As consequências da ditadura, por Tata Amaral
A ditadura militar é um assunto que ainda tem muito a render e muitas facetas a serem exploradas. E contar uma nova história do Regime Militar (1964-1985), com um novo olhar, é a missão da cineasta paulistana Tata Amaral em seu novo longa, “Hoje”, baseado no livro “Prova Contrária”, de Fernando Bonassi, que narra a história de Vera (Denise Fraga), uma ex-militante que recebe, em 1998, uma indenização do governo em reconhecimento da morte do ex-companheiro, Luiz (César Troncoso), um uruguaio (como o ator) vítima da repressão, desaparecido em 1974. Com o dinheiro, Vera compra um apartamento. No dia em que se muda, Luiz reaparece em sua vida.
O projeto, que já existe desde 2005, época em que a diretora finalizava “Antônia” (2006), foi sugerido a ela pelo próprio Bonassi, quando ainda trazia a atriz Betty Faria como principal interessada na adaptação. Retomando marcas muito fortes da realizadora, que permeiam seus dois primeiros longas, “Um Céu de Estrelas” (1996) e “Através da Janela” (2000), “Hoje” é também a história de uma personagem feminina – preocupação que a cineasta garante ter deixado para trás, com seus três primeiros longas –, com fortes discussões de relacionamento e diálogos catárticos. A intensidade e dramaticidade da história foi uma das razões que cativaram a atriz Denise Fraga, conhecida por seus papéis cômicos. “Coisas que só meu espelho sabia, a Tata trouxe. O filme tocou em lugares que nunca tinham me tocado na ficção. A Tata pega uma emoção e puxa aquele fiozinho”, conta Denise.
“É também um retorno à obra do Fernando Bonassi, é o encontro de dois atores numa única locação, que se passa num curto espaço de tempo, fala de uma relação afetiva, etc. Porém, em ‘Hoje’, há uma novidade: a memória e o passado se tornam presentes”, aponta Tata, que começou sua carreira como diretora há 25 anos, com o curta “Poema: Cidade” (1986), codirigido com Francisco César Filho. Não à toa, Tata fez questão que as falas de Vera estivessem todas no tempo presente, quando se referissem à época da ditadura.
A questão da memória é muito importante para Tata em seu novo longa, rodado em digital com Red, em menos de um mês, quase todo num apartamento na Av. São Luís, em São Paulo. “Em ‘Hoje’, falo da necessidade de lembrar, os personagens precisam lembrar. A Vera não quer lembrar e o Luiz vem para ajudá-la nisso, porque lembrar é curar. É um acerto de contas com o passado dela, entre eles. É quase uma analogia com o que acontece com a sociedade brasileira, porque o Estado nunca julgou ou puniu seus torturadores”, explica a cineasta, que foi militante de esquerda na organização Liberdade e Luta.
Lei 9140
O viés que Tata Amaral usa para abordar um diferente aspecto da ditadura militar é a Lei 9140, de 1995. “A história se constrói em cima da lei 9140, em que o Estado reconhece que as pessoas estão mortas. A Comissão de Justiça e Verdade (antes era de Mortos e Desaparecidos) recebe os pedidos de investigação e uma vez comprovada a morte, ela é decretada. Como o Estado assume a responsabilidade por essas mortes, paga uma indenização – o máximo foi R$ 130 mil, se não me engano. Na história, que se passa em 1998, deu para a Vera comprar um bom apartamento no centro, ainda que decadente”, explica Tata.
Para a cineasta, a existência da lei é muito importante para se pensar nas consequências do Regime Militar para a vida cotidiana das pessoas, que sofre interferências muitas vezes absurdas. “Antes dessa lei, havia anomalias, como a mulher não poder casar de novo, porque seria bígama, porque o marido não morreu. Ou uma mãe que não poderia viajar com a criança por estar incorrendo em ilegalidade, já que precisa de autorização do pai”, pontua.
Desde que começaram a surgir as primeiras notícias efetivas sobre “Hoje”, várias coisas mudaram. O filme, antes, era composto por duas histórias. Uma era a de “Galeria Metrópole”, do Mário Viana, e a outra “Prova Contrária”. Ney Latorraca, único ator confirmado antes de fevereiro deste ano, faria um personagem do “Galeria Metrópole”. “Chegou dezembro e não conseguia ter um roteiro que articulasse as duas histórias. Uma se passaria na Praça Dom José Gaspar e a outra, no apartamento. Achei que não estava bom, que ficavam se cortando, por isso desisti. Mas ainda gostaria de fazer a ‘Galeria Metrópole’”, conta Tata. Com roteiro de Tata, Jean-Claude Bernardet (seu habitual colaborador) e Rubens Rewald, o projeto teve a entrada de Felipe Sholl no time, depois da queda da segunda história.
No meio do caminho, Tata ainda realizou para a TV Cultura a minissérie “Trago Comigo”, protagonizada por Carlos Alberto Riccelli, onde intercalava a ficção com depoimentos reais, e que serviu como material de pesquisa. Atualmente, busca recursos para finalizá-la como longa.
Tem havido, também, uma longa luta para levantar recursos. Só em 2010 é que conseguiram verba suficiente para as filmagens, feitas ao longo do mês de março de 2011. Rodaram com R$1,2 milhão, e R$ 700 mil já estão prometidos para finalização. Além disso, ainda aguardam resultado do edital de Paulínia para poderem rodar em estúdio algumas cenas que julgam cruciais, usando projeções na ambientação. “A ideia é usar mais projeções. Nessas cenas, Vera se relaciona com a memória e a memória está sendo projetada”.
“Hoje” estreaia amanhã no 44º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. De qualquer forma, já é certo o que Tata fará no segundo semestre de 2011. Junto com sua filha Caru Alves de Souza, dirigirá o roteiro de Caru “De Menor”, vencedor do edital de B.O. do Ministério da Cultura em 2010, sobre Helena, uma jovem que acaba de se formar em direito e passa a defender adolescentes em situação irregular.
Por Gabriel Carneiro