“Brasiliana”, filme inaugural do Cine Ceará, mostra Sophia Loren nos embalos da dança afro-carioca

Foto: Luiz Alves – Arte Foto

Por Maria do Rosário Caetano

O longa documental “Brasiliana: o Musical Negro que Apresentou o Brasil ao Mundo”, de Joel Zito Araújo (foto), revelou ao público da noite inaugural da trigésima-quarta edição do Cine Ceará, a exitosa, embora difícil, trajetória de companhia de bailarinos afro-brasileiros, integrantes dos grupos Brasiliana e Brasil Tropical.

A partir dos anos 1950 e até a Copa do Mundo de 1974, na Alemanha, a trupe idealizada pelo ator, escritor e sambista Haroldo Costa, hoje com 94 anos, atuou em dezenas de países da América Latina, Europa e até na Ásia.

O maior sucesso do Brasiliana se deu na França e na Itália. Neste país, até ganhou destaque em filme protagonizado pela bela Sophia Loren, então com 19 anos (“Ci Troviamo in Galleria”, de Mauro Bolognini, 1953). O grupo fez temporadas na Grécia, Andorra, Alemanha, Colômbia, Bolívia, entre outros países. No Japão, apresentou-se nos festejos do aniversário do Imperador Hirohito, presente, em pessoa,  à função. Realizada, para espanto dos noctívagos bailarinos, “às onze horas da manhã!”

Joel Zito Araújo destaca, além do filme de Bolognini-Sophia Loren, outro momento glorioso da Companhia Brasiliana: a participação em festa de arrecadação de fundos do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), comandada, em 1967, pelo casal Elizabeth Taylor e Richard Burton. Na plateia estavam astros de Hollywood e os Beatles (com direito a close em John Lennon, sentado ao lado do guru Maharishi Mahesh Yogi).

Para poder utilizar dois minutos do filme de Sophia Loren — transformados (pelos milagres da montagem) em oito minutos — e as imagens da Festa do Unicef, a produtora de “Brasiliana”, a mineira Impulso, de Juiz de Fora, “se virou nos 30”. Correu atrás de quem bancasse os altos custos de aquisição de direitos autorais. Se não de todos os desejados, pelos menos os mais importantes.

“Fizemos o filme”, contou o produtor Daniel Couto, o Catatau, “com R$ 430 mil de edital da Ancine e trabalhamos por quatro anos nas etapas de pesquisa e filmagem das entrevistas”. Mas “o custo dos materiais de arquivo, tanto os de imagens, quanto os fonogramas, eram muito caros”. Exemplificou: “o registro do show da Brasiliana na Copa do Mundo de 1974, em Frankfurt, custou R$ 35 mil. O material da BBC, R$ 50 mil”

Joel Zito Araújo procurou o Itaú Cultural que, via Lei do Audiovisual, bancou a aquisição dos materiais mais significativos e dispendiosos. Em especial, os europeus (da BBC Londrina, da Alemanha e da Itália). No total, o filme, que será lançado pelo Canal Curta!, custou R$ 790 mil.

No dia de seu septuagésimo aniversário (esse domingo, 10 de novembro), Joel Zito fez apelo veemente: “o custo de cessão de arquivos está exagerado, caro demais”. Seus detentores “transformaram imagens e sons em verdadeiras minas de ouro. Necessitamos de ações capazes de minorar esses preços”.

A  Companhia Brasiliana, que estilizava danças intituladas “Navio Negreiro”, “Colheita do Café”, “Candomblé”, “Lundu” e “Macumba”, nasceu como desdobramento do TEN (Teatro Experimental do Negro, comandado por Abdias Nascimento).

O nonagenário Haroldo Costa, com sua prodigiosa memória, relembra que “a companhia de Abdias era muito séria, montava dramas e tragédias. Nós éramos jovens e queríamos algo mais alegre e festivo”. Inspirados na Coleção Brasiliana, da Companhia Editora Nacional, o grupo de bailarinas e bailarinos, todos negros, jovens e de corpos esculturais, começou a ensaiar, a selecionar as músicas e a criar as coreografias. Recorreu ao folclore brasileiro, mas, como lembrará um bailarino-coreógrafo, “estilizando-o”, de forma a torná-lo mais acessível e atrativo ao público internacional.

O cineasta Joel Zito Araújo subiu ao palco do Cine São Luiz, principal cenário do Festival Ibero-Americano, na noite desse sábado, 9 de novembro, acompanhado do produtor Daniel Couto, do diretor de fotografia Kiko Barbosa e do pesquisador e co-roteirista Itamar Dantas. Ele revelou que tinha notícias esparsas da trajetória da companhia de dança afro-brasileira. “Nada de muito substantivo”.

“Itamar (Dantas) tem uma sólida pesquisa sobre o grupo e suas excursões pelo mundo”, pontuou Joel Zito. “Este material tem tudo para resultar em livro dos mais importantes. Fiquei encantado com os detalhes que me foram apresentados pela trupe da produtora Impulso, quando eles me convidaram para dirigir o filme”.

A jovem trupe, que produzia seu longa-metragem de estreia, colocou mãos à obra. O primeiro depoimento colhido foi o do incansável Haroldo Costa, já nonagenário. “Ele é tão importante” — ponderou Joel Zito — “que registramos quatro horas do testemunho dele”. E detalhou: “Haroldo é a alma do Brasiliana. Foi numa excursão da companhia afro-brasileira a Paris, que ele solidificou sua amizade com Vinicius de Moraes. Diplomata e poeta, Vinicius escrevia uma peça (a seminal “Orfeu da Conceição). Durante feijoada preparada para os integrantes da Companhia Brasiliana, ele entregou os originais a Haroldo e pediu que ele lesse e desse sua opinião”.

“O que aconteceria depois” — narrou Joel Zito — “já sabemos: Haroldo seria peça-chave no elenco da montagem do espetáculo, fonte fertilizadora do filme ‘Orfeu Negro’, de Marcel Camus (premiado em Cannes e detentor do Oscar estrangeiro)”. O ator faria carreira da maior grandeza nas artes brasileiras. Até como diretor de cinema, com “Pista de Grama”, realizado em parceria com Cajado Filho (1958).

A equipe do documentário, que participa do Cine Ceará, não conseguiu, ainda, identificar o bailarino que dança com Sophia Loren no filme de Mauro Bolognini. Mas tem certeza que não é Haroldo Costa.

Joel Zito até relembrou episódio acontecido na juventude do ator, sambista e pesquisador afro-carioca: “Haroldo sofreu acidente num trem da Central do Brasil e perdeu parte do pé”. Mas isso “nunca impediu que ele fosse figura da linha de frente da Companhia Brasiliana”. Além dele, o documentarista destaca a importância do empresário Miércio Askanasy, já falecido e representado no filme por seu filho, o jornalista e pesquisador Gino Askanasy. Que apresenta sólido testemunho.

“Houve um momento, durante as filmagens”, ponderou Joel Zito, “que vi Miércio como um empresário explorador de mão de obra, interessado na mais valia de artistas pretos e pobres”. E, quem sabe, “envolvido com a exportação de corpos negros para a prostituição na Europa”. Só que, com a polifonia de testemunhos colhidos para o filme, o cineasta chegou a outra conclusão: “ele tinha ligação com a Companhia Brasiliana, lutava por ela e era respeitado pelas bailarinas e bailarinos”.

A embaraçosa questão da prostituição (há casos registrados) e da exploração de imagem sexualizada dos corpos pretos são abordadas no filme. A bailarina Watusi, a mais célebre da trupe, aborda o assunto da prostituição. Diz que, sim, houve quem se prostituísse. Mas que essa não era a regra. Ela, por exemplo, seguiu carreira ao tornar-se uma das estrelas do Moulin Rouge parisiense.

“O que quisemos mostrar em nosso filme” — diz Joel Zito — “foi a imagem grandiosa construída pelos participantes (pelo menos os que estão vivos) da companhia brasileira”. Afinal, “todos, sem exceção, lembram os anos em que atuaram no grupo como experiência feliz e enriquecedora”.

“Todos os entrevistados — além de Watusi, os bailarinos Carminha Simpatia, Marinês Yagnes, Jurandir Palma, Inaycira Falcão, Martinho Fiuza, Luís Antônio e Joel Santos — exalam reconhecimento pelo período vivido em palcos da Europa, América do Sul e Japão”.

Relembram, sim, momentos difíceis — passaram aperto em cidadezinhas à margem do Rio Magdalena, na Colômbia; foram despejados de hotel francês, por cozinhar suas refeições, o que era proibido, em fogareiros, nos quartos. Mas “contam que aprenderam muito, foram felizes e fizeram seu pé de meia profissional. Nenhum ficou rico, mas a maioria tem casa própria. Alguns, até sítio para as horas de lazer”.

Sobre a “sexualização de corpos pretos” — finaliza Joel Zito —, “ela existiu e foi muito combatida pelo Movimento Negro organizado”. Mas “eu quis, nesse filme, sobre ‘o Musical Negro que Apresentou o Brasil ao Mundo’, mostrar o encantamento daqueles jovens afro-brasileiros, que saíram da pobreza, rumo a uma Europa do pós-Guerra, sedenta por dias melhores, e lá foram recebidos, em festa, por plateias lotadas”.

E, assegura, “o encantamento era tão grande, que os espectadores mais entusiasmados subiam ao palco para dançar com as bailarinas”. Aqueles que esticavam em festas pelas boates europeias “faziam questão de pagar a bebida consumida pelos artistas, de mostrar acolhimento não encontrado em nosso país, o Brasil”. Aqui, “ser preto era sinônimo de ser feio e pobre. Lá, muitas bailarinas se sentiram valorizadas e algumas conquistaram maridos franceses, alemães ou italianos”.

No documentário, uma das bailarinas conta que começou a namorar o jovem e iniciante cantor Jair Rodrigues, preto como ela. “Nem a mãe (dela) gostou da escolha, pois sonhava, para a filha, com  casamento com um homem branco”. Para que assim “pudesse alcançar um futuro melhor e ter filhos favorecidos pelo branqueamento”.

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