“Apocalipse nos Trópicos”, de Petra Costa, e “La Cocina”, de Ruízpalacios, triunfam no Festival de Havana
Por Maria do Rosário Caetano
“Apocalipse nos Trópicos” (foto), de Petra Costa, foi escolhido o melhor longa-metragem documental pelo júri da quadragésima-quinta edição do Festival do Novo Cinema Latino-Americano de Havana.
O filme coloca, para reflexão do público, questão de grande importância no Brasil contemporâneo: “Quando uma democracia termina e uma teocracia começa?”
A partir dessa indagação, a mineira Petra Costa, de 41 anos, diretora do insurgente “Democracia em Vertigem”, investiga o crescente controle exercido por lideranças evangélicas na político-partidária brasileira.
Com habilidade, a cineasta ouve alguns dos principais líderes políticos brasileiros, incluindo o presidente Lula, o ex-presidente Bolsonaro e pastores evangélicos, com destaque para o exibido e retórico Silas Malafaia.
A cineasta mostra, em seu quarto longa-metragem (ela já triunfara em Havana com “Elena”), o papel crucial que setores fundamentalistas passaram a desempenhar na política brasileira, em especial no Congresso Nacional, respaldados em numerosa Bancada da Bíblia.
A intenção de Petra em revelar o que ela chama de ‘teologia apocalíptica’ se cumpre de forma satisfatória e mobilizadora neste filme que a tem, mais uma vez, como voz subjetiva-condutora.
No campo da ficção, o México triunfou com o poderoso “La Cocina”, de Alfonso Ruízpalacios. Embora filmado nos EUA (em inglês e espanhol), o filme é mexicano até a medula. Seu protagonista, o imigrante Pedro (Raul Briones), trabalha no restaurante The Grill, na Manhattan nova-iorquina. Certa manhã, o proprietário Rashid, que prometera ajudar o encrenqueiro e sonhador Pedro a legalizar sua permanência nos EUA, depara-se com subtração de grana do caixa.
Todos os cozinheiros, imigrantes e sem documentos, são investigados. Pedro torna-se o principal suspeito. Apaixonado pela garçonete Julia (Rooney Mara), jovem instável em seus relacionamentos afetivos, ele vê sua vida posta em total desalinho.
Revelação chocante sobre a amada Julia desestabilizará, ainda mais, o já transtornado Pedro. E deslanchará ato que interromperá a linha de produção de uma das cozinhas mais movimentadas da grande metrópole norte-americana.
Prêmio merecidíssimo o de “La Cocina”, pois Ruízpalacios construiu, ao longo de 2h19’, em preto-e-branco (imagens de Juan Pablo Ramirez, premiado em Havana), um belo e complexo retrato da situação dos imigrantes ilegais nos EUA. Eles constituem mão-de-obra necessária e essencial, mas são explorados em sua vulnerabilidade laboral-jurídica. Mas não há espaço para o ‘coitadismo’ no filme. O Pedro de Raul Briones não abaixa a cabeça, não dobra a espinha.
“La Cocina” baseia-se na peça teatral “The Kitchen”, de Arnold Wesker. Foi exibido na competição oficial do Festival de Berlim e, com sucesso, na Mostra Internacional de São Paulo.
O outro grande destaque da competição ficcional cubana foi o argentino “El Jockey”, de Luís Ortega. Indicado ao Oscar de melhor longa internacional pela bicampeã Argentina (vencedora com “A História Oficial”, de Luiz Puenzo, e “O Segredo dos seus Olhos”, de Campanella), o novo filme de Ortega, do arrasa-quarteirão “O Anjo”, soma gêneros como a comédia, o drama, o suspense e os esportes, já que seu protagonista, Remo Manfredini (Nahuel Pérez Biscaia, do atordoante “120 Batimentos por Minuto”) é um jóquei de renome, lendário. Um vencedor, porém, de comportamento autodestrutivo, cujas atitudes impensadas começam a cobrar seu preço. E a ofuscar seu talento. Para complicar, seu namoro com Abril (o torpedo espanhol Úrsula Corberó) entra em crise.
O longa causou entusiasmo na crítica argentina por reconduzir Ortega à seara das produções mais arriscadas, depois do grande êxito de bilheteria com o thriller criminal “O Anjo” (2018). Para completar o elenco — Nahuel e Úrsula receberam o Coral de melhor ator e atriz —, Ortega escalou intérprete mexicano de primeira linha, Daniel Jiménez Cacho (“Profundo Carmesi”), que interpreta Sirena, o mafioso protetor da carreira desse jóquei com a vida posta à deriva.
A Bolívia, representada pelo ótimo “El Ladrón de Perros”, de Vinko Tomicic Salinas, conquistou o Troféu Coral de melhor roteiro. Láurea justíssima, pois o diálogo criativo do cineasta-roteirista com dois clássicos do cinema italiano (“Ladrões de Bicicleta” e “Ladrão de Crianças”) resulta em tocante e rigorosa obra de características neo-realistas. Os dois protagonistas, o jovem ameríndio Franklin Aro Huasca e o veterano Alfredo Castro, astro chileno, dão um show.
O Troféu Coral de melhor opera-prima (filme de diretor estreante, não obra-prima) ficou com a Argentina. “Simón de la Montaña’, de Federico Tachella, derrotou candidatos de vários países, incluindo os brasileiros “Manas”, da pernambucana Marianna Brennand (premiada na Jornada dos Autores, em Veneza) e o amazonense “Enquanto o Céu Não me Espera”, surpreendente estreia de Christiane Garcia (que participou da seleção principal do Festival de Brasília)
A força do cinema brasileiro, esse ano, se fez notável apenas no documentário. “Apocalipse nos Trópicos” derrotou onze concorrentes vindos de diversos países da América Latina e Caribe. Os ótimos (e ficcionais) “Baby”, de Marcelo Caetano, sobre tórrido romance homoafetivo entre jovem egresso do sistema prisional e homem de meia-idade, e “Motel Destino”, versão cearense-tropical-suada-e-
O Festival de Havana, para fugir da má fama que persegue o país que o abriga — historicamente tido como homófobo —, criou prêmio destinado “a produções que abordem de maneira consequente a temática LGBTIQ+”. O vencedor, esse ano, foi “Sugar Island”, da dominicana Johanné Gómez Terrero. Registre-se que o machismo ainda viceja na ilha caribenha, independente da avançadíssima legislação aprovada pelo governo.
Ano passado, o Brasil triunfou na categoria longa de animação, com “Placa Mãe”, do mineiro Igor Bastos. Mas esse ano, passou em branco, pois o vencedor foi o representante da República Dominicana “Olivia y las Nubes”, de Tomas Pichardo-Espaillat. No terreno do curta-metragem, ganhou Prêmio Especial com “A Menina e o Pote”, de Valentina Homem.
Cuba, que já brilhou em outros tempos, vive momento de imensas dificuldades financeiras e cinematográficas. Só conquistou prêmios sem grande peso: Prêmio Especial para “Fenómenos Naturales”, de Marcos Días Sosa; melhor roteiro inédito para “Tengo una Hija em Harvard”, de Arturo Soto, e melhor cartaz, por “Los Océanos Son los Verdaderos Continentes”, de Edel Rodríguez Mola. Nunca é demais lembrar que as artes gráficas cubanas, em especial a dos cartazes, é realmente de alta qualidade.
Confira os vencedores:
Longa documentário
. “Apocalipse nos Trópicos’ (Brasil), de Petra Costa – melhor longa-metragem documental
. “Alma del Desierto”, de Mónica Taboada (Colômbia) – Trofeu Coral Arrecife para filme de temática LGBTIQ+
. “Tierra Encima”, de Sebastián Duque (Colômbia) – melhor curta ou média-metragem documental
Longa-metragem de ficção
. “La Cocina”, de Alonso Ruízpalacios – melhor filme, fotografia, montagem, som, Prêmio Fipresci
. “El Jockey”, de Luís Ortega (Argentina) – melhor direção, atriz (Ursula Corberó), ator (Nahuel Pérez Biscayart), direção de arte
. “El Ladrón de Perros”, de Vino Tomicic Salinas (Bolívia) – melhor roteiro (Vino Tomicic Salinas)
. “Pepe”, de Nelson de los Santos Arias (República Dominicana) – Prêmio Especial do Júri
. “Sugar Island”, de Johanné Gómez Terrero (República Dominicana) – melhor contribuição artística
. ‘La Invención de las Especies’, de Tânia Hermida (Equador) – melhor trilha sonora (Ulises Hernández)
. ‘“Simón de la Montaña”, de Federico Tachella (Argentina) – melhor ópera prima (filme de diretor estreante)
. “Sujo, Hijo de Sicário”, de Fernando Valadez e Astrid Romero (México) – Prêmio Signis, do Ofício Católico Internacional, e Prêmio Don Quijote, da Federação de Cineclubes
. “Fieras”, de Andrés Felipe Ángel (Colômbia) – melhor curta ou media-metragem ficcional
. “Amarela”, de André Saito (Brasil) – Prêmio Especial do Júri de curta-metragem ficcional
Longa e curta de animação
. ‘Olivia y las Nubes”, de Tomas Pichardo-Espaillat (República Dominicana) – melhor longa
. “Avel”, de Daniel Marín (Argentina) – melhor curta animado
. “A Menina e o Pote”, de Valentina Homem (Brasil) – Prêmio Especial do Júri de curta de animação
Mostra Outros Territórios
.”Homofobia”, de Goyo Anchou (Argentina) – melhor filme
. “La Noche del Minotauro”, de Juliana Zuluaga (Colômbia)
Outros prêmios
. ”Machado’, de Julián Tagle (Argentina) – prêmio de pós-produção
. “Los Océanos son los Verdaderos Continentes”, de Edel Rodríguez Mola – melhor cartaz
. “Tengo Una Hija em Harvard”, de Arturo Soto (Cuba) – melhor roteiro inédito (Prêmio SGAE – Sociedad General de Autores y Editores de España)
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