Grande Prêmio do Cinema Brasileiro
Por Maria do Rosário Caetano
A noite de entrega dos troféus Grande Otelo aos melhores do cinema brasileiro consagrou “Benzinho”, de Gustavo Pizzi, comédia temperada com pitadas de drama e lágrimas suaves, com seis das principais estatuetas. O mesmo número de troféus, mas concentrados na área técnica, foi atribuído ao drama histórico-musical “O Grande Circo Místico”, de Carlos Diegues.
“Chacrinha, o Velho Guerreiro”, de Andrucha Waddington, cinebiografia do homem que balançava a pança e botava ordem no terreiro, finalmente conquistou a massa (de votantes), que lhe outorgou o Otelo (Júri Popular). O filme, para o qual se esperava bilheteria robusta, vendera menos de 40 mil ingressos. Mas saiu de alma lavada do Theatro Municipal paulistano. Afinal, além da eleição do público, deu-se a consagração de seu protagonista, o goiano Stepan Nercessian. Que, de quebra, pronunciou o melhor e mais divertido discurso da noite.
Stepan contou que, com o diretor Xavier de Oliveira, aprendera a “ser adulto” quando tinha 14 anos e protagonizou “Marcelo Zona Sul” (1969). E que Chacrinha e Andrucha Waddington o ajudaram “a voltar a ser criança aos 60”. E mais: passara os últimos sete meses desempregado e pensando na luta dos trabalhadores, em especial os do audiovisual, e seus parentes sem emprego, sem salário para as despesas básicas. E prosseguiu: “dedico este Troféu Grande Otelo, ator a quem tanto amo, aos trabalhadores e aos estúpidos, canalhas e cretinos que não entendem a importância do nosso ofício!”. Levantou o Troféu Otelo e finalizou: “Aqui ó, pra vocês, também, canalhas!”.
Os aplausos se multiplicaram. Só se ouviu ovação semelhante para a homenageada da noite, a cantriz Zé Motta, que, com lágrimas nos olhos, cantou, a capella, “Missão” (ou “Poder da Criação”, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro). E houve aplausos fartos para outra estrela negra, Ruth de Souza. As imagens de Ruth no telão do Theatro Municipal constituíram o ponto culminante do “Tributo aos que se Foram”. Além dela, Bibi Ferreira, Antunes Filho, Joel Barcelos, Leonardo Machado, Marcelo Yuka, Rubens Ewald Filho, Pedro Rovai, Carlos Cortez, Edina Fuji, entre muitos outros. Quando o público, emocionado, pensou que terminara a lista de perdas, veio a mais dolorosa (e recente) para a MPB: João Gilberto.
Depois de relembrar passagens do cantor-violonista pelo cinema com belas imagens (e sólidos depoimentos de Chico Buarque, Edu Lobo e Gilberto Gil, retirados do documentário “Vinícius”), o conjunto musical (presente em toda a cerimônia) acompanhou o jovem Ayrthon Montarroyos, que cantou “Chega de Saudade”. Foi o complemento que faltava para o fértil relacionamento entre Cinema e MPB, que já rendera canções cinematográficas como “Eu te Amo” (Tom Jobim e Chico Buarque), “Objeto Não Identificado”, “Pecado Original” e “Tieta” (Caetano Veloso), “Esperando na Janela” (Gilberto Gil), entre outras igualmente saborosas.
Um registro: a estrela máxima do cinema brasileiro dos anos 1970 e 80, Sônia Braga – de volta, agora, em “Aquarius” e “Bacurau” – feita imagem, encheu de beleza e sensualidade o telão do Troféu Otelo. Vê-la em versão celulóide, vestida em vermelho, como “A Dama do Lotação”, ou em prata (“Eu te Amo”), é recorrer a poderoso (e indelével) símbolo feminino de nosso audiovisual.
A noite dos “Otelo” foi longa, longuíssima (quatro horas tomadas por discursos, homenagens e entrega de troféus em 34 categorias!!). Por sorte, politizadíssima. A décima-oitava edição do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, a primeira realizada em São Paulo, será lembrada por recorrentes discursos em defesa de nosso cinema e de suas agências de fomento, ameaçadas de extinção pelo Governo Federal.
O Canal Brasil, que transmitiu a cerimônia, pôde mostrar uma festa alegre, regada ao melhor da MPB e com três apresentadores jovens e inspirados. A cantora potiguar Juliana Linhares (Banda Pietá) e os cariocas André Ramiro (Tropa de Elite) e Rodrigo Pandolfo (Minha Mãe é uma Peça) formaram trio descoladíssimo. Quando falhavam, sabiam transformar seus erros em simpática brincadeira.
Juliana, Ramiro e Pandolfo, além de tudo, cantaram. E muito (no sentido quantitativo). Se havia o desejo de rememorar canção marcante na história do cinema brasileiro e o titular (Chico Buarque, Caetano Veloso ou Gilberto Gil) não estava presente, eles os substituíam. Ney Matogrosso foi o único a comparecer, em pessoa, para cantar “Um Pouco de Calor”, do filme “Ralé”, de Helena Ignez.
Na tela, numa sequência de sensualidade abusada de “Tudo bem” (Arnaldo Jabor, 1978), Zezé Motta, seminua, cantou “Como nossos Pais”, de Belchior, para uma atarantada colega, a atriz Maria Sílvia. Não há matrimônio, vamos combinar, mais bem-sucedido no Brasil que este que uniu nossa poderosa música popular com nosso cinema.
Outro discurso vigoroso foi proferido pelo cineasta Luiz Bolognesi, Troféu Otelo pelo melhor documentário, “Ex-Pajé”. Sem o humor subversivo de Stepan Nercessian, Bolognesi lembrou que somos um povo com DNA indígena e majoritariamente de origem africana. Por que, então, “o presidente da República diz que devemos nos pautar somente pelos valores da sociedade judaico-cristã”? Para reafirmar a diversidade de nosso cinema, o documentarista dedicou o prêmio ao povo Pater Suruí, ao qual pertence o (ex) pajé Perpera, seu protagonista.
Outra estrela da noite foi a atriz Karine Telles. Ela subiu ao palco duas vezes. Primeiro, para apanhar o “Otelo” de melhor roteirista (junto com Gustavo Pizzi) pelo filme “Benzinho”. Depois, para receber outro “Otelo” por sua formidável interpretação da amorosa mãe da “família Benzinho”. Ela agradeceu, comovida, lembrando que, no início de seus 27 anos de carreira, sonhava em fazer cinema. Mas a produção caíra a raros, esporádicos, filmes por ano. Continuou “fazendo teatro e sonhando com a tela grande”. Agora, que o cinema brasileiro chega a lançar, num só ano, 170 filmes – indagou – sua infraestrutura de fomento pode ser desmantelada?
Por compromisso de trabalho, ela saiu correndo do Theatro Municipal. De forma que não pôde subir ao palco, pela terceira vez, junto com a equipe do vencedor “Benzinho”. Já começava a madrugada. Karine tinha que incorporar novo personagem no começo da manhã, que dali a pouco chegaria.
Um registro: depois do discurso, importante, mas atabalhoado, do presidente da Academia Brasileira de Cinema, Jorge Peregrino, subiram ao palco do Municipal paulistano quatro autoridades: Laís Bodanzky, da Spcine, o prefeito Bruno Covas, o secretário municipal de Cultura, Alê Youssef, e o secretário estadual de Cultura, Sérgio Sá Leitão.
Só no Brasil, uma festa de prêmios cinematográficos começa com cinco discursos oficiais. Por sorte, todos os ocupantes de cargos políticos se opuseram ao discurso federal, que prega o desmonte do setor cultural e, em especial, do audiovisual brasileiro. O prefeito Bruno Covas foi sintético e assertivo. Avisou que sua gestão continuará a investir na cultura por entender sua importância (como patrimônio simbólico e gerador de empregos) para São Paulo e para o país.
O saldo da noite dos “Otelo” foi positivo. Pelo matrimônio (que não haja divórcio!) entre Cinema e MPB, pelo descolado trio de apresentadores, pela direção de Ivan Sugahara e, felizmente, pelos mais sintéticos e politizados discursos da história do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Até quem se excedeu no tempo – e foi avisado por corte musical “suave”, depois intenso (caso do produtor e distribuidor Márcio Fraccaroli) – estava dizendo algo digno de atenção.
Fraccaroli contava que sua Paris Filmes está produzindo obras infanto-juvenis capazes de mobilizar grandes plateias (caso de DPA 2 – O Mistério Italiano, o vencedor) e, assim, não deixar nossas crianças sem produções nacionais, que nos representem. Ano que vem, tudo indica, ele estará presente na noite 2020 dos “Otelo” com “Turma Mônica – Laços”, de Danil Rezende, já visto por 2,1 milhões de espectadores.
O desinteresse do cinema brasileiro por filmes infanto-juvenis é grave, muito grave. “DPA 2” concorreu com apenas um filme, “O Colar de Coralina”. E, mais grave ainda, o longa de animação “Peixonautas” ganhou apenas menção honrosa, pois não havia concorrente a confrontá-lo.
Outro ponto a se registrar: o “Otelo” é o troféu das categorias profissionais do cinema. Ou seja, dos operários da “indústria” audiovisual brasileira. Não de críticos ou estudiosos do cinema. Mesmo assim, não custa nada dividir espaço entre os filmes de maior orçamento e os mais baratos e inventivos. Produções como “As Boas Maneiras” e “O Animal Cordial” revitalizam nossa criação fílmica ao amalgamar cinema social e horror, gênero cada vez mais presente no repertório das novas gerações. Filmes do quilate e potência criativa de “Arábia”, de Uchôa e Dumans, não podem ser ignorados.
O GP do Cinema (Troféu Otelo) já tem palco garantido para o ano que vem: a belíssima Sala São Paulo. Só resta torcer para que a distribuição dos “Otelo” aconteça nos primeiros meses do ano. Jamais no segundo semestre. O Goya espanhol estava bem posto no calendário (fevereiro, portanto, antes do Oscar). Agora vai acontecer em janeiro.
Confira os vencedores:
. “Benzinho” – melhor filme, diretor (Gustavo Pizzi), atriz (Karine Teles), atriz coadjuvante (Adriana Esteves), roteiro original (Karine Teles e Gustavo Pizzi), montagem (Lívia Serpa)
. “O Grande Circo Místico” – melhor fotografia (Gustavo Hadba), roteiro adaptado (Carlos Diegues e George Moura), figurino (Kika Lopes), direção de arte (Artur Pinheiro), maquiagem (Catherine Leblan Caraes e Emmanuelle Fèvre), efeitos especiais (Marcelo Siqueira e Thierry Delobel)
. “Chacrinha” – melhor filme pelo Juri Popular. Melhor ator (Stepan Nercessian), som (Jorge Saldanha, Armando Torres Jr, Alessandro Laroca, Eduardo Virmond Lima e Renan Deodato)
. “Ex-Pajé” – melhor documentário
. “DPA 2 – O Mistério Italiano” (Vivianne Jundi) – melhor filme infantil
. “Minha Vida em Marte” (Susana Garcia) – melhor comédia
. “Peixonautas” (Célia Catunda e Kiko Mistrorigo) Menção honrosa – longa de animação
“O Órfão” (Carolina Markowicz) – melhor curta ficção
. “Cor de Pele” (Lívia Perini) – melhor curta doc
. “Lé com Cré” (Cassandra Reis) – melhor curta animação
. “My Name is Now” (Elizabete Martins Campos) – melhor filme pelo Juri Popular, melhor trilha sonora doc (Elza Soares e e Alexandre Martins)
. “Todos os Paulos do Mundo” – melhor montagem doc (Gustavo Ribeiro e Rodrigo Oliveira)
. “O Nome da Morte” (Henrique Goldman) – melhor ator coadjuvante (Matheus Nachtergaele)
. “Paraíso Perdido” (Monique Gardenberg) – melhor trilha sonora ficção (Zeca Baleiro)
. “Uma Noite de 12 Anos” (Álvaro Brechner, Uruguai) – melhor filme ibero-americano pelo júri oficial e pelo júri popular.
. “Infiltrados na Klan” (Spike Lee, EUA) – melhor filme estrangeiro (juri oficial)
. “Nasce Uma Estrela” (Bradley Cooper, EUA ) – melhor filme estrangeiro (Júri Popular)
Série de TV
. “Inhotim, Arte Presente” – melhor série documental
. “Irmão do Jorel” – melhor série de animação
. “Escola de Gênios” – melhor série ficcional
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