem mais, outros menos, e isso se faz de acordo com a capacidade financeira, o planejamento e as políticas próprias de cada Estado ou município. A indução que podemos exercer são as que estão em curso. Acredito que, nesse estágio da maturidade das políticas de fomento ao audiovisual, o mais importante é induzir a continuidade das ações de apoio e a sinergia de esforços entre diferentes níveis de governo.
Revista de CINEMA – Foram 25 unidades federativas contempladas na primeira seleção para suplementação complementar. Como a Ancine lidou com as especificidades regionais de cada uma delas?
Roberto Lima – A chamada pública foi realizada com o espírito de respeitar e acolher as especificidades de cada local, mas é também necessário se adequar às regras básicas do FSA e da política de fomento, entre elas: a necessidade de que sejam empresas produtoras independentes, registradas na Ancine, e de que a partição de direitos e de receitas não alterem as condições de independência da obra.
Uma “dificuldade” foi justamente o grande interesse que a chamada causou, superando nossas previsões mais otimistas sobre o número de editais que seriam contemplados, exigindo até suplementação de recursos para a linha ao longo do processo.
Revista de CINEMA – O que não funcionou na primeira edição dessa chamada e foi remodelado para a de agora?
Roberto Lima – Decidimos manter o escopo da primeira chamada apenas para projetos de produção. Na segunda, avançamos um pouco e abrimos a possibilidade de contemplar projetos de distribuição, inclusive para pequenos lançamentos. No futuro, poderá haver maior diversidade de tipos de projetos, e acho importante introduzir essas novas modalidades aos poucos, sem perder a governabilidade sobre a ação.
O ideal é atrelar esses recursos a planos regionais de desenvolvimento do audiovisual, com planejamento estratégico de médio e longo prazo, contemplando toda a cadeia produtiva no local, diretrizes e metas formuladas em conjunto com o setor, e em diálogo com o Plano de Diretrizes e Metas para o Audiovisual. Quando chegar esse momento, estaremos dando outro salto de qualidade.
Revista de CINEMA – A partir dos editais já finalizados, é possível apontar o que o Brasil está querendo mostrar nas telas?
Roberto Lima – Ainda estamos apurando esses números, mas, até o final de novembro, em editais que já foram concluídos, tivemos 192 projetos contemplados. Se excetuarmos os projetos de São Paulo e Rio, são 112, a saber: 41 longas, 41 obras seriadas, quatro telefilmes e 26 obras entre curtas e médias. Quando todos os editais estiverem concluídos, estão previstos cerca de 300 projetos nos mais diversos formatos. Os temas são variadíssimos, e acho que o certo é dizer que o Brasil está querendo mostrar toda sua diversidade nas múltiplas telas.
Revista de CINEMA – Parte do Brasil de Todas as Telas é dedicada à capacitação de mão de obra para o setor, o que se daria via Pronatec Audiovisual. A abertura dos cursos foi anunciada com pompa, mas não se ouviu falar da efetiva execução deles nem do destino de seus alunos ou mesmo da abertura de novas turmas. Em que pé ele está?
Roberto Lima – Realmente tivemos dificuldades operacionais com a execução por meio do Pronatec, cuja gestão não cabe à Ancine diretamente. Os cursos para o audiovisual concorrem com toda a gama de cursos profissionalizantes que existem para os mais diversos setores produtivos e, nesse momento, está sendo difícil encontrar instituições que se interessem em ministrar nossos cursos ou que tenham condições técnicas mínimas para isso, mas estamos conversando com várias.
Revista de CINEMA – Que ações estão previstas visando a distribuição dos conteúdos regionais produzidos no primeiro ano?
Roberto Lima – Vamos permitir projetos de distribuição nesses novos editais, que tendem a se concentrar naquelas obras selecionadas para produção na primeira edição da suplementação. Sabemos que esse é um grande gargalo e buscamos estimular o surgimento de empresas distribuidoras nas diversas regiões do país. Acredito que a expansão do parque exibidor para fora dos grandes centros vai ajudar a criar essa viabilidade.
Uma possibilidade a ser explorada é buscar aproximar esses conteúdos das programadoras de TV paga. Acho que, além do evidente ganho cultural, há efetivas oportunidades de negócio nesse manancial de novos discursos que virão.
Revista de CINEMA – Em que pé está o projeto de Lei 256/2001, que estabeleceria cota de 10% da programação das TVs abertas para a produção regional independente? A Ancine tem interesse na aprovação dele ou entende que é mais interessante buscar outras vias para a regionalização?
Roberto Lima – Esse projeto, da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), buscava regulamentar o inciso III do artigo 221 da Constituição de 1988, que trata da regionalização da programação artística, cultural e jornalística das emissoras de rádio e TV. O projeto foi aprovado na Câmara, em 2013, e arquivado no Senado, em março de 2015. Na sequência, a deputada apresentou outro projeto de lei, de número 1441/2015, sobre o mesmo tema, que atualmente tramita na Comissão de Cultura da Câmara.
A Ancine tem interesse no assunto. Acredito que cotas na TV aberta seriam importantíssimas para desenvolver o setor nacionalmente, ampliar a diversidade de conteúdos e democratizar o acesso da população aos diversos tipos de discurso e de narrativas sobre o Brasil, mas a radiodifusão não está no escopo regulatório da agência.
De toda maneira, parece claro que o modelo verticalizado da TV aberta não condiz mais com a realidade do país. Hoje, existem tanto as condições tecnológicas quanto a capacidade de produção para dar um salto em outra direção. Acredito que as radiodifusoras terão de mudar seu modelo de negócio por uma imposição da realidade, ou vão acabar perdendo terreno para outras telas. Como eu disse, a desconcentração e a regionalização são demandas da sociedade brasileira. São irreversíveis. Quem não tiver capacidade de se adequar a essa realidade vai perder o bonde da história.
Por Amanda Queirós