“Picuruta, a Lenda do Gato” participa do Festival Cine-Surfe, no Espírito Santo
Por que o Brasil, que conta com litoral de grandes dimensões e milhares de jovens apaixonados por surfe, dedica tão poucos filmes a este esporte radical?
Neste momento, em que “Picuruta, a Lenda do Gato”, longa-metragem sobre o ex-surfista Picuruta Salazar, luta para conseguir espaço nos cinemas (fez curtas temporadas em Santos, São Vicente, São Paulo e Rio), a pergunta se faz necessária e urgente. Que os capixabas aproveitem, pois, a rara oportunidade, será neste sábado, 8 de dezembro, onde o longa paulista será exibido no Festival Cine-Surfe do Espírito Santo.
Ao longo dos últimos 15 anos, pelo menos três filmes sobre o surfe praticado por brasileiros chegaram ao nosso circuito exibidor. O primeiro — “Surf Adventures” (2002), de Arthur Fontes — foi lançado em grande estilo por Bruno Wainer. Vendeu mais de 200 mil ingressos (exatos 200.853) em 77 salas. O segundo filme de Arthur Fontes — “Surfe Adventures II – A Aventura Continua” (2009) — atingiu circuito de 61 salas e mobilizou 64.012 espectadores. O terceiro — “Fábio Fabuloso” (2004), de Antônio Ricardo — só chegou a nove cinemas e vendeu modestos 2.314 ingressos.
Quando estes três filmes foram lançados, o surfe era, sim, paixão de parte significativa da juventude litorânea brasileira, mas não tínhamos conquistado o principal campeonato mundial (ASP World Tour). Com Gabriel Medina, o Brasil subiu ao pódio máximo do surfe, em 2014. No campeonato mais recente, oito brasileiros estiveram entre os 25 finalistas (o próprio Medina, mais Filipe Toledo, Ítalo Ferreira, Willian Cardoso, Michael Rodrigues, Adriano de Souza, Yago Dora e Tomas Hermes).
Por que, então, “Picuruta, a Lenda do Gato” vem enfrentando tantas dificuldades para conseguir espaço significativo no circuito exibidor? Afinal, qualidades, principalmente técnicas e narrativas, o filme tem. Picuruta Salazar, que o ator (e amigo) Cauã Raymond chama de “coração gigante”, viveu grandes e arriscadas experiências. Venceu muitos campeonatos brasileiros e brilhou em provas internacionais (disputou campeonatos importantes no Havaí e na África do Sul). Para tornar o filme ainda mais atraente, o santista é dotado de senso de humor privilegiado. Pode-se dizer que é (quase) tão engraçado e irreverente quanto o paraibano Fábio Fabuloso.
Para dar consistência aos 110 minutos do documentário “Picuruta, a Lenda do Gato”, o diretor Alex Miranda retirou de seu personagem (e de outros participantes do filme) ótimas histórias. Além de não esconder momentos adversos como a morte de um dos Irmãos Salazar, também surfista, por Aids (contraída com o uso de drogas pesadas e injetáveis).
“A Lenda do Gato” é filme que registra mais, muito mais, que o mundo paradisíaco (pelo menos na aparência) dos filmes dedicados ao gênero, em especial os californianos ou havaianos. Vai além do surfe praticado por jovens de corpos esculturais, cabelos louros e vistosas pranchas parafinadas. Picuruta fala, com franqueza, do pouco apreço dele e dos dois irmãos surfistas pelo estudo (“não queríamos saber de escola”), das brigas tribais (primeiro entre surfistas de Santos contra surfistas do Guarujá ou Ubatuba, depois contra os cariocas, que se sentiam os “donos do surfe no Brasil”, até desaguar em desavença internacional de brasileiros x havaianos), da falta de dinheiro (em viagens para surfar no Havaí, 40 brasileiros se amontoavam em pensão aguardando pequenos cachês em provas ou outros tipos de trabalho).
O melhor depoimento do documentário (fora os do próprio Picuruta) vem de Fuad Mansur, ex-surfista, junto com os irmãos Elias e Wady (hoje são fabricantes de parafina especial, a Fu Wax). O articulado Mansur conta que, durante a Guerra do Vietnã, famílias californianas vieram prestar serviços em Santos para fugir da convocação de seus filhos pelas forças armadas dos EUA. Melhor, claro, a segurança do litoral paulista, que a terrível guerra no leste asiático. Na cidade praiana, onde Pelé reinava soberano, os californianos continuaram sua prática cotidiana do surfe e encantaram parte dos jovens da Baixada Santista. Estes, fascinados, copiaram hábitos (em especial o surfe), moda e estilo relax de se viver dos visitantes temporários. Com a aproximação do fim da Guerra (que chegou a termo em 1975), os norte-americanos regressam a seu país. Mas o surfe ficou e fez escola.
“Picuruta, a Lenda do Gato” (o nome se deve à fama do surfista, que como o felino, “sempre caía de pé”) estreou em Santos, com festa e reunião de dezenas de amigos do protagonista. O mais conhecido dos integrantes do clã Salazar até inaugurou sua “Estrela da Fama” na calçada frontal do Cine Roxy, um dos mais badalados da Baixada Santista.
Depois de São Paulo e Rio, o filme deve ser lançado pelo menos em Florianópolis, onde a prática do surfe constitui paixão significativa. Participará, também, de alguns festivais de esportes radicais, sendo do Cine-Surfe, no Espírito Santo, o primeiro. Depois, o documentário chegará a emissoras de TV, VoD e streaming. Seu lançamento televisivo terá como primeira vitrine o Canal OFF, emissora que tem no surfe uma de suas razões de existir.
Picuruta, a Lenda do Surf
Brasil, 110 minutos, 2018
Direção: Alex Miranda
Fotografia: Ricardo “Toddy” Miranda
Fotografia complementar e drone: no Havaí, Anselmo Venânsi, e, em Jeffrey’s Bay, Ernst Ohlhoff
Por Maria do Rosário Caetano