Filme-ensaio: o cinema do sentido
O Festival de Cannes de 2016 consagrou o novo filme do diretor Eryk Rocha, “Cinema Novo”, com o prêmio Olho de Ouro, destinado aos documentários exibidos em todas as mostras que compõem o evento. O troféu é novo, criado no ano passado, mas já serviu para trazer à tona discussões importantes para a cinematografia brasileira que vem mostrando a força dos filmes-ensaio produzidos por nossos cineastas atualmente. Nessa linha, podemos lembrar também de “Yorimatã”, primeiro longa-metragem de Rafael Saar, premiado pelo júri e pelo público do Festival In-Edit Brasil 2015. Saar, inclusive, já trabalhou em parceria com Joel Pizzini, cineasta que consolidou sua carreira nesse experimentalismo e continua oxigenando as telas com novas poéticas. Mas, afinal, que cinema é esse que foge dos rótulos? A Revista de CINEMA foi conversar com esses cineastas para destrinchar seus conceitos e técnicas.
Se pensarmos que o filme-ensaio está diretamente associado ao poético e ao experimental, encontraremos um amplo catálogo de longas, médias e curtas-metragens desde os primórdios do cinema, inclusive entre os primeiros que foram rodados em terras nacionais. Porém, é interessante acompanhar como os diretores do século XXI continuam driblando os caminhos do cinema mais tradicional para buscar o espaço daquilo que deu reconhecimento ao próprio cinema como arte.
Para Eryk Rocha, existe uma “desfronteira” entre gêneros, seja documentário ou ficcional, que pode resultar nesse cinema que é experimental, poético e ensaístico, no qual o pensamento e a poesia se integram. “Se a gente entender o filme-ensaio como um espaço fértil de invenção, de possibilidade de linguagem, de experimentação de pensamento, eu acredito que dialoga com o meu trabalho e com meus filmes”. Um novo projeto é sempre “um novo abismo e uma nova aventura da criação” para “traduzir o mundo em imagens e sons”. Não raro em sua filmografia, essa dialética se dá em diversas camadas que mesclam o sensorial, o poético, o informativo, o político e o social, que também se organiza e narra uma história. “Talvez o que me interesse mais seja o entrelaçamento dessas camadas, criando esse corpo cinematográfico”.
Buscando inspiração na obra de Pier Paolo Pasolini e no cinema da década de 1960, Rafael Saar diria que hoje o cinema e o audiovisual “tem um dicionário linguístico com regras e uma gramática bem difundidas” e que, neste sentido, o filme-ensaio não se distancia daquele cinema de poesia, do cinema que “comunica e cria” mais próximo “da linguagem onírica e da memória” e, atualmente, “utiliza e pensa suas figuras de linguagem e concepção estética, e numa percepção pessoal também se aproxima da performance, do teatro, da música, da TV”. Sua filmografia está conscientemente ligada a isso, porque foi o que ele “se dispôs a estudar e tem grande interesse”.
Joel Pizzini acredita que o filme-ensaio tornou-se uma vertente mais inovadora do cinema autoral atualmente, pois “transcende ao cinema de resultados” e permite a produção de filmes “que formam um patrimônio audiovisual potente e atemporal”. Para ele, sua obra já era de filmes-ensaio “desde antes mesmo de existir essa ‘categoria’”, por ser uma “falsa ficção” e romper com o pudor do documentário e com o controle da ficção. “O filme-ensaio dilui esta fronteira, autenticando a expressão livre dos clichês inerentes aos dois gêneros” e “contempla a subjetividade”.
Nem na realidade ou na imaginação
O crítico e pesquisador Carlos Aberto Mattos vê o filme-ensaio como “um campo de atuação do cinema”, o qual “parte de perguntas e chega a outras perguntas”, “não conta histórias nem apresenta fatos que não sejam filtrados por uma subjetividade altamente atuante”, e essa subjetividade, na maioria das vezes, é “expressa pelo autor na primeira pessoa”. Também são filmes que desenvolvem “um pensamento a respeito de alguma coisa que não está dada nem na realidade, nem na imaginação”.
Nesse último ponto, Rocha concorda e, de certa forma, comprova a teoria, quando diz que faz filmes para saber o que ele é. “Se eu soubesse o que é o filme a priori, eu não o faria”. Seu processo criativo pode começar com uma imagem, uma música, um poema, uma palavra ou uma paisagem. A partir daí, ele busca a sensação daquela imagem e esboça o roteiro em uma espécie de “diário de criação”, no qual as páginas vão sendo preenchidas com textos, desenhos, recortes de jornais, reunindo apontamentos sobre aquilo que está movendo o cineasta. “Começa a nascer uma dramaturgia, uma primeira estrutura, que está em forma de roteiro”.
Se, para os realizadores, é mais complexo separar os conceitos, uma vez que tudo é absorvido e apresentado de maneira muito orgânica, para Mattos é possível perceber e afirmar que o filme-ensaio pode ser realizado tanto na ficção quanto no documentário, no cinema experimental e no cinema de poesia. “Ensaios visuais, por exemplo, são facilmente assimiláveis ao experimentalismo. Mas o filme-ensaio se distingue sempre por buscar ou exprimir um pensamento, uma consideração sobre o seu objeto. O filme eminentemente experimental, por sua vez, não precisa disso, bastando-se como exercício formal, rítmico ou abstrato. Por outro lado, um filme de poesia pode ser ensaístico, assim como um filme-ensaio pode ser extremamente poético”. As fronteiras, portanto, são muito “fluidas”, porém a “construção de pensamento e a importância da dúvida sempre ajudam a delimitar o campo do filme ensaístico”.
Na concepção de Pizzini, o experimental leva ao extremo da própria experiência, em todos os níveis, “do formal ao dramatúrgico, incorporando-se o acaso, o acidente, a inconsciência, valorizando, sobretudo, o processo”. Ou seja, “o como é tão importante quanto o sobre”.
Sincretismos de linguagens para gerar o sentido
Tanto para Rocha quanto para Saar, é na montagem que o filme-ensaio verdadeiramente se transforma e se singulariza como tal. O diretor de “Yorimatã” lembra que ele mesmo escreveu, dirigiu e montou seus curtas e o primeiro longa, e que segue “um fluxo intuitivo um pouco caótico”, mas onde encontra sentido. “Às vezes, tenho um roteiro rígido, com diálogos e decupagem pré-definidas, em outras situações só preciso saber a locação, quem está e tudo acontece. Ou não, e tudo bem. ‘Yorimatã’ tem um roteiro simples que enumerava temas, músicas, personagens, lugares e tem uma base de uma pesquisa enorme de arquivo. Ou seja, muita coisa nasceu na montagem”, descreve Saar.
O diretor também reconhece que “Yorimatã” foi a sua maior imersão como autor e indivíduo e, embora possa ter uma linguagem documental mais prosaica, “tem uma força poética explosiva”, que está na essência das personagens e da obra musical como linguagem de comunicação, e não apenas como trilha sonora. O filme traz muitas memórias contadas por Luhli e Lucina, e muitas imagens e sons estão “arranhados, com mofo, com as marcas do tempo”. Com isso, “Yorimatã” não apresenta uma narrativa “transparente e óbvia”. Para Saar, “tem lacunas e desafios que demandam a subjetividade do espectador”.
Seu novo filme, intitulado “Peixe”, está em fase de montagem e agora a tarefa é explorar todas as potencialidades poéticas de tempo, linearidade, silêncio, som, lirismo e emoção. “O grande desafio do cinema de criação é a exploração máxima de todos os nossos sentidos”, acredita o diretor.
Com Rocha, o processo é ainda mais intenso. A montagem como dialética entre as imagens atravessa o processo de criação como um todo, desde o roteiro, e “todos os fios de eletricidade de invenção se encontram e criam uma metamorfose” na montagem final. Seguindo a cartilha dos mestres Sergei Eisenstein e Dziga Vertov como alguém que respira a montagem para manter-se vivo, Rocha sublinha que a sua janela de entendimento do cinema se dá nesta etapa. “A montagem é para o cinema como é o conceito para a filosofia. É um momento sagrado de invenção e reinvenção”. E não acontece apenas na ilha de edição. “Na primeira imagem do filme, eu já estou pensando na montagem. O meu pensamento já acontece em montagem, na sobreposição de imagens e na relação dessas imagens com o som”.
Em “Campo de Jogo” – seu penúltimo filme, que foi lançado em 2015 –, o documentário mostrava a final de um campeonato de futebol no qual os times representavam favelas cariocas, e que ocorreu durante a Copa do Mundo de 2014. As filmagens aconteciam apenas aos domingos, durante as partidas. Ao longo da semana, Rocha e o montador Renato Vallone analisavam o material já filmado junto com o diretor de fotografia para ir montando o filme e também pensando nos dias seguintes. “Ou seja, é a montagem afetando a filmagem. O que funciona e o que não funciona, naquela grande coreografia que era o jogo? Quais são os melhores ângulos e o que está faltando?”.
O cinema entrou na vida de Eryk Rocha de uma maneira muito “corpórea”, segundo ele, e não “historicista”, no sentido de estudar a arte para só depois aplicar as técnicas na prática. Filho dos cineastas Glauber Rocha e Paula Gaitán, ele conta que não havia um legado a ser seguido, apesar de todo o ambiente fazer parte da sua formação. Aos 17 anos, comprou sua primeira câmera quando morava em Bogotá, na Colômbia, e começou a filmar, a sentir o momento e o espaço da filmagem. Em seus últimos filmes, trabalhou com diretores de fotografia e montadores, mas continua usando a câmera para testar as primeiras sensações de um novo filme que se prenuncia.
O cinema novo em montagem poética
Em “Cinema Novo”, 100% das imagens são de arquivo e acervos nacionais e internacionais, e no qual a montagem é a própria pulsação e o coração da obra. No entanto, o projeto começou a se estruturar com a filmagem de depoimentos atuais de alguns cinema-novistas pela própria lente da câmera de Rocha. A ideia surgiu há 9 anos, a partir de uma conversa do diretor com o Canal Brasil, que é coprodutor da obra, para garantir que houvesse um filme sobre o movimento. Ao chegar à fase da montagem, Rocha e Vallone reavaliaram o processo e decidiram apenas usar alguns poucos áudios daquelas falas iniciais e incorporá-los às imagens dos anos 1960.
“Foi uma aposta de linguagem. A partir dessa integração entre os filmes, das memórias, essa multidão de trechos e fragmentos, o nosso desejo era criar um novo corpo dramatúrgico”, relata o diretor. Com isso, o processo criativo se inverteu, de certa forma, e o (re)visionamento dos filmes e dos depoimentos passou a ser a etapa inicial para um filme que ali nascia como uma arqueologia viva.
Não há, portanto, nenhum depoimento atual sobre aqueles anos em “Cinema Novo”. São trechos de 130 filmes, entre obras dos diretores e acervos de entrevistas (algumas inéditas), com a inclusão de muitos dos filmes que foram restaurados pela Cinemateca Brasileira e estão com qualidade impressionante. As análises foram registradas no calor daquela hora e aparecem na voz e na imagem de Glauber Rocha, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, Ruy Guerra, David Neves, Walter Lima Jr., Gustavo Dahl, Orlando Senna, Mario Carneiro, Geraldo Sarno, Luiz Carlos Barreto, Alex Viany, Arnaldo Jabor, Zelito Viana e Paulo Emílio Salles Gomes.
“Esse é um filme a partir do Cinema Novo. Eu não pretendo explicar e nem concluir o que foi o Cinema Novo. É um filme muito mais de aproximação da nossa geração com o Cinema Novo, traçando um diálogo poético, político e filosófico; dando movimento ao movimento Cinema Novo, trazendo para o presente”. Para alcançar essa interlocução, Rocha acredita que foi fundamental renunciar ao uso dos depoimentos de agora dos cineastas mais velhos para “cortar a intermediação”, a qual sempre pressupõe “um balanço crítico do que foi” e não era essa a intenção. “Era muito apaixonante ver aqueles caras falando nos anos 1960 sobre cinema e sobre o Brasil”. O filme está previsto para estrear em novembro deste ano, depois de passar por festivais nacionais e internacionais.
Por Belisa Figueiró
Incrível, Incrível, Incrível, Incrível, Incrível!!