O filme-livre

Finalmente o cinema brasileiro voltou suas câmeras para novos desafios no setor da linguagem, e a Revista de CINEMA foi a campo para saber que filmes são esses, quais as propostas de seus autores, quais os temas abordados e como se relacionam com o publico. Conversamos com sete realizadores que estão com longas em finalização ou recentemente prontos: Eduardo Nunes (RJ), Eryk Rocha (RJ), Felipe Bragança (RJ), Gabriel Mascaro (PE), Helvécio Marins (MG), Sérgio Borges (MG) e Tiago Mata Machado (MG). Como se vê, Minas Gerais tem se tornado um grande ninho de cineastas com verve experimental, num diálogo muito próximo com a cultura de Minas e com as artes plásticas.

A principal característica desta geração é não ser marcada por um movimento, uma escola ou qualquer outra coisa. São apenas diretores interessados num cinema livre, sem qualquer tipo de amarra, com exceção do grupo Teia, de Minas Gerais, onde um grupo de diretores se une para focar suas câmeras nesse tipo de cinema. A novidade também é o grande número de novos filmes e realizadores, como nunca tivemos antes, e a quebra de barreiras quanto à realização. Filmes experimentais são muito comuns na seara do curta, e muito raros no longa, especialmente porque o cinema brasileiro é mantido por leis de incentivo e tem como principal objetivo, neste momento, atingir o grande público – preconceito com filmes que se opõem, de certa forma, ao dito cinema comercial parece ter diminuído.

“O cinema deixou de ser um fetiche, uma coisa grandiosa, das grandes produções. Esse tipo de cinema está sendo desmistificado. Em ‘Pachamama’, era praticamente eu e a câmera, que funcionava como uma extensão do meu corpo. A câmera hoje é quase como uma caneta. Filmes assim estão inovando na linguagem, pesquisando o cinema, oxigenando a produção”, afirma o cineasta Eryk Rocha, que está prestes a lançar seu quarto longa, o primeiro de ficção, “Transeunte” – sobre um homem recém-aposentado que caminha nas ruas do Rio de Janeiro em busca de uma distração. Feito com R$ 1,5 milhão, o filme tem um trabalho muito forte de ambientação do personagem principal, interpretado por Fernando Bezerra, através da fotografia em p&b, com muitos closes e câmera na mão, e do som, permitindo diferentes camadas, da aridez à imersão.

Rocha aponta o digital como a principal razão do florescimento de tal geração, permitindo-se fazer filmes mais leves, com menos gente e, especialmente, menos dinheiro. “A revolução técnica do digital tem apontado novas direções estéticas, o que influencia diretamente a produção e a linguagem, novas possibilidades de cinema”, complementa.

Filme de arte em oposição ao cinema comercial?

A questão pode ser falsa, mas filmes que buscam uma linguagem diferente do padrão e experimentam novas coisas têm uma dificuldade maior de fazer dinheiro ou mesmo de chegar ao circuito comercial. “Não conheço nenhum título deles que tenha tido maior diálogo com o público, o que não quer dizer nada a respeito de um hipotético valor estético dos filmes”, afirma Zanin.
Quando se diz que se opõem ao cinema comercial, não é uma forma de denegrir tais produções, mas de esclarecer que, para eles, o fazer cinema está além da preocupação em fazer grande público ou muito dinheiro. Não fazem questão de atingir grandes massas. “Tenho noção de que o cinema não vai me deixar rico ou que meus filmes não vão fazer um milhão de espectadores, mas há outro tipo de retorno que é bem bonito, que é motivar e encantar outras pessoas”, justifica o mineiro Helvécio Marins, da Teia Filmes, que está em fase de finalização de seu primeiro longa, “Girimunho”, realizado em parceria com Clarissa Campolina.

“Meus projetos já nascem falidos, tangente a qualquer possibilidade de sucesso comercial. Como decidi para minha vida não aspirar por muito dinheiro e ter uma vida simples, os filmes que tenho feito dialogam com minhas escolhas. Fazer filme que daria dinheiro daria também muito trabalho. Não tem nada mais chato do que um set de filmagem. Se fosse para fazer dinheiro, escolheria outra coisa”, explica o pernambucano Gabriel Mascaro, realizador dos longas “Um Lugar ao Sol” e “Avenida Brasília Formosa”, entre outros.

O filme livre é feito como forma de expressão, de busca de sentidos, e não como maneira de lucrar. “Tratamos cinema como expressão artística, e não como negócio – por mais que tenhamos consciência de como operam os vários mercados possíveis do audiovisual e nos coloquemos dentro dele”, aponta Sérgio Borges, também da Teia Filmes, diretor do longa “O Céu sobre os Ombros”, ganhador de 5 prêmios no último Festival de Brasília, incluindo filme e direção.

O cineasta Tiago Mata Machado tem chamado a atenção para si com seu último longa, “Os Residentes”, que divide a crítica e o público desde sua estreia no 43º Festival de Brasília. Seu filme, hermético e muito influenciado pela obra do suíço Jean-Luc Godard, aborda um grupo de residentes em uma casa, explorando conceitos como ética e estética. Para ele, o aspecto comercial pouco importa. “[Os Residentes] tem circulado bem, a cinemateca de Berlim, por ocasião da Berlinalle, comprou uma cópia legendada em alemão. Precisamos pensar também em termos de cinematografia, não apenas em termos de indústria. O fato da cinemateca berlinense querer ter meu filme em seu acervo, algo raro em termos de cinema brasileiro, me parece tão ou mais importante do que emplacar um blockbuster nacional. Interesso-me pelos filmes que podem sobreviver ao tempo”, discorre.

Eduardo Nunes, cineasta do Rio de Janeiro, que ficou conhecido por seus curtas plásticos e experimentais, como “Sopro” e “Tropel”, tem uma linha de pensamento parecida com a de Tiago. “Todos desejamos que nosso cinema seja comercial, no sentido de chegar ao público. Por isso, não acho que exista exatamente uma oposição, como um inimigo a ser derrotado. De uma forma geral, é saudável para o cinema brasileiro que existam esses grandes sucessos de públicos. Mas o que está havendo é que isso serve de parâmetro para toda a produção: a formatação do projeto, a escolha dos incentivos e os estímulos de distribuição. E isso é muito ruim. Um filme que busca uma nova linguagem, que investiga novas formas é mais precioso para uma cinematografia do que um blockbuster. Mas você não percebe isso de imediato, apenas depois de algum tempo”, contemporiza.

Minas Gerais é celeiro de linguagem

O estado de Minas Gerais parece ser um celeiro para essa produção mais livre, que tem se destacado quanto à pesquisa de linguagem, desde que Cao Guimarães ganhou o mundo com seus longas. Para Sérgio Borges, “a vocação de vanguarda, de atenção aos elementos estéticos e de linguagem” é algo arraigado na cultura cinematográfica mineira. “Há uma relação muito fértil entre a academia e os realizadores, o que faz existir um campo mais propício para um cinema que pensa a forma e a linguagem com esses subsídios”, pontua.

“Acho que Minas ser esse celeiro se deve ao fato de vivermos em Belo Horizonte, ao mesmo tempo perto e distante do Rio e de São Paulo, polos de produção audiovisual. Para o bem e para o mal, não há profissionalismo, ou seja, uma ocupação profissional na área, o que significa que temos mais tempo também para experimentar na vida e na arte, mais ócio, não somos massacrados pelo ritmo do trabalho, como em São Paulo – vivi lá sete anos e sentia diariamente esse massacre”, explica Tiago Mata Machado.

Cao pode não ser uma influência direta para vários dos realizadores mineiros de hoje, mas é certo que sua projeção ajudou a impulsionar a produção local no quesito de divulgação. Cao se destacou por ultrapassar a barreira da videoarte e entrar de fato no cinema, mas ainda assim embebido das influências das artes plásticas, onde estão suas raízes. “Ele é também uma referência importante no modo de produção não só meu, mas de toda a Teia, de como viemos a operar: o trabalho com equipes muito reduzidas, a relação com um documentário mais plástico, com uma poética do cotidiano”, afirma Sérgio Borges.

Não só no que se refere a Cao, como a todo o pessoal da Teia Filmes – produtora e coletivo formado por seis realizadores: Clarissa Campolina, Helvécio Marins, Leonardo Barcelos, Marília Rocha, Pablo Lobato e Sérgio Borges –, as artes plásticas são influência fundamental para entender o que eles produzem, especialmente as instalações. Um dos principais nomes da videoarte, nos anos 80, foi Eder Santos. “Minas sempre foi considerado um berço da videoarte, menos pelo Cao e mais pelo Eder Santos. A influência das artes plásticas acaba sendo, então, inegável, mesmo que hoje seja menor. No início dos anos 90, tinha um festival muito interessante chamado Fórum BHZ Vídeo. Mais ou menos nessa época, o Itaú Cultural abriu uma salinha em Belo Horizonte. Acabamos vendo muita coisa, como Nam June Paik [sul-coreano considerado o criador da videoarte] e Bill Viola [videoartista dos EUA]”, pontua Helvécio Marins.

Fundada em 2003, em Belo Horizonte, a Teia, que se denomina como “um centro de pesquisa e produção audiovisual”, já realizou mais de 40 trabalhos audiovisuais, entre longas, médias, curtas, vídeos e instalações. Quando começaram, eram os seis, mais um assistente geral e um produtor geral. Hoje, com mais prestígio no cenário e mais trabalhos, há um produtor e um assistente para cada um, mesmo que o intercâmbio que marca o coletivo continue. “A Teia não tem exatamente uma lógica de acontecer, tentamos preservar uma certa estrutura de fundo de quintal. Se engessarmos mais, é melhor parar um pouco, dar uma repensada. Procuramos ter sempre uma certa liberdade. Não queremos que a parte empresarial engesse a parte criativa”, anuncia Helvécio Marins.

Diálogos com a experimentação e filmes fora do padrão

“A experimentação é a essência do ser humano, mas experimentar não significa necessariamente fazer filmes experimentais. No Brasil, existe um grupo cada vez maior de realizadores fazendo filmes fora do padrão oficial e, ainda assim, com grande potencial de se expressar com o público”. A frase de Sérgio Borges sintetiza um pouco o que é essa geração de realizadores de filmes mais soltos. Em “O Céu Sobre os Ombros”, de Sérgio, há uma linha narrativa estruturada, que pode ser entendida como começo, meio e fim, personagens bem construídos, etc. – elementos presentes em qualquer filme mais convencional. A experimentação desses realizadores surge de uma reflexão sobre determinados pontos de um filme e a aplicação deles, não necessariamente transformando-os no que é conhecido como filme experimental.

“Precisamos entender a experimentação como algo natural a qualquer forma de arte, não como um gênero específico numa prateleira. Entendo-a como a busca da linguagem de cada realizador”, pontua Eduardo Nunes. Essa busca de Nunes resultou, por exemplo, numa nova janela. Em “Sudoeste”, novo longa do diretor, feito em p&b, Nunes adotou a janela 3.66:1, tentando mostrar a horizontalidade das paisagens onde foi rodado. “Tudo em nossas locações era muito horizontal. Nos enquadramentos dos testes sempre sobrava muito teto e muito chão, perdíamos o assunto principal do quadro”, explica. A história do filme também é atípica: em apenas um dia, Clarice passa por todas as etapas da vida – nascimento, crescimento, envelhecimento e morte. “Faço filmes para alcançar uma determinada experiência que acho que só seria possível com o cinema. Uma experiência de uma história, mas também muito sensorial e emotiva”, aponta.

“A linguagem cinematográfica está sempre ligada a um lugar de experimentação, já que se trata do território da ilusão e do truque. Há sempre o risco de um truque não ser tão sedutor quanto o imaginamos”, reflete o diretor e roteirista Felipe Bragança. Em sua investigação cinematográfica, Bragança criou uma fábula sobre super-heróis, juventude, morte e indignação perante o mundo, em “A Alegria”, que codirigiu com sua parceira de vários anos, Marina Meliande. O longa estreou na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 2010.

A experimentação, assim, vem de uma vontade de evoluir em termos de linguagem, de estética e de forma, de encontrar novos caminhos, novas maneiras para se criar imagens e sons. “Peguemos minha sócia, Marília Rocha, como exemplo. Ela fez ‘Aboio’, que é um filme superplástico. Depois fez ‘Acácio’, que tem muito material de arquivo. ‘A Falta que me Faz’, o último, já não é tão plástico, trabalha mais com o interior. Há uma vontade muito grande de ir mudando, se atualizando, pesquisando, querendo fazer coisas diferentes”, conta Helvécio Marins. O desejo de tentar fazer algo sem precedentes também é uma das razões.

“Trabalhei como estagiário de direção do filme ‘Cinema, Aspirinas e Urubus’, de Marcelo Gomes. Esse filme, que me é um marco afetivo – tinha 17 anos –, marca uma postura de cinema: a possibilidade de ir além da disciplina de produção, a possibilidade de mudar de planos. Isso, para mim, é referência na minha formação”, conta Gabriel Mascaro.

Tiago Mata Machado talvez seja o mais radical dessa geração em termos de experimentação, característica que dá o tom de seu longa “Os Residentes”, construído a partir de imagens não usuais e de excessos. “Não vejo sentido em realizar filmes que não sejam de investigação estética e de risco, gosto de fazer filmes em que não saiba de antemão aonde vou chegar, o que é inevitável se você leva realmente a fundo todas as fases do processo de criação cinematográfica. Vejo o roteiro como uma fase meio utópica, em que todo um mundo novo é possível, a filmagem é um pouco como um choque de realidade, e a montagem como ressurreição e morte de todo o conceito inicial do projeto. O que importa é estar o tempo inteiro aberto à reinvenção do filme, às intensidades do processo criativo”, argumenta.

No cinema livre não existe documentário ou ficção

Um dos aspectos que mais se notabiliza em muitos desses filmes é a fronteira rompida entre o documentário e a ficção. “Acho que é uma marca de nosso tempo. No ‘Transeunte’, trabalhamos para incorporar a cena no espaço público, misturando atores, figurantes e transeuntes. A dramaturgia do filme nasce do confronto com a realidade”, comenta Eryk Rocha. “Brincar com a fronteira entre documentário e ficção é lançar o cinema na vida. Não nos preocupamos com essa questão de gênero. O foco é a linguagem”, complementa.

Outros que radicalizam nessa brincadeira com os gêneros são Gabriel Mascaro, em “Avenida Brasília Formosa”, e Sérgio Borges, em “O Céu Sobre os Ombros”. O longa de Mascaro foi concebido como uma ficção. Quando abriu um edital do DOCTV, no valor de R$ 110 mil, Mascaro resolveu inscrevê-lo no projeto, usando algumas “falcatruas”, como incluir um falso CPF dos personagens. Edital ganho, o cineasta partiu em busca de seus personagens, no bairro de Brasília Teimosa, em Recife/PE, que passou por uma grande reestruturação no governo Lula, acabando com as estruturas de palafitas e abrindo uma grande avenida, a tal Brasília Formosa do título. No filme, há vários personagens reais, retratados de forma documental, mas há também aqueles que viveram uma condição imposta pelo filme. Fábio Melo, um cinegrafista amador, entre outras coisas, por exemplo, não mora em Brasília Formosa. Já Débora não queria concorrer ao Big Brother Brasil. No longa, Fábio é contratado por Débora para fazer o vídeo de inscrição no reality show.

“A criação é um processo. Se der filme no final, ótimo! Se não, aí dá trabalho para justificar as coisas, inventar situações, refilmar, manipular, colocar falas falsas na pós-produção como se fosse fala dos personagens, ser antiético… As estratégias são várias. Em ‘Avenida Brasília Formosa’, mudei até o sentido dos diálogos legendando em português as cenas. Terminar é sempre mais difícil que começar”, conta Mascaro.

Já em “O Céu sobre os Ombros”, Sérgio Borges ficcionaliza em cima dos próprios personagens e uma série de ações, baseadas em suas vidas (seja o presente ou o passado), mas também documenta outras tantas. Um dispositivo usado foi induzir situações sem o ator-personagem saber disso. Exemplo disso é quando Lwei Bakongo, um escritor que não quer ser publicado, com tendências suicidas e pai de uma criança com problemas mentais, recebe a ligação de uma pessoa interessada em publicar um de seus escritos, o que deixa Lwei extremamente agoniado. “Todos os atores do filme são inteligentes e sensíveis o bastante para ter consciência da imagem deles estampada no filme. E em grande parte, para ter consciência de que a imagem deles não é o que eles são de fato. Isso é um filme, uma expressão artística”, afirma Borges.

A escolha dos projetos e a difícil busca de recursos

A condição da produção, ou seja, os meios técnicos e recursos necessários, acaba sendo muito importante na escolha dos projetos, o que faz com que eles sejam reciclados, largados ou muito batalhados. “Tenho dois impulsos no cinema. Alguns roteiros são ideias mais caras, complexas e que precisam de patrocínio e têm maior potencial de público. Outros são ideias de filmes que serão mais bonitos quanto mais precários forem. Procuro me equilibrar nesses dois lugares e entender, quando uma ideia me vem na cabeça, em qual lugar ela se encaixa. Daí começo a desenvolvê-la, procurando os parceiros ideais para sua natureza”, comenta Felipe Bragança, que estreou em longas com “A Fuga da Mulher Gorila”, que custou R$ 10 mil, e fez, em seguida, “A Alegria”, orçado em cerca de R$ 1 milhão. “Fazer cinema é falar aquilo que não poderia deixar de ser dito. Porém, escolho meus projetos seguintes não apenas baseado no meu desejo de fazer aquele filme, mas de acordo com as possibilidades de produção do projeto”, acrescenta Eryk Rocha.

Para Eduardo Nunes, a escolha de levar um roteiro às telas é muito baseada no desejo de realizar o filme, batalhando como puder para que isso aconteça. É justamente o que fez com “Sudoeste”, premiado no edital de B.O. do MinC em 2008. “Fico muito tempo planejando um projeto novo, e sempre insisto na realização desse projeto depois que o escolhi. Com o projeto do ‘Sudoeste’, levei dez anos tentando conseguir recursos em todos os concursos durante a década de 2000. Precisávamos de algum orçamento, mesmo que pequeno. Acho que existem projetos de diferentes tamanhos, mas isso não deve servir de incentivo a realização de filmes sem nenhum recurso, pois é preciso que se viva do próprio trabalho, e fazer filmes é isso. Devemos, na verdade, reformatar nossos editais de produção e exibição”, explica Nunes, sem deixar de criticar o modelo vigente de editais públicos para cinema.

Helvécio Marins conta ter uma dificuldade enorme de selecionar o próximo filme, pela abundância de projetos de longa com que trabalha – atualmente são 11. “O próximo, defini porque é totalmente diferente do ‘Girimunho’. O novo, ‘A Mulher do Homem que Come Raio Laser’, é totalmente ficção. Comecei a querer rascunhá-lo e não conseguia parar. Em 15 dias, tinha o roteiro. Foi o primeiro que escrevi sozinho”, conta. Em finalização, “Girimunho” é uma ficção baseada em fatos e personagens verdadeiros, da pequena cidade de São Romão, no sertão mineiro. Foram oito anos pesquisando a vida das protagonistas, o que resultou num roteiro coescrito com Felipe Bragança, mesmo que não tenha sido seguido à risca nas filmagens. “Tem um projeto que quero fazer só mais velho, quando tiver 50 anos. Vai um pouco do sentimento”, relata.

Mesmo com muitos projetos, não é fácil realizá-los. Quase não há espaço em editais para novos realizadores. Os poucos são em concursos locais e o edital de B.O. do Ministério da Cultura. Há também as vias tortas, que tem sido utilizadas em muitos casos, como usar o dinheiro ganho para fazer um curta e transformá-lo em longa, ou se aproveitar de editais como o do DOCTV. Os maiores, como da Petrobrás, do BNDES e da Ancine, raramente dão espaço a esse tipo de produção. Cao Guimarães, por exemplo, só gabhou o edital da Petrobrás no ano passado – com “O Homem das Multidões” –, depois de já ter um nome estabelecido. O mesmo para a Teia, que conseguiu o edital de distribuição para “O Céu Sobre os Ombros” (nem em curtas haviam ganho).

Helvécio Marins aponta ainda uma terceira via para conseguir financiamento. “Penso que os festivais internacionais nos salvaram de alguma forma. Meus curtas todos foram muito exibidos no mundo inteiro. Muitas vezes, era o único brasileiro, ou o único latino selecionado em competição. Não me ligava nisso, mas depois que você vai duas vezes para Rotterdan, Locarno, Sundance, você começa a ver que as mesmas caras estão sempre lá. Do mesmo jeito que tem olheiros para revelar talentos, existe esse tipo de produtor que acredita nisso. A primeira vez que a Sara Silveira [produtora de ‘Girimunho’] viu um filme meu foi em Santa Maria da Feira. Ela estava com o Carlão [Reichenbach], que encheu a bola do filme, e ela ficou de olho. Na segunda vez, estávamos em Brasília, com o ‘Trecho’, que ganhou melhor curta. Ela já veio direto falar comigo: ‘o dia que você tiver algum projeto de longa me procura, me dá preferência’”, conta.

O desafio de se comunicar com o público certo

“É uma geração saída com uma atitude crítica muito forte. Só devia se preocupar mais em chegar mais ao público, porque o cinema é uma arte popular. O [cineasta Ozualdo] Candeias [nome importante do Cinema Marginal] falava, quando perguntado sobre mercado: ‘tenho que, no mínimo, devolver o dinheiro para o meu produtor’. Você tem que buscar isso, tem que ter um contato. O filme é resultado do contato. Parece-me que o problema é que alguns se acham muito inteligentes e querem fazer filmes muito inteligentes. Então acaba fazendo um filme só para ele. Isso é complicado. Você quer dizer uma coisa, precisa encontrar o caminho. Não é mais fácil dizer as coisas de maneira mais simples, de uma forma que pessoas entendam?”, argumenta o crítico da Folha de S. Paulo, Inácio Araújo.

“Você vai ver ‘Os Residentes’, é um bom filme, mas muito miúra. O cinema hoje é muito comercial. De um lado você tem o cinema ‘comercial’ e de outro o ‘artístico’. Ou o Tiago [Mata Machado, diretor do longa] vai para Cannes e ganha, e aí entra nesse star system de autor, ou não vai acontecer nada com o filme. Esse é o problema. Acho perfeitamente factível fazer filmes de que as pessoas gostem. Tenho a impressão de que você tem que ter a dimensão de que está falando com o espectador, que deve ser tratado com o maior respeito do mundo, mas também pode buscar maneiras de falar. Todo mundo quer começar e fazer Godard. O cara precisa limpar um pouco esse superego e refletir sobre o que viveu, o que sentiu, sobre o que determinada coisa te faz falar. Não vou dizer que não tenha isso nesses filmes. São pessoas talentosas, e justamente por isso gostaria que pudessem ser mais vistos – vistos, a rigor, porque se não, passa apenas em Brasília, Tiradentes e boas festas. Ninguém vê. O cara que exibe o filme, claro, quer um retorno”, complementa Inácio.

“O Céu sobre os Ombros” já tem distribuição garantida nas salas de cinema. Assim como Sérgio Borges, outros realizadores com filmes de invenção também estão procurando atingir um nicho, um público mais especializado, interessado em filmes mais livres. “Filmes como ‘O Céu de Suely’, ou ‘Baixio das Bestas’, por exemplo, alcançaram 40 mil de público nas salas de cinema. ‘Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo’, 25 mil. Obviamente, é muito difícil um filme como o meu chegar a isso, ou ir além. Vamos experimentar as salas de cinema de arte, mas acredito que temos que encontrar novos públicos e formas de exibição. Fomentar a distribuição é prioridade no país. Vou experimentar o circuito do Cine Mais Cultura, que tem hoje mais de 1000 cineclubes espalhados pelo país. Vamos distribuir o filme gratuitamente nesse circuito e criar uma forma de mensurar esse público de maneira confiável”, discursa Sérgio.

“Meus dois longas serão lançados comercialmente e estão sendo vendidos para o mercado internacional e para o mercado de TV brasileiro. Em festivais, já acumularam cerca de 6 mil espectadores cada um. Gostaria de conseguir que ao menos 15 ou 20 mil pessoas fossem ver ambos em salas de cinema – são números pequenos, mas são pequenos filmes baratos que devem ser lançados com três ou quatro cópias cada um, com pouca divulgação, que podem encontrar seu lugar de interesse nas brechas do mercado. Sou completamente contra um olhar angelical do realizador que diz que não sabe e nem pensa em quem vai ver seus filmes”, complementa Felipe Bragança.
Eduardo Nunes aponta um caminho a ser construído, muito parecido com o apontado por Inácio Araújo. “Começando por festivais internacionais, depois festivais brasileiros, buscando uma mídia, um reconhecimento de qualidade do filme. Assim podemos despertar o interesse de um determinado público, pois ele existe. Veja o público médio de um filme europeu ou asiático lançado no Brasil: é um número bastante interessante. E esse é um público que, se cativado, chegaria ao cinema autoral brasileiro”, aponta.

Uma das alternativas parece ser a de centro culturais, museus, cineclubes e espaços alternativos, como pretende fazer a distribuidora Vitrine Filmes – a ser testado ainda este ano, com filmes como “A Fuga da Mulher Gorila” –, e a de pequenas salas comerciais, com projeção digital e preços populares. “Salas pequenas, baratas, com projeção digital: esse é o caminho para o cinema como um todo, não só para filmes mais autorais. O filme precisa competir com a pirataria, o custo do ingresso tem que ser acessível. O PontoCine [cinema carioca de 73 lugares, cujo ingresso inteiro custa R$ 6,00] é a sintetização desse esquema. É a sala que tem a maior proporção, quanto a filmes brasileiros, entre público e lugares”, conclui Eryk Rocha.

Por Gabriel Carneiro

One thought on “O filme-livre

  • 2 de outubro de 2011 em 17:04
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    Estou torçendo para vocês, moro em Macapá e sempre que eu posso vou aos cinemas assistir um filme brasileiro, incentivo os meus amigos a assistirem também e alugo em locadoras. Quero dizer que são por cineastas como vocês que “sonho” em ser cineasta.

    A REVISTA DE CINEMA ESTÁ DE PARABÉNS!

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