Fest Brasília – Bloqueio dos caminhoneiros, ocupações de favelas e luta indígena
Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília (DF)
A quarta noite da mostra competitiva do 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro foi a mais política de todas. Três filmes impregnaram a tela do Cine Brasília com imagens de densa carga político-social: o média-metragem brasiliense “Entre Parentes”, de Tiago Aragão, o curta mineiro-pernambucano “Conte Isso Àqueles que Dizem que Fomos Derrotados”, de coletivo de realizadores, e o longa documental “Bloqueio”, de Victória Álvares e Quentin Delaroche. Em comum, eles destacaram temas relevantes neste conturbado momento vivido pelo país (a questão indígena, as ocupações habitacionais de trabalhadores Sem-Teto e a greve dos caminhoneiros).
Já na Mostra Câmara Distrital, dedicada à produção candanga, um Cine Brasília, abarrotado, aplaudiu demoradamente “Entre Parentes”. O filme discute a perda de direitos (e de terras) dos indígenas em tempos de hegemonia do agronegócio e de governo conservador. Na cena mais impressionante do documentário, construído com imagens em preto e branco (assinadas por Alan Schvarsberg), vemos multidão que avança sobre o Congresso Nacional. Em maioria, composta de indígenas. Alguns deles entram no espelho d’agua do Palácio Legislativo com caixões pretos arrematados com grandes cruzes. Um poderoso símbolo da derrota que acabavam de sofrer, pois relatório da Bancada do Boi (e do agronegócio) triunfara em votação da CPI da Funai. Forças de segurança avançam sobre os indígenas com seus cassetetes, dispersando-os à força. Resta aos espectadores indignarem-se com as arrebatadoras imagens dos “Parentes” (indígenas assim denominam seus iguais).
O público aplaudiu o filme em projeção aberta e, calorosamente, ao final da sessão, enquanto desfilavam os créditos artísticos e técnicos e cartela de fina ironia (do tipo “qualquer semelhança com personagens reais é mera coincidência”).
Na competição nacional, os cineastas Camila Bastos, Aiano Bemfica, Cristiano Araújo e Pedro Maia de Brito apresentaram junto com Edinho Vieira, liderança do MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas) e de seus pares brasilienses, um instigante curta de título-manifesto “Contém Isso Àqueles que Dizem que Fomos Derrotados”.
O filme, que soma esforços de mineiros e pernambucanos, sintetiza, em 23 minutos, imagens de ocupações realizadas pelo MLB, nos últimos quatro anos. Luzes de lanternas rompem a noite escura, enquanto os ocupantes chegam para erguer suas precárias moradias. Cada um tem sua função na arriscada empreitada. A polícia chegará para o inevitável confronto. Num deles, uma garota, de nome Bia, de 14 anos, levaria um tiro. Tal imagem não está no filme, explicaram seus realizadores, mas foi usada no Youtube para, inclusive, ajudar no tratamento da menina, moradora de ocupações de Sem-Teto desde os sete anos.
O filme se constrói com imagens fortes, mas sem diálogos ou narrações. No final, letreiros contam, resumidamente, um pouco das lutas dos moradores das ocupações Paulo Freire, Manoel Aleixo, Temer Nunca Mais, entre outras. No momento mais aplaudido pelo público, nos inteiramos dos progressos educacionais verificados na Ocupação Paulo Freire.
“Bloqueio”, longa pernambucano-carioca, quinto concorrente ao Troféu Candango, se passa durante a grande paralisação promovida por caminhoneiros em estradas brasileiras, em maio último. Os diretores Victória Álvares e Quentin Delaroche (ele, também diretor de fotografia) montaram às pressas e com parcos recursos (próprios) pequena equipe para registrar o que se passava num dos 300 bloqueios que se espalharam por todo território nacional. Primeiro, foram para a região da Reduc (Refinaria Duque de Caxias), no Estado do Rio, mas deparam-se com defensores de palavras de ordem da crescente extrema-direita brasileira, sintetizadas no slogan “Intervenção militar, já!”.
“O que vimos no bloqueio da Reduc” — contaram os realizadores — “não nos interessou. Os manifestantes eram pessoas de classe média, vindas inclusive da Barra da Tijuca, que gritavam palavras de ordem que pouco tinham a ver com as reivindicações dos caminhoneiros. Daí que seguimos em frente”.
Na BR 116, na altura de Seropédica (município fluminense de 85 mil habitantes, situado próximo a Nova Iguaçu e Queimados), os dois realizadores encontraram os verdadeiros e revoltados trabalhadores das estradas. E lá permaneceram por três dias. No primeiro, buscaram a confiança dos grevistas, que os confundiram com equipe da Rede Globo, emissora que hostilizavam. Tanto que a rede de TV mais poderosa do país só conseguiu cobrir o movimento paredista do alto, com câmaras e repórteres posicionados em helicópteros. Nos dois dias seguintes, a pequena equipe gravou nove horas de imagens e sons, contendo registros de protestos dos caminhoneiros e suas principais reivindicações (diesel mais barato, cobrança por eixo só de caminhões carregados etc., etc.), cultos religiosos, churrascos regados com música sertaneja, cultos cívicos embalados pelos hinos à Bandeira e Nacional, e inesperado encontro com professores (militantes do PSOL, partido de esquerda visto inicialmente com certa desconfiança).
Victória e Quentin notaram que, cada vez mais, a palavra de ordem “Intervenção militar” ganhava força no coletivo. Os caminhoneiros carregavam faixas, elogiavam os militares e enchiam as estradas com grandes estandartes estampados como o leitmotiv da campanha bolsonorista. Fala-se pouco, durante os 75 minutos de filme, do presidenciável e capitão reformado, que defende o porte de armas e a hegemonia militar. Mas a figura dele está impregnada em cada manifestação dos caminhoneiros. Um deles pede paradoxalmente “intervenção militar em nome da democracia”.
Só um entre os muitos grevistas acredita que a liberação do porte de armas pode significar mais perigo para eles nas estradas. “Num assalto, sabendo que o caminhoneiro tem uma arma, o assaltante virá ainda mais equipado para matar o assaltado”. Outros, a maioria, discordam por entender que o caminhoneiro tem que ter armas para se defender.
No debate de “Bloqueio” — filme produzido em tempo recorde e ainda sem data de lançamento no circuito comercial — uma questão se colocou na dianteira dos questionamentos: por que não se faz nele nenhuma referência ao locaute (apoio de empresários aos empregados para defender interesses patronais), prática verificada ao longo do movimento paredista?
Mesmo sendo um documentário observacional, há em “Bloqueio” momentos em que Victoria Alvares, que vem do jornalismo, conversa com caminhoneiros e tenta problematizar o apoio que eles dão aos militares. Militares, aliás, vistos como “força incorruptível e capaz de acabar com a corrupção”, além de “melhorar as precárias condições de trabalho e os baixos proventos que recebem”.
Por que os realizadores não colocaram o locaute em pauta? De onde vinham as bem confeccionadas faixas e estandartes que pediam “intervenção militar”? E a farta alimentação que manteve os grevistas em mais de 300 ocupações espalhadas por todo território nacional? Enfim, a infra-estrutura que manteve a greve por período prolongado, colocando em pânico o abastecimento de postos de combustíveis e os supermercados?
Os dois diretores, que tinham respostas sólidas e ponderadas para todas as questões levantadas, não foram convincentes ao justificar tal ausência (o locaute) nas conversas que mantiveram com os bloqueadores de estradas. O filme nos faz entender que evangélicos (pastores aparecem em muitos cultos) e militares, como o bombeiro Cabo Daciolo e (a sombra onipresente de) Bolsonoro tiveram, sim, papel significativo na greve dos caminhoneiros. Mas os cineastas nada perguntam, ou mostram, sobre os empresários do setor de transportes, força poderosa que participou da articulação do “golpe parlamentar” que depôs Dilma Roussef e cobrou seu preço, em seguida: em especial subsídios do óleo diesel. Até porque há caminhoneiros autônomos, mas muitos e muitos deles são empregados de grandes transportadoras, ávidas por fartos subsídios governamentais.
O público do festival assistiu a outro filme político: o longa documental “Excelentíssimos”, de Douglas Duarte, exibido na tarde da último domingo, 15, em mostra paralela. O filme, muito aguardado, recebeu aplausos significativos, mas não agradou como seu antecedente “O Processo”, de Maria Augusta Ramos, que causou frisson em Berlim, acabou de vencer festival de documentários na Argentina e vendeu quase 80 mil ingressos no Brasil.
Longo demais (152 minutos), “Excelentíssimos” não se concentra nos personagens de seu títulos: suas excelências, senadores e deputados, ocupantes do Congresso Nacional que depôs, por impeachment, a primeira mulher eleita para governar o Brasil. Redundante, o filme relembra cada longa e cansativa fase do que a esquerda chama de “golpe parlamentar” e a direita tem como “mero cumprimento da lei”. Em busca de neutralidade, Douglas Duarte realiza um documentário que, se não for reeditado, pode figurar na lista das produções que não conseguem vagas em festivais importantes, e, o que e pior, só conseguem atingir bilheterias modestas.