Gramado dá adeus ao cinema latino, abre espaço nobre para o documentário e entrega Kikito de Cristal a Alice Braga
Por Maria do Rosário Caetano
Em que festival filmes-participantes de eventos internacionais – como os documentários “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça, “Nelson Pereira dos Santos, uma Vida de Cinema”, de Aída Marques e Ivelise Ferreira, e o híbrido “A Flor do Buriti” – vão estrear? Em Gramado, na Serra Gaúcha (de 11 e 19 de agosto)? Ou no Festival de Cinema do Rio (5 a 15 de outubro)?
Até o ano passado, essa pergunta era de fácil resposta: no festival carioca. Afinal, Gramado estruturava sua programação em duas mostras principais – uma brasileira, dominada pela ficção, e outra ibero-americana, também centrada em ficções de países vizinhos. Já o festival carioca mantinha sua tradicional competição de documentários inéditos.
Os longas documentais ficavam sem espaço na Serra Gaúcha. Em sua badalada e sobrecarregada quinquagésima edição, realizada ano passado, o Festival de Gramado criou uma estranha Mostra Competitiva de Documentários, exibida on-line pelo Canal Brasil, em horário nobre (por volta das oito da noite). Ou seja, justo no momento em que todos estavam dentro do Palácio dos Festivais, assistindo às competições de filmes brasileiros e ibero-americanos.
Resultado: o comando do evento foi obrigado a improvisar sessão especial para que a imprensa pudesse assistir ao documentário vencedor – “Um Par para Chamar de meu”, e entrevistar a diretora laureada Kelly Spenelli. O Canal Brasil, parceiro histórico do Festival de Gramado, vem produzindo, em parceria com a Globonews e Globoplay, uma série de documentários de grande repercussão. Um deles – “O Vale dos Isolados”, de Sônia Bridi (disponível na Globoplay) com as últimas imagens do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, assassinados no Vale do Javari, na Amazônia – causou sensação na mídia brasileira.
Poucas semanas atrás, o comando de Gramado anunciou que, “por redução orçamentária”, ocasionada pela “não-contemplação com o direito de buscar patrocínio via Lei de Incentivo à Cultura”, a edição de número 51 deixará de apresentar a competição ibero-americana (latina). Ou seja, desde sua internacionalização, ocorrida em 1992 (portanto há 31 anos), não haverá filmes argentinos, uruguaios, colombianos, chilenos, mexicanos ou espanhóis disputando o Troféu Kikito.
Para a vaga aberta, Gramado anunciou competição de longas documentais, que serão exibidos no Palácio dos Festivais, no horário antes ocupado pelos filmes de nossos hermanos. Até o Kikito de Cristal, láurea que vinha sendo destinada a atores e diretores ibero-americanos (Paulina García, Soledad Villamil, Natália Oreiro, Jean-Pierre Noher, Cesar Troncoso, Fernando Solanas, Juan José Campanella) será entregue a uma atriz brasileira, a carioca Alice Braga, revelada em “Cidade de Deus” e com carreira internacional (“Eu Sou a Lenda”, “O Ritual”, “Novos Mutantes”, “Esquadrão Suicida”, “Hypnotic” e da série “Queen of the South”, baseada no romance “La Reina del Sur”).
Com uma mostra dedicada por inteiro ao cinema documental, Kleber Mendonça, Aída Marques, Ivelise Ferreira, Renée Nader Messora, João Salavisa e muitos outros realizadores estarão, decerto, motivados a competir em Gramado (lembrando que os documentários serão exibidos simultaneamente na telinha do Canal Brasil). Mas seus produtores (e realizadores) podem entender que o Festival do Rio seja o espaço ideal como primeira vitrine. Essa decisão será conhecida dentro de algumas semanas, quando Gramado anunciará as ficções e documentários brasileiros, os curtas da competição nacional e os longas e curtas do Gaúchão (Mostra de Filmes do Rio Grande do Sul).
Se o cinema documentário volta a contar com vitrine privilegiada, a produção ibero-americano perde, ao que tudo indica, para sempre, sua mais vistosa tela. Foi em Gramado que o cinema de expressão espanhola mais brilhou em solo e tela brasileiros. Foi no Palácio dos Festivais que Jean-Pierre Noher recebeu aplausos de pé ao interpretar Jorge Luis Borges em “Um Amor de Borges” (Javier Torre, 2000), que Cesar Troncoso (“O Banheiro do Papa”) se tornou um dos queridinhos da Serra Gaúcha, que o trio de protagonistas Ana Brun, Margarita Irun e Ana Ivanova (“As Herdeiras”, Marcelo Martinessi, 2018) roubaram a festa até dos filmes brasileiros, que Roberto Cobo (revelado por Buñuel em “Los Olvidados”, 1950), apoiado numa bengala, viu-se incapacitado para subir ao palco (recuperava-se de grave ferimento em terremoto que varrera a cidade do México), que sua conterrânea, a atriz Claudette Maillé (de “Como Água para Chocolate) montou, nua em pelo, um alazão.
Foi, também, em Gramado, que a atriz Ana Torrent (a menininha de “Espírito da Colmeia” e “Cria Cuervos”) reapareceu adulta no filme “Tesis – Morte ao Vivo”, que a jovem nicaraguense Alma Blanco contou que o filme “La Yuma” era uma homenagem a Juma Marruá, da telenovela da Rede Manchete, que a diva Marisa Paredes defendeu os “Tacones Lejanos” de Pedro Almodóvar. E o ator paraguaio Emilio Barreto, de “Guarani” (Luis Zorraquin, 2016), deixou a plateia de coração partido quando subiu ao palco do Palácio dos Festivais com uma bandeirinha de seu país e proferiu agradecimento histórico em espanhol e em guarani.
Dá para apostar com grande segurança – mesmo que os orçamentos voltem a ser generosos – que encerrou-se o tempo em que Gramado falava, além de português, espanhol. Esse tempo durou três décadas. O cinema internacional chegou à Serra Gaúcha nos anos Collor, quando a produção brasileira reduziu-se a índices tão alarmantes, que não havia longas-metragens para abastecer o mais antigo festival brasileiro (o de Brasília) e o mais badalado (o da Serra Gaúcha). O evento candango continuou “caçando filme a laço”, enquanto Gramado, com ajuda de Walter Hugo Khouri, arriscou-se a ser um festival latino, incluindo os europeus França, Itália, Espanha e Portugal.
Hoje, mesmo com a falta de incentivos dos quatro anos do governo Bolsonaro, a produção brasileira de longas de ficção e documentais segue vibrante. Nossa produção documental, então, vive momento excepcional. Como bem lembrou o organizador do Festival É Tudo Verdade, Amir Labaki, em sua coluna no Valor Econômico, o placar da presença brasileira em Cannes 2023 foi de 3 x 1 (três documentários – “Retratos Fantasmas”, “Nelson Pereira” e “A Flor do Buriti”, e uma ficção – “Levante”, de Lillah Halla).
De agora em diante, o cinema latino-americano será visto no meio das centenas de filmes do Festival Internacional do Rio e da na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no Cine Ceará e, se voltar a acontecer – com apoio do Memorial da América Latina (desenhado por Oscar Niemeyer e idealizado pelo então secretário de Cultura Fernando Morais), – o Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo.
Sejamos realistas: os festivais cresceram de maneira avassaladora no Brasil (a nova titular da Secretaria do Audiovisual, Joelma Gonzaga, forneceu dado concreto: são 371 festivais e mostras espalhados por nosso território). A disputa por filmes inéditos é imensa. Um produtor pensa (e escolhe) bastante antes de colocar seu longa-metragem numa primeira vitrine. Depois da estreia, alguns querem estar em dezenas de outros festivais e mostras (aqueles que não exigem ineditismo).
Gramado, criado em 1973, é um dos mais disputados festivais brasileiros. Cresceu muito e todos os produtores e cineastas (gaúchos e brasileiros, de curta ou longa-metragem) querem ver seus filmes no telão do Palácio dos Festivais (ex-Cine Embaixador). Ou seja, querem passar pela badalação do tapete vermelho.
A produção gaúcha de curtas e longas-metragens também cresceu de forma significativa. Produtores da terra de Teixeirinha e Jorge Furtado desejam ver seus filmes em horário e espaço nobres. O Canal Brasil quer dispor de uma vitrine para a produções documentais que realiza com parceiros. Todos querem espaço relevante.
As pressões chegam de todos os lados. E quem paga o pato? O cinema latino-americano, o lado mais fraco da corrente. E sejamos sinceros: as maratonas cinematográficas de Gramado – debates no período matinal, o Gauchão no período da tarde, os longas latinos (agora o documentário brasileiro) e as ficções ocupam o período noturno – tornaram-se exaustivas.
A sobrecarga é tão grande, que os jornalistas – em parte por causa de atrasos cada vez maiores do festival gaúcho, pródigo em rituais no tapete vermelho e em homenagens especiais (Troféu Oscarito, Troféu Eduardo Abelin, Kikito de Cristal, Troféu Cidade de Gramado) – já não têm tempo para alimentar-se (almoços e jantares tornaram-se sonhos de noites geladas e/ou chuvosas). E há um agravante: os restaurantes gramadenses, depois da pandemia, não querem funcionar após a meia-noite. E as sessões competitivas se encerram nos primeiros momentos da madrugada.
Registre-se, pois: os gaúchos querem espaço nobre para seus filmes, o público quer ver produções com astros badalados (em especial os da TV). Tanto que as sessões latino-americanas, com raras exceções, vinham mobilizando menos espectadores. Quem, frente a tal quadro, acredita que os filmes “hispanohablantes” regressarão à tela gramadense?
A quinquagésima-primeira edição do festival gaúcho começará, avisam seus organizadores, numa sexta-feira, 11 de agosto. Todo “o destaque será dado ao projeto Educavídeo, com apresentação de conteúdo produzido por alunos gramadenses”. Haverá, ainda, duas sessões da Mostra Infantil para a garotada da rede escolar. E tais exibições ocorrerão no Palácio dos Festivais. Todos só querem saber dele, o “palácio” gramadense.
Na manhã de sábado, 12 de agosto, a Rua Coberta, ou Tapete Vermelho, receberá a abertura oficial da edição, com discursos e recital de música, seguida pela primeira sessão de Curtas-Metragens Gaúchos (em competição). No final da tarde, será apresentado o filme inaugural (ainda não anunciado) e terá início a competição de Longas-Metragens Brasileiros.
O comando de Gramado, centralizado na Gramadotur, autarquia municipal responsável pelo calendário de eventos da cidade, assegura que a edição deste ano “foi compactada”, já que seu “orçamento sofreu corte de 25%”. Mas a curadoria, mesmo sem a competição latino-americana, continua contando com a participação da atriz argentina Soledad Villamil, do oscarizado “O Segredo do seus Olhos” (Juan José Campanella, 2009). Com ela, estão o crítico gaúcho Marcus Santuário e o ator carioca Caio Blat, que substitui o documentarista e apresentador de TV Pedro Bial.
O Festival de Gramado recebeu 897 inscrições (de curtas e longas, ficcionais e documentais) para sua edição deste ano, o que significa um aumento de 9% em comparação com o ano passado. Para a categoria Longas-Metragens Documentais inscreveram-se 145 títulos (número superior ao de longas de ficção). Serão escolhidos apenas cinco documentários.
Segundo a autora da matéria, o documentário brasileiro atual está em franca produção apesar da “falta de incentivos dos quatro anos do governo Bolsonaro”. Ela poderia ter descrita a quantidade de PÚBLICO dos péssimos documentários brasileiros. Basta analisar a ridícula arrecadação em bilheteria para constatar que, de fato, nem um centavo do inventivo público deve mesmo ser investido nisso aí. Por mim, não tem que dar nem um só centavo para projetos “culturais” cuja representatividade em nossa cultura é NULA.
Pingback: Festival de Gramado apresentará filmes sobre Luis Fernando Verissimo, Mussum e Ângela Diniz, “a Pantera de Minas” – Revista de Cinema