Consagração do sul-coreano “Parasita” traz cosmopolitismo ao Oscar de Hollywood
Por Maria do Rosário Caetano
A festa de entrega dos troféus do Oscar de número 92 anunciava uma noite anglo-saxã. Dos cinco documentários que concorriam à estatueta, quatro eram estrangeiros, incluindo o brasileiro “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa (mas o vencedor foi o estadunidense “Indústria Americana”). O mesmo se deu na animação, que tinha dois fortes concorrentes europeus, o hispano-britânico “Klaus” e o francês “Perdi meu Corpo”. O vencedor foi “Toy Story 4”, mais norte-americano impossível. Os quatro atores que triunfaram — Renée Zellwerger, Joaquin Phoenix, Laura Dern e Brad Pitt — são a mais inquestionável das representações dos povos de olhos azuis.
Só que, para desconsertar os que esperavam uma noite de glórias para o cinema anglo-saxão, o sul-coreano “Parasita” deu um duplo (quádruplo!) twist carpado e mudou tudo. Foi o maior vencedor da noite, com quatro estatuetas, todas de imensa relevância. Melhor filme do ano, derrotando oito anglo-saxões, melhor filme estrangeiro, melhor direção (para o maior alquimista do cinema contemporâneo, Bong Joon-ho) e melhor roteiro original (de Bong e Jim Won Han).
O drama de guerra “1917”, campeão nas bolsas de aposta, ficou com três estatuetas, só uma de relevo (fotografia, para o mestre Roger Deakins). Foi, simbolicamente, o grande derrotado da noite. Até porque Martin Scorsese e seu vigoroso “O Irlandês”, protagonizado por mafiosos de segunda linha, saiu de mão abanando, mas o veterano novaiorquino foi louvado pelo vencedor sul-coreano, que o saudou como mestre com quem muito aprendera.
“Parasita” não é o primeiro longa estrangeiro a vencer o Oscar de melhor filme. Em 2012, o francês “O Artista”, de Michel Hazanavicius, conquistou três estatuetas (melhor filme, melhor ator para Jean Dujardin e melhor trilha sonora, para Ludovic Bource). Mas o sabor de ver um filme oriental romper a barreira que parecia intransponível (o Oscar continua sendo uma festa dos EUA, da língua inglesa e de homens e mulheres de olhos azuis e pele branca) tornou-se mais acentuado com o triunfo de “Parasita”. O filme é falado em coreano, tem diretor, roteiristas, atores, cenários, história, tudo, enfim, made in Coreia do Sul. Já “O Artista” era um filme mudo. E celebrava a era de ouro do cinema hollywoodiano em suas primeiras décadas, não o cinema francês.
A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood fez, desta segunda década do século XXI, um tempo de ensaiar mudanças. Além do prêmio para “O Artista” (oito anos atrás), houve diálogo dos mais fecundos com o cinema mexicano. Ano passado, “Roma”, de Alfonso Cuarón, era o franco favorito. Por suas imensas qualidades, recebeu dez indicações (contra seis de “Parasita”), ganhou três (inclusive, melhor filme estrangeiro), mas na hora agá, por ser uma produção da Netflix, foi punido. Perdeu o Oscar principal para o esquecível e conciliador “Green Book”.
Este ano, os mais de 8 mil acadêmicos fizeram a coisa certa: reconheceram um filme 100% internacional, vindo do extremo-oriente e vencedor da Palma de Ouro em Cannes. Não há, no cinema planetário, em nossos dias, diretor mais bafejado por talento e, ao mesmo tempo, capacidade de dialogar com o grande público. Na Coreia, as plateias de Bong Joon-ho são arrasadoras. Ele frequenta a lista top de blockbusters. “O Hospedeiro”, seu filme mais famoso até “Parasita”, vendeu 15 milhões de ingressos num país de 50 milhões de habitantes. Um fenômeno.
“Parasita” é fruto de alquimia rara. Seu criador é um genial misturador de gêneros. Uma de suas principais matrizes (assumida por ele) é “Hanyo, a Criada” (Kim Ki-young, 1960), mix de drama policial com terror atmosférico. Neste filme, uma moça, amante de um homem casado, emprega-se na casa dele e transforma a vida da família em um pesadelo. Este poderoso fio narrativo ganhou potência máxima nas mãos de Bong. Ele somou drama social (com luta de classes!), altas doses de comédia, terror e final em ritmo de grand guignol. Tudo com maestria rara. Fez o filme do ano.
O vencedor na categoria documentário, “American Factory”, é um filmaço. Aliás, a safra documental deste ano era da pesada. O macedônio “Honeyland” perdeu nas duas categorias que disputou (documentário e filme estrangeiro), mas ninguém há de tirar seu encanto. O brasileiro “Democracia em Vertigem” fez história. Nunca um de nossos filmes rendeu tanta polêmica por causa de sua indicação ao Oscar. Aqui, em solo brasileiro, nem se fala. Na imprensa internacional, também houve entrevistas (na TV e jornais) e até em lista de “melhores do ano” (no poderoso New York Times) o filme de Petra encontrou espaço.
Quem prestou atenção no discurso de agradecimento dos veteranos (e carecas, ambos) diretores do longa documental vencedor (Julia Reichert e Steve Bognar) ouviu evocações do Manifesto Comunista, de Marx e Engels. Os cineastas, produzidos pelo casal Obama em sua primeira grande aventura no cinema, são dois conhecidos militantes da esquerda norte-americana, cultores de filmes de temática social. “American Factory” é um belíssimo e contundente mergulho no mundo do trabalho em tempos globalizados e de destruição dos direitos dos trabalhadores, a começar pela desestruturação dos sindicatos. Quem vibrou com a não-premiação de Petra costa, decerto não viu a potência subversiva de “Indústria Americana”.
A festa de número 92 do Oscar foi das mais entediantes. Piadas sem graça (salvo a da “falta de vaginas”), músicas soporíferas (exceção para Elton John, que sabe magnetizar seu público), discursos modorrentos, com prêmios dedicados “a pais, irmãos, filhos e esposas abnegadas”. Se não fosse, mais uma vez, o politizado ambientalista, vegano e herdeiro da era hippie Joaquin Phoenix, a noite, no plano retórico, seria catastrófica.
O Oscar, pelo menos, penitenciou-se por só indicar, entre vinte nomes (protagonistas e coadjuvantes), uma atriz negra (a cantriz britânica Cynthia Erivo, de “Harriet”). E, sabendo fazer de um limão uma limonada, permitiu que duplas de fugazes apresentadores brincassem com a baixíssima representação black dessa festa ainda por demais anglo-saxã. Chris Rock deu suas cutucadas, Janelle Monáe e Cynthia Erivo, também. Afinal, como entender a ausência de Eddie Murphy, o doidão Dolemite, e de Lupita Nyong’o, em papel duplo no inventivo “Nós”, na lista de indicados?
E um registro final: sempre emociona ver a homenagem que a Academia presta aos profissionais do cinema que partiram. Mesmo que a lista só tenha olhos para nomes anglo-saxões (e para um ou outro europeu ou japonês). Este ano, ao som de “Yesterday”, um dos maiores sucessos de Lennon e McCarthney, foram lembrados nomes como Peter Fonda, Buck Harry, Terry Jones, Kirk Douglas, Doris Day, Danny Aiello, Hutger Hauer, Zefirelli, Agnes Varda, Bibi Andersson e os black John Singleton e Kobe Bryant (astro do basquete que produziu um curta laureado pelo Oscar).
Confira os premiados:
. “Parasita” (Coreia do Sul) – melhor filme, melhor filme estrangeiro, diretor (Bong Joon-ho), roteiro original (Bong Joon-ho e Jim Won Han)
. “1917” (Inglaterra/EUA) – melhor fotografia (Roger Deakins), mixagem de som (Mark Taylor e Stuart Wilson), efeitos visuais (Rocheron, Butler e Tuohy)
. “Coringa” (EUA) – melhor ator (Joaquin Phoenix) e trilha sonora (Hildur Gudnadóttir)
. “Judy, Muito Além do Arco-Íris” (Inglaterra) – melhor atriz (Renée Zelweger)
. “Indústria Americana” (EUA): melhor longa documental
. “Toy Story 4” (EUA): melhor longa de animação
. “Era uma Vez… em Hollywood” (EUA) – melhor ator coadjuvante (Brad Pitt), direção de arte (Barbara Ling e Nancy Haig)
. “Jojo Rabbit” (EUA) – melhor roteiro adaptado (Taika Waititi)
. “Ford vs Ferrari” (EUA) – melhor montagem (Nichael McCuster e Andrew Buckland), edição de som (Donald Sylvester)
. “História de um Casamento”(EUA) – melhor atriz coadjuvante (Laura Dern)
. “Rocketman”(Inglaterra/EUA) – melhor canção (“I’m Gonna Love me Again, de Elton John e Bernie Taupin)
. “Adoráveis Mulheres” (EUA) – melhor figurino (Jacqueline Durran)
. “O Escândalo”(EUA) – melhor maquiagem e cabelos (Hiro, Morgan e Baker)
. “Hair Love”(EUA) – melhor curta animado
. “The Neighbors Window” (EUA) – melhor curta ficcional
. “Learning to Skateboard in Warzone”(EUA) – melhor curta documental