Documentário mostra, no Cine Ceará, a complexa relação de Cuba com os hits eróticos do reggaeton
Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza (CE)
“En La Caliente – Contos de um Guerreiro do Reggaeton” (foto), do cubano Fabien Pisani, é o representante do país caribenho na competição do Cine Ceará. O festival, de alcance ibero-americano e ambientado em Fortaleza, entrega o Troféu Mucuripe a seus vencedores na noite dessa sexta-feira, 15 de novembro.
Além do longa documental cubano, fruto de parceria com os EUA, outro filme de não-ficção destacou-se na quarta noite da mostra competitiva do Cine Ceará — o curta-metragem “Salmo 23”, dos paulistanos Lucas Justiniano e José Menezes. A programação completou-se com a animação carioca “Eu Sou um Pastor Alemão”, de Angelo Defanti, diretor dos longas “Clube dos Anjos” e “Verissimo”, e a fantasia homoafetiva “Tiramisù”, do cearense, de Aracati, Leônidas Oliveira.
“Guerreiro do Reggaetom” registra a história de Kandyman (nome artístico do santiagueiro Ruben Cuesta Palomo, hoje beirando os 45 anos). Ele foi um jovem cuja formação se processou durante um dos momentos mais terríveis da história de Cuba, o chamado “Período Especial” (1990-1996). Um tempo de privações, em que os apagões eram constantes e o arroz era cozinhado sem óleo ou banha. Com a debacle da URSS, a ilha perdeu seu mais generoso parceiro e teve que se virar sozinha de um dia para o outro.
Kandyman, que vivia suas inquietações em Santiago de Cuba, na parte mais oriental do país , uniu-se de corpo e alma a praticantes do rap, do hip hop e da break dance. Dedicado a práticas atléticas, não demorou a transformar-se na principal voz do Reggaeton, novidade musical vinda de outra ilha caribenha, a Jamaica.
Num país com limitações de comunicação com o exterior, a galera jovem escalava morros para, com equipamentos improvisados, captar o som da juventude jamaicana. Nascia o reggaeton de Santiago de Cuba. E Kandyman tornava-se sua voz mais potente. Seus shows em espaços públicos mobilizavam milhares de jovens, que — divorciados do projeto socialista e do ideal do “Homem Novo” da Revolução Cubana — só queriam dançar e se divertir. Quanto mais picantes (eróticos e calientes) fossem os versos das músicas, melhor.
Em Havana, centro nervoso da geopolítica cubana, tais letras causavam espécie. Eram vistas como grosseiras, erotizantes, contrárias ao que se ensinava nas escolas e centros de defesa da Revolução. Enfim, nada traziam em prol do engrandecimento e elevação da cidadania. Indiferentes, os jovens iam em massa aos shows, compravam CDs produzidos amadoristicamente e transformavam Kandyman em ídolo.
Ele viveria seu apogeu em Santiago de Cuba, cidade de 500 mil habitantes, a segunda maior do país. Depois, migraria para Havana (2 milhões), onde o sucesso avassalador não se concretizaria. No final do filme, constataremos que o regueiro havia abandonado a esposa e a filha, e tomado o rumo de Miami, nos EUA. É lá que o veremos, ainda rebelde e inquieto, tentando consolidar sua carreira. Conseguirá se impor na ultracompetitiva indústria do show biz norte-americano? Isso não saberemos.
O diretor, que participou da produção do sensível “Sete Dias em Havana”, ao definir seu primeiro longa solo, este dedicado ao “Guerreiro do Reggaeton”, faz questão de lembrar que “o músico veio do nada, mudou um país para sempre com sua música e depois desapareceu”. Por isso, se propôs a traçar “retrato trágico de um dos artistas mais importantes e esquecidos da Cuba contemporânea”.
Num ímpeto retórico, a sinopse chega a definir o longa-metragem selecionado pelo Cine Ceará como “um documentário sobre juventude, dança, liberdade e rebelião”.
“Contos de um Guerreiro do Reggaeton” não cumpre missão tão complexa. Mas consegue registrar com poderosas imagens, a imensa energia da juventude cubana (e brasileira, pois o funk cumpre aqui papel de muitas semelhanças).
Fabien Pisani é um cruzado da causa dos jovens que abraçaram o reggaeton, seja como expressão artística, seja através de suas imensas plateias dançantes. Seu documentário está totalmente do lado deles, embora abra espaço (formal, registre-se) para o outro lado — o oficial-governamental. Além do músico e (então) presidente do Instituto Cubano de Música, o afro-santiagueiro Orlando Vistel, responsável por profundas restrições às letras do Reggaeton, manifestam-se ao longo da narrativa (de 85 minutos), o futuro vice-ministro da Cultura, Abel Acosta, e o então comandante-chefe do país, Raul Castro. Hoje, Cuba é comandada por Miguel Díaz-Canel.
A onda do Reggaeton, que mobilizou e empolgou milhares de jovens cubanos, foi parar, realmente, em pronunciamento oficial do substituto (e irmão) de Fidel Castro. Raul proferiu sua análise em ambiente solene, para seus principais auxiliares na administração do país.
Registre-se, porém, que do ponto de vista estético-narrativo, as três autoridades levam um baile. Aparecem formais, declamatórias e em cores tristes, enquanto o frenesi da juventude e de seus ídolos mobilizadores soma movimentos, cores vibrantes e vida. E tomada por sensorialidade avassaladora.
Durante o debate do filme, o produtor musical e cinematográfico Fabien Pisani fez questão de desmontar ideia sobre a Ilha, que ele julga equivocada. “As pessoas acreditam que Cuba é um país parado no tempo, congelado, imutável. Estão enganadas. Cuba muda muito, a cada três meses”, exagerou.
Em outro momento, questionado sobre uma possível simpatia de Kandyman por símbolos da Revolução — ele grava um reggaeton-clip frente a vistoso e rubro pôster de Che Guevara — Pisani foi categórico: “a juventude cubana não tem nenhuma afinidade com o ideário da Revolução. A ruptura é total. Os sonhos dela estão todos voltados para um ‘mall’ (assim os cubanos denominam os cobiçados shopping-centers, paraísos do consumo contemporâneo).
Num dos momentos finais do debate, o realizador mostrou-se surpreso com a receptividade ao seu documentário e com as perguntas a ele dirigidas. “Me preveniram que eu encontraria, aqui, brasileiros solidários e arraigados à Cuba dos tempos idos da Revolução. Estou realmente surpreso”.
Os “Contos de um Guerreiro do Reggaeton” foram registrados por Fabien Pisani com ajuda de uma pequena equipe cubana. “Filmamos com produção mínima e ajuda de estudantes da Escuela de Cine de San Antonio de los Baños e do Festival de Cine Joven, sem apoio oficial”. Por transitar, também, no campo da produção musical, o documentarista passou meses em Cuba cuidando da pré-produção de um Festival Internacional de Música, que acabou não acontecendo. Faltou apoio. No mesmo período, produziu um documentário sobre Pablo Milanés.
Fabien foi claro e muito preciso em suas respostas. Sem mais delongas, avisava educadamente: “não entendi sua pergunta”. E se preparava para a seguinte, pedindo que fosse “simples e objetiva”. Embora viva fora da Ilha (no México), fez questão de não dar declarações sobre governantes cubanos e suas opções políticas. “Agi assim também no filme, pois o que me interessava era mostrar a força do Reggaeton junto à juventude”.
Sem distribuição garantida no circuito exibidor cubano, ele promete arrumar um jeito de colocar o filme ao menos nas mãos do santiagueiro (de El Cobre) Abigail Vincent, jovem de origem haitiana, um devotos discípulos de Kandyman. Ele é um dos personagens do filme e sobe o morro com um imenso rádio, para evocar o tempo em que captavam, com imensos esforços, emissoras jamaicanas, responsáveis pela propagação e difusão do reggaeton.
O documentário brasileiro “Salmo 23”, sem dúvida o melhor dos seis curtas-metragens exibidos até agora, chama atenção por sua novidade temática. E por sua potente e sintética narrativa. Em apenas 12 minutos, Justiniano e Menezes mostram a rotina da perita Fátima Oliveira, que há três décadas atua em cenários criminais. Cabe a ela fotografar cadáveres e as circunstâncias que os envolvem.
Quando Fátima foi aprovada no concurso da Polícia Civil paulistana, ela não imaginava que lhe caberia missão tão árdua e desgastante. Aceitou o desafio e hoje, apoiada no conforto espiritual do Salmo 23, segue nas fileiras da Polícia Científica. Que exige que ela preste imensa atenção em cada detalhe.
A dupla de diretores, que realiza trilogia sobre profissionais que trabalham em cenários ligados à morte, acompanhou um plantão noturno de Fátima pelas ruas da maior cidade da América do Sul. Depararam-se com situações terríveis. Uma delas, tinha um suicida como objeto do trabalho da perita. Sem apelar, jamais, ao sensacionalismo e a imagens gráficas de corpos mortos, eles resolveram conversar com Fátima fora da correria do plantão. Saber o que ela tinha a dizer sobre aqueles que davam cabo à própria vida.
Fátima contou a eles que, antes, “eram raros os casos de suicídio”, mas que “tal ocorrência vem aumentando muito”. E que “a maioria dos suicidas é composta de pessoas do sexo masculino”. Talvez, supõe a perita, “as mulheres, por falarem mais”, não sejam induzidas a apelar a esse recurso extremo.
A solidão e a pobreza da cidade grande saltaram à vista da perita criminal e dos cineastas. Por isso, “fizemos questão de usar drone para mostrar multidões na metrópole”, em contraste “com a solidão de tantos que vivem sem ninguém para confortá-los”. Uma mulher — exemplificaram —“foi localizada sete dias após sua morte. Sozinha. Ao fundo, uma TV ligada por sete dias seguidos”.
“Salmo 23” é o segundo filme da trilogia da morte concebida pela dupla. O primeiro, a ficção “Barqueiro”, registrou outro profissional que atua a serviço da Polícia Civil, buscando, de barco, corpos daqueles que morreram em lugares onde o acesso só se dá por via fluvial. O tema do fecho da trilogia ainda está em estudos.
A animação “Eu Sou um Pastor Alemão” constrói-se como descolada comédia inspirada em quadrinhos de Murilo Martins. Com sotaque hilário-germânico, o ator Mateus Solano dá voz ao cão pastor. Ele avisa que, graças à sua “formidável capacidade de aprendizado, lealdade e versatilidade”, tornou-se “responsável por zelar pela segurança desse rebanho (composto de dezenas de ovelhas)”. Mas, “infelizmente, hoje, não trago notícias auspiciosas”.
O que se verá dali em diante é o confronto do pastor alemão com uma ovelha questionadora (voz de Enrique Diaz), uma ovelha caipira (voz de Ângelo Antônio) e com a descolada Odara (voz de Alice Braga). O desenho é singelo e os 15 minutos da narrativa prendem a atenção do público.
A ficção queer, de tom afirmativo, “Tiramisù” (o realizador adotou intencionalmente a grafia italiana) se passa no interior do Ceará, onde vivem a travesti Rio (Rafa Barbosa) e sua amiga Cláudia (Flávia Morays). Rio, que é cantora, sonha partir, conhecer novos mundos, mesmo que para tanto tenha que deixar Evângelo (Wallyson Nascimento), um jovem amoroso e apaixonado por ela. Já Cláudia quer permanecer na cidade e ser eleita vereadora queer. Rio não sabe andar de bicicleta. Vai aprender. O filme ignora os preconceitos verificados em conservadoras cidades interioranas, pois sua intenção é construir-se como uma fantasia em diálogo com o melodrama.
Pingback: news-1731537956525-2711 – News Conect Inteligencia Digital