Biscoitos finos como “Ervas Secas”, “As Bestas”, “Camponeses” e “Kneecap” movimentam as plataformas de streaming

Foto: “Ervas Secas”, de Nuri Bilge Ceylan

Por Maria do Rosário Caetano

As férias escolares ou profissionais nos motivam a garimpar, no streaming, o que deixamos de assistir ao longo do ano. Ou, quem sabe, rever filmes (até séries!) que continuam estimulando nossa sensibilidade.

A temporada do Oscar e, também, do Goya, Bafta e César, gera tamanho acúmulo de títulos, que falta a muitos deles espaço no circuito exibidor. Por isso, muitos vão direto para as plataformas de streaming. Caso do senegalês “Dahomey”, do irlandês “Kneecap, Música e Liberdade” e da animação polonesa “Camponeses”. Estes três títulos estão na lista de possíveis candidatos ao Oscar, que será conhecida nesse domingo, 19 de janeiro (dois dias depois do previsto, devido aos incêndios que atormentam a população de Los Angeles, na Califórnia).

O cardápio do streaming, se bem garimpado, mostrará ricas opções. Algumas delas abarcam filmes que mereceram destaque em muitas listas de “melhores de 2024” – como “Ervas Secas”, “As Bestas” e “O Sequestro do Papa”. Estes três são, mesmo, imperdíveis.

Há, também, ótimas opções de filmes brasileiros, embora muitas de nossas produções continuem ausentes das plataformas. Nesse momento em que “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, e “O Auto da Compadecida 2”, de Guel Arraes e Flávia Lacerda, levam milhões de espectadores aos cinemas, vale destacar títulos de público modesto, mas muito elogiados pela crítica e por quem conseguiu vê-los no restrito circuito de arte. Destaque para dois documentários obrigatórios – “Antonio Candido, Anotações Finais”, de Eduardo Escorel, e “Bem-Vindos de Novo”, de Marcos Yoshi.

No terreno da ficção, há que se chamar atenção para um pequeno filme carioca, feito quase sem dinheiro (e, pondere-se, de nome pouco inspirado!) – “Mundo Novo”. Seu diretor, Álvaro Campos, um dos roteiristas da badalada série “Senna”, poderia ter motivado futuros espectadores se tivesse batizado sua estreia (na ficção) como “As Camélias do Leblon”. Há quem assegure que filme que traz, no título, nome de cidades (ou bairros) conhecidos, atrai atenções. O que importa é que “Mundo Novo” conseguiu espaço numa plataforma de streaming, a Filmica.

“Mundo Novo”, de Álvaro Campos

No campo das séries, vale destacar quatro títulos que merecem ser vistos. Um deles, “A Amiga Genial”, é uma recriação audiovisual da “Tetralogia de Nápoles”, da escritora Elena Ferrante. Embora não tenha alcançado a mesma repercussão dos livros, fenômeno planetário, as quatro temporadas de “My Brilliant Friend” (plataformas utilizam nomes em inglês, mesmo que a série fale outro idioma), merece ser vista e revista, tamanhas são suas qualidades.

A monumental “Senna”, com o guapíssimo Gabriel Leone, faz por merecer a imensa badalação que a cercou. É muito bem filmada e, mesmo sendo uma superprodução milionária, não perdeu a alma. Retrata o obsessivo Ayrton Senna da Silva como um personagem trágico.

Mais duas opções – a britânica “A Vida de Philomena Cunk” e a brasileira “O Negro no Cinema Brasileiro” – podem agradar. A primeira é indicada aos que apreciam materiais ‘fora da caixinha’. No caso, uma repórter investigativa, muito da sem noção, que faz perguntas inusitadas a seus entrevistados. Do tipo: “Por que o David, de Michelangelo, não tem ânus?”. Sim, aquele orifício que expele o que a boca ingere.

Já a série documental de Gustavo Acioly, lançada pela HBO (e agora disponibilizada na Globoplay), mesmo realizada em 2017, não envelheceu. Nos permite, guiados por ideias contidas no livro “O Negro no Futebol Brasileiro”, de Mário Filho, refletir sobre a discriminação sofrida por grandes jogadores, verdadeiras glórias dessa “pátria de chuteiras” chamada Brasil.

Confiram, pois, quase duas dezenas de longas-metragens, a maioria vinda de “outras geografias” (nenhum blockbuster, daqueles que simbolicamente arrasam quarteirões!). E quatro séries (duas ficções, um ‘mockumentary’ e um documentário de formato clássico) retiradas do oceano de imagens oferecido pelas plataformas digitais.

Longas-metragens:

. “Ervas Secas”, de Nuri Bilge Ceylan (Turquia, 2024, 197 minutos)

Mais uma obra-prima do realizador turco, de 65 anos, sem dúvida um dos mais importantes de nosso tempo. Seus dramas (em especial “Era Uma Vez na Anatólia”, “Sono de Inverno”, Palma de Ouro em Cannes, e “A Árvore dos Frutos Selvagens”) são de longuíssima duração porque têm muito a dizer. Ceylan escolheu, para protagonizar “Ervas Secas”, mais um intelectual em crise, o professor Samet. Ele desempenha serviço obrigatório (como professor de Arte) num vilarejo remoto da Anatólia (espaço preferencial do cineasta). Regras do sistema educacional do país asiático obrigam Samet a permanecer no local por quatro anos. Ele aguarda o término de seu desterro naquele fim de mundo coberto de espessas camadas de neve. E, por consequência, seu regresso à cosmopolita Istambul. Para amenizar seus dias tediosos, ele passará a desfrutar da companhia da professora Nuray, bela e inteligente (ela manca, como a ‘Bovarinha’ de Manoel de Oliveira). Tal deficiência é resultado de ferimento causado por explosão de bomba durante manifestação política. Samet, que divide modesta moradia com outro professor, será acusado de ter mantido contato inadequado com uma aluna. Esse fato poderá complicar seus planos de deixar o sombrio vilarejo. Merve Dizdar, que interpreta a professora Nuray, ganhou, em Cannes, a Palma de Ouro de melhor atriz. O filme está disponível no Telecine Play.

. “As Bestas”, de Rodrigo Sorogoyen (Espanha-França, 2023, 137 minutos)

Um dos melhores filmes espanhois realizados na última década. Vencedor dos principais prêmios Goya, ano passado, e detentor do César de melhor longa estrangeiro, o filme, rodado na Galícia espanhola, constrói-se como drama marcado pelo suspense. Já em sua sequência de abertura, assistimos a um verdadeiro “balé de corpos”. Cavalos selvagens são contidos por homens de músculos fortes. Depois, conheceremos os protagonistas: um casal francês, que levou para vilarejo habitado por homens brutos procedimentos tidos como indesejáveis. Querem viver, com seus hábitos cosmopolitas, da agricultura orgânica. Só que uma empresa se propõe a comprar terras na região, para ali implantar turbinas eólicas. O casal vindo de fora (Denis Menochet e Marina Foïs) resiste. Não venderá suas terras. A dupla já causava desgostos, em especial, a pai e filho (Luis Zahera, um ator formidável, e Diego Anido). Estes decidem, então, tomar as providências que julgam cabíveis. O que se verá é surpreendente, de intensa atmosfera sensorial. Obra filmada por um mestre (embora Sorogoyen tenha apenas 43 anos e assine poucos filmes e uma ou outra série). Vale lembrar que esse longa-metragem espanhol tem parentesco com outro filme surpreendente e igualmente atmosférico – o francês “A Noite do Dia 12”, de Dominik Moll. Ambos, infelizmente, não alcançaram o público que mereciam no Brasil. Hora de recuperar os dois no streaming. “As Bestas” está disponível na Apple TV, Prime Video e Telecine Play. Porém, “A Noite do Dia 12” ainda encontra-se fora de alcance (André Sturm, que o lançou nos cinemas, não detém os direitos para streaming).

. “O Sequestro do Papa”, de Marco Bellocchio (Itália, 2024, 135 minutos)

Bellocchio, nunca é demais lembrar, é um dos maiores cineastas do mundo. Aos 85 anos, ao invés de realizar filmes sem o vigor da juventude, ele só faz nos surpreender. Duas de suas realizações da maturidade são obras-primas (“Vincere” e “Bom Dia, Noite”). “O Sequestro do Papa”, traiçoeira “recriação” brasileira do título original (“Rapito”, raptado), não chega a ser uma obra-prima. Mas resulta em filme obrigatório, tamanha a maestria narrativa do Signore Bellocchio. O projeto passou até pelas mãos de Steven Spielberg, que, se o realizasse, o faria em inglês. A história, porém, se passa na Bologna italiana. Em 1858, deu-se o chamado “Caso Mortara”. A Igreja, comandada pelo Papa Pio IX, sequestrou o menino Edgardo Mortara, de origem judia. Ele vivia com seus pais e irmãos. Doentinho, foi levado, às escondidas, por sua babá a uma igreja, onde foi batizado. Em nome deste sacramento, o alto Clero julgou-se no direito de arrancar a criança dos pais judeus-italianos. O que em mãos menos qualificadas poderia resultar em mais um melodrama, nos chega estruturado como um drama histórico-social, com lances de suspense. Bellocchio dá ao espectador o direito de julgar a ação da Igreja, que catequizou o jovem Mortara, a ponto de transformá-lo num integrante de sua alta hierarquia. Disponível no Prime Video e Apple TV.

. “Antonio Candido, Anotações Finais”, de Eduardo Escorel (Brasil, 2024, 87 minutos)

© Ana Luisa Escorel

Longa documental de altíssima qualidade. Eduardo Escorel, montador de “Terra em Transe”, “Macunaíma” e “Cabra Marcado para Morrer”, dá voz ao sociólogo, crítico literário e professor da USP, Antonio Candido (1918-2017). Como Machado de Assis, em “Memórias Póstuma de Brás Cuba”, essa voz pertence a um defunto-autor. E quem a enuncia é o aliciante Matheus Nachtergaele. O filme nos revelará o que Candido escreveu em dois dos 74 cadernos de anotações que produziu ao longa de décadas, compilando reflexões de grande sabedoria, muitas delas ilustradas com recortes tirados de páginas de jornais ou revistas. Os dois “Cadernos” escolhidos são os mais recentes, aqueles que trazem anotações feitas em seus anos derradeiros (2015 a 2017). Anos em que a política brasileira fervia e circulava em torno do impeachment de Dilma Roussef. Além de evocar cancões que o encantavam (como a jocosa “Mata, que Diós Perdona”), Candido lembrará obras literárias, verdadeiros esteios artístico-intelectuais do eterno leitor que ele foi (em especial, o cataclisma “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa). Quem se interessa pelo Brasil e por seus desafios não pode perder esse documentário. Disponível nas plataformas Claro TV+ e Vivo Play.

. “Bem-Vindos de Novo”, de Marcos Yoshi (Brasil, 2023, 105 minutos)

Outro longa documental feito com criatividade e nenhuma concessão. A narrativa traz distanciamento crítico similar ao de “Malu”, obra ficcional de Pedro Freire (ainda não disponível no streaming, mas em cartaz nos cinemas). Formado em cinema pela USP, Yoshi revive momentos difíceis (e alguns felizes, principalmente com a avó) de sua família. Em especial, os protagonizados por seus pais, os descendentes de japoneses Yayoko e Roberto Yoshisaki. No alvorecer do século 21, justo na virada do milênio, o casal migrou para o Japão, em busca de vida melhor. Seus três filhos ficaram no Brasil com a avó. O casal retornou 13 anos depois. A família reiniciou processo de complexa reconstrução afetiva. O filho-cineasta documentou muitos desses momentos, por mais dolorosos que fossem. Yoshi é, ele mesmo, um dos personagens desse documentário que se debate entre os desafios econômicos (a necessidade de garantir sustento ao núcleo familiar) e afetivos (o desejo de manter pais e filhos próximos). Disponível no Filmica.

. “Mundo Novo”, de Álvaro Campos (Brasil, 2024, 84 minutos)

Um filme surpreendente, realizado em preto-e-branco, com poucos recursos financeiros. Seu nome não revela muito de seus propósitos. Seria melhor se evocasse “As Camélias do Leblon”, citadas em composição musical de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que ouvimos no fecho da narrativa. No tempo da escravidão, abolicionistas reuniam-se no quilombo do Leblon (hoje bairro afortunado do Rio de Janeiro) para lutar pela libertação dos escravizados. E se faziam identificar por camélia colocada na lapela do paletó. O filme, um drama familiar, se passa, em sua quase totalidade, em aprazível casarão, construído numa escarpa do Morro do Vidigal. Nele vive o casal homoafetivo Charles e Carlos. O primeiro trabalha no mercado financeiro, o segundo é livreiro. Eles recebem Marcelo, nome civil do grafiteiro Presto, de 23 anos, e sua namorada Conceição, advogada afro-brasileira, para jantar. Os visitantes solicitarão a Charles que ele se torne avalista da compra de apartamento (no Leblon), já em vias de concretização. “Mundo Novo” participou da Mostra SP e da Première Brasil, no Festival do Rio, em 2021 (ganhou o Troféu Redentor de melhor atriz, para Tati Vilella, que interpreta a advogada especialista em causas portuárias), e melhor roteiro, do próprio Álvaro Campos (aliás, um dos roteiristas da série “Senna”). Disponível na Apple TV.

. “Camponeses”, de Dorota Kobiela e Hugh Welchman (Polônia, 2024, 115 minutos)

Esta animação, da mesma dupla que dirigiu o belíssimo “Com Amor, Van Gogh” (2017), chega para extasiar nossos olhos. Baseado em romance de Vladyslaw Reymont, Prêmio Nobel de 1924, “Camponeses” foi feito em processo de rotoscopia (atores são filmados e depois recriados como desenhos-pinturas). Derrotou produções live action (inclusive um filme de Agnieska Holland) e tornou-se o indicado da Polônia ao Oscar de melhor filme internacional. Não figura entre os 15 pré-selecionados, mas seus produtores acreditam que terão chance na categoria “longa de animação”. Mas isso só acontecerá se a Academia de Hollywood optar por um filme adulto, de roteiro denso, em detrimento de tramas simplificadas e poder de sedução massiva de estilo Disney. “Camponeses” traça retrato realista daqueles que viviam na zona rural polonesa, no século XIX, sob os rigores do patriarcalismo. A linda Jagna, jovem de origem humilde, apaixona-se pelo filho do agricultor mais rico do vilarejo e é correspondida. Ele é casado. Mesmo assim, os dois experimentam os prazeres de um amor ardente. Mas o patriarca, viúvo, decide desposar a jovem “nora”. A mãe da moça aprova o matrimônio, por acreditar que garantirá futuro melhor à filha. Além do foco no amor e no sexo, “Camponeses” desenha vigoroso retrato da Polônia rural no final dos anos 1800. Disponível na Prime Video, Max e Apple TV.

. “Dahomey”, de Mati Diop (Senegal, França, 2024, 70 minutos)

Um dos documentários mais festejados de 2024. Venceu o Festival de Berlim e rendeu à sua realizadora, Mati Diop, o Prêmio Eye de melhor direção (o filme vencedor foi o palestino-israelense “No Other Land”, ainda não disponível no streaming). Mati Diop registra a devolução, pela França contemporânea, de 26 relíquias do Reino de Daomé (daí o título). Tais relíquias haviam sido saqueadas por tropas coloniais francesas, no final do século XIX. Como compreender essa tardia devolução? O que significa o retorno desses objetos ancestrais? Uma das estátuas dará voz subjetiva ao filme. Entre os muitos méritos da narrativa, um se destaca e nos cativa: a ótima edição que a jovem diretora (também atriz) realiza de debates com estudantes da Universidade de Abomey-Calavi. O que poderia resultar, cinematograficamente, em falação e dispersão acaba resultando em discussão polifônica e enriquecedora. O filme deve ser um dos finalistas a melhor longa documental no Oscar 2025. E não nos esqueçamos que ele é, também, um dos 15 finalistas a melhor longa internacional. Disponível na Mubi.

. “Kneecap, Música e Liberdade”, de Rich Peppiatt (Irlanda, 2024, 110 minutos)

Um filme muito doidão, aparentado com “Trainspotting” (Danny Boyle, 1996). No elenco, um irreconhecível Michael Fassbender (“Shame”), no papel do pai de dois integrantes da alucinada banda de hip-hop que batiza (e protagoniza) a trama. No dicionário, “kneecap” quer dizer patela, nome com o qual era identificada a rótula (osso da frente do joelho). Como a patela é responsável pela conexão que dá força à musculatura da coxa, pode ser que sirva de metáfora ao vigor da banda irlandesa. Banda que tem existência real e agita a vida musical de Belfast. E, ainda por cima, luta com pulsão aguerrida em defesa do idioma gaélico. Registre-se que tal idioma é falado por 40% dos insubmissos irlandeses. Os outros 60% já adotaram o inglês (do colonizador) como língua nacional. Desbocado e irreverente, o trio forma-se com dois irmãos (Liam e Naoise Ó Cairealláin), autodefinidos como “lixos humanos”, e o professor JJ Ó Dochartaigh (DJ Próvai). O professor esconde-se atrás de balaclava estampada com a bandeira da Irlanda livre. Mascarado, ele evita ser reconhecido pela comunidade de pais e alunos, como ele, habitantes da capital da Irlanda do Norte. Juntos, os três farão shows incendiários e temperados com versos recheados de gírias, palavrões e palavras de ordem aliciadoras. O filme começou sua apoteótica carreira no Festival Sundance de 2024. Fez imenso sucesso entre jovens de todo o Reino Unido. Acabou indicado ao Oscar de melhor filme internacional (por ter o gaélico como meio de expressão) e passou pela primeira peneira (está entre os 15 pré-selecionados). Há quem acredite que “Kneecap” tirou o favoritismo do italiano “Vermiglio”, de Maura Delpero, e que, por isso, pode ocupar a quinta vaga (junto com “Emilia Pérez”, “Ainda Estou Aqui”, “A Semente do Fruto Sagrado” e “Flow” – ou “Dahomey”). Disponível na Prime Video, Claro TV e Apple TV.

. “O Paraíso Deve Ser Aqui”, de Elia Suleiman (Palestina, 2019 , 97 minutos), “Uma Noite Sem Saber Nada”, de Payal Kapadia (Índia, 2021, 99 minutos), e “Meu Nome é Alfred Hitchcock”, de Mark Cousins (Escócia-Irlanda-Inglaterra, 2022, 120 minutos)

“O Paraíso Deve Ser Aqui”, de Elia Suleiman

Esses três filmes, uma ficção e dois documentários, integram a excelente programação do Sesc Cinema em Casa, serviço de streaming gratuito, mantido pelo Serviço Social do Comércio de São Paulo. Além de ser gratuita, a plataforma destaca-se por facilitar o acesso do usuário, já que feita sem nenhuma burocracia. A intenção é facilitar a difusão do melhor cinema do mundo. O longa de Suleiman, palestino dotado de fino humor, soma drama e comédia para nos mostrar o protagonista (o próprio Suleiman) encontrando, em Paris ou NY, os mesmos problemas vividos em sua terra palestina (o filme, claro, foi realizado antes da guerra que Israel move contra o “país” vizinho). “Uma Noite Sem Saber Nada” é o primeiro longa-metragem da indiana Payal Kapadia, de 39 anos. Estrutura-se sobre base documental, mas traz inserções ficcionais e de suspense. A cineasta indiana acaba de concorrer ao Globo de Ouro de melhor direção (e melhor filme de língua não-inglesa) com seu festejadíssimo segundo longa – o ficcional “Tudo que Imaginamos como Luz”. E pode aparecer em alguma categoria do Oscar (menos filme internacional, pois a Academia indiana preferiu outro filme, que nem entrou na lista de 15 pré-finalistas). Do prolífico e apaixonante Mark Cousin, grande homenageado do Festival é Tudo Verdade, ano passado, o Sesc Cinema em Casa está exibindo o ótimo documentário que ele dedicou a Alfred Hitchcock. Os cinéfilos vão adorar.

. “Não Fale o Mal”, de Christian Tafdrup (Dinamarca, 2024, 98 minutos)

Quem aprecia o cinema de horror e suspense não pode perder esse filme norueguês, que ganhou remake norte-americano (concluído com final menos perturbador, portanto apaziguador). O filme original é destinado a quem tem nervos de aço. Não se arrisque a assisti-lo tarde da noite, nem sozinho, pois Tafdrup constrói narrativa das mais angustiantes. Daquelas que tiram o sono. Não recorre a sustos, nem trilha-shock. Nada é explícito ou tonitruante. O encontro de dois casais, um dinamarquês, que aceita passar férias com um casal holandês, numa casa de campo, vai causar calafrios em quem não está acostumado com filmes de terror. Um elenco formidável (e pouco conhecido entre nós), diálogos enxutos e montagem eletrizante nos farão concluir, depois que atravessarmos 98 minutos de tensão, que Christian Tafdrup é um cineasta diferenciado, ousado, provocador. Disponível na Reserva Imovision.

. “A Menina e o Dragão”, de Salvador Shimó e Li Jianping (Espanha-China, 2024, 100 minutos)

Animação de imensa beleza, realizada por Shimó, do obrigatório “Buñuel no Labirinto das Tartarugas”, em parceria com o chinês Li Jianping. O filme, lançado comercialmente no Brasil, conta a história de uma orfã, a inocente Ping, que procura pelos últimos dragões imperiais. Apenas dois teriam restado sobre a Terra. Tudo se passa na China de tempos ancestrais. A garotinha descobre que um dos dragões morreu e o outro está zelando, com todas as suas forças, pelo último ovo capaz de preservar a “espécie”. Ela acabará fazendo amizade com o dragão-sobrevivente (chamado Long Danzi). Juntos, eles enfrentarão os exércitos do imperador e, também, forças malignas. O desenho é de rara altíssima qualidade técnica e artística, mas a trama poderia ser condensada em tempo menor para mobilizar as crianças e amantes de fantasias cinematográficas. Disponível na Apple TV e Prime Video.

. Safra Russo-Soviética (no Belas Artes à La Carte)

“O Fim de São Petersburgo”, de Vsevolod Pudovkin e Mikhail Doller

A programação do serviço de streaming do Belas Artes-Pandora, circuito de exibição e distribuidora comandados por André Sturm, baseia-se na diversidade de origens geográficas dos filmes escolhidos. E, também, no interesse por produções do passado (remoto ou mais recente). Nesse mês de janeiro, o Belas Artes à la Carte lança mais três títulos soviéticos, que chegam para somar-se ao mais atrativo dos títulos russos já disponíveis na plataforma  (“Vá e Veja”, de Elem Klimov, 1984). São eles: “O Fim de São Petersburgo”, de Vsevolod Pudovkin e Mikhail Doller (URSS, 1927, 64 minutos), e “Encontro no Elba”, de Grigori Aleksandrov (URSS, 1949, 99 minutos). Nunca é demais lembrar que Aleksandrov trabalhou com Eisenstein desde “A Greve” (1924) até “Que Viva México” (1931), filme inacabado, ao qual ele daria montagem póstuma (na década de 1970).  A ficção assinada por Pudovin conta a história de um camponês que chega a São Petersburgo em busca de trabalho. Involuntariamente, ele ajudará a encarcerar um velho amigo, líder trabalhista. “O Fim de São Petersburgo” integra a “trilogia revolucionária” do cineasta da Vanguarda Russa (com “Mãe”, de 1926, e “Tempestade na Ásia”, de 1928). Já o longa de Aleksandrov, um drama de guerra, desenvolve-se após o histórico encontro de abril de 1945, entre tropas aliadas dos EUA e da URSS, no Rio Elba. E jogará seu foco sobre a Alemanha derrotada, onde os grandes vencedores norte-americanos irão reconfigurar suas parcerias. Ou seja, afastar-se cada vez mais dos aliados soviéticos. E, assim, iniciar processo que transformaria a Alemanha Ocidental em uma de suas principais aliadas. Estes títulos já estão disponíveis. Um terceiro longa-metragem – “Essa Doce Palavra Chamada Liberdade” (de Vytautas Zalakevicius, 1972, 162 minutos) – constitui-se como uma exótica curiosidade. Afinal, trata-se de obra soviética realizada para apoiar o Chile, então dirigido pela Unidade Popular de Allende e acossado por forças golpistas. O resultado não esconde as condições excepcionais de realização do filme (idioma russo e atores eslavos se passando por povo latino-americano). A partir do dia 23 de janeiro, o Belas Artes à la Carte vai disponibilizar um longa-metragem pouco conhecido de Fritz Lang – “A Gardênia Azul” (EUA, 1953, 90 minutos). O cineasta, um dos gênios do Expressionismo Alemão (“Metropolis”, 1927, “M, o Vampiro de Dusseldorf”, 1931) já não gozava do prestígio de outrora. Queria Dona Andrews como protagonista. Não conseguiu. Tentou Joan Fontaine, Margareth Sullivan e outras estrelas, mas nenhuma aceitou o papel. Coube a Anne Baxter interpretar, nesse drama noir, telefonista, que acaba embriagada e à mercê de um canalha em seu apartamento. Na manhã seguinte, ao acordar de ressaca, ela será tomada por medo terrível – teria cometido um assassinato?

. “Paisagens do Fim”, de Carlos Alberto Mattos (Brasil, 2024, 110 minutos)

Longa documental, de narrativa ensaística, sobre filmes de ficção que utilizaram locações (paisagens) afetadas por catástrofes. Até chegar ao tempo atual, o crítico e documentarista baiano-carioca, autor de “Jurandyr Noronha – Tesouros Quase Perdidos” (2010) e “Taiguara – Onde Andará teu Sabiá?” (2022) – volta aos primórdios do cinema (à fase silenciosa) e resgata, com fina sensibilidade, imagens poderosas. E dá destaque especial aos filmes que Roberto Rossellini realizou nos escombros da Segunda Guerra Mundial – “Paisá” e “Alemanha Ano Zero”. E, finalmente, chegará a seu objetivo. Mostrar paisagens convulsionadas por mega-empreendimentos hidrelétricos, como o de Três Gargantas, na China, cenário da obra-prima de Jia Zhang-Ke (“Still Life – Em Busca da Vida”) e ao rompimento de barragens em Minas Gerais, na região de Mariana, que matou centenas de brasileiros e carreou lama tóxica para o Rio Doce. Como bem observou o documentarista João Moreira Salles, Mattos nos traz “assunto fascinante, pesquisa extraordinária”. O filme é indicado, particularmente, a estudantes universitários e cinéfilos”. Acessível no Vimeo.

Séries ficcionais e documentais:

. “A Amiga Genial”

A Tetralogia Napolitana da misteriosa escritora Elena Ferrante deu origem a uma das séries mais apaixonantes da história do audiovisual europeu e mundial. Produzida pela Itália (falada em italiano e no dialeto napolitano), a série soma quatro temporadas. A primeira foi de tirar o fôlego. Os mais politizados se apaixonarão pela segunda. A terceira e quarta mantiveram o padrão. Mas, há que se repetir, igual à primeira e à segunda, impossível. Não vemos o tempo passar, nos apaixonamos pelos personagens e por seus intérpretes. Queremos que os episódios não terminem, embora estejamos loucos para conhecer seus desfechos. O primeiro livro da Tetralogia de Elena Ferrante foi eleito “o melhor romance do século XXI” pelos leitores do New York Times (mesmo faltando 75 anos para o término do século!). Sinal de que os leitores do poderoso jornal acreditam que, dificilmente, algo tão apaixonante e aliciante surgirá até o final 2100. A última temporada (a quarta), lançada no final do ano passado, tem magnética interpretação de uma estrela cult, a italiana Alba Rorhwacher. Ela vive Lenú, a intelectual (e escritora) que nasceu pobre em Nápoles e estabeleceu profundos laços de amizade com a rebelde Lila. Esta amiga genial marcará presença na vida de Lenú ao longo de seis décadas, que nos permitirão construir amplo painel das voltas e reviravoltas da história italiana. O foco estará voltado, essencialmente, à esfuziante e problemática Nápoles, com suas alegrias e seus graves problemas sociais. De região discriminada (os meridionais versus os do Norte rico e sofisticado) a perturbador espaço de violência comandado por grupos mafiosos. Produção Rai e HBO. Na Max.

. “A Vida por Philomena Cunk”, de Christian Watt (Inglaterra, 2022)

Série produzida pela BBC. Uma mulher (a Philomena do título, interpretada pela atriz Diane Morgan), sem papas na língua, resolve entrevistar cientistas, filósofos e grandes nomes do mundo acadêmico em busca de respostas para os significados da vida (e as idas e vindas do processo civilizatório). Sem noção, ela faz perguntas (ou observações) desconcertantes. Frente à estátua de David, de Michelangelo, observa que ele não tem ânus. Quer saber o por quê. Sobre Florença, cidade-patrimônio do Renascimento, ela assegura que os italianos insistem em chamá-la de Firenzi para esconder tamanha beleza artístico-arquitetônica da sanha dos turistas. Ao longo de cinco capítulos (de menos de 30 minutos cada), ela deixa os cientistas e filósofos atônitos. Mas todos, com elegância e sabedoria, deixam o constrangimento de lado para dar respostas sérias à desatinada entrevistadora. Tudo começa “Nos Princípios…”, na pré-História. Segue com os “Embates da Fé”. Chega ao terceiro – “O Renascimento Não Será Televisionado” (o melhor de todos) –, para desaguar nos tempos da Revolução Industrial e progresso vertiginoso da técnica (“A Rebelião das Máquinas”) e no presente – à “Guerra(s) do(s) Mundo(s)”. Disponível na Netflix.

. “O Negro no Cinema Brasileiro”, de Gustavo Acioli (Brasil, 2017, quatro capítulos de 60 minutos cada)

Inspirado no livro “O Negro no Futebol Brasileiro”, que Mário Filho, irmão do dramaturgo Nelson Rodrigues, publicou em 1947 (e republicou em 1964), Acioli registra os desafios enfrentados por atletas afro-brasileiros nos nossos gramados. Além de ler trechos de alta qualidade e poder de observação do jornalista, o cineasta ouve substantivos depoimentos de duas mulheres, Angélica Basthi e Maria Lúcia da Silva. De jogadores (como Reinaldo do Atlético Mineiro, Dadá Maravilha, Romário, Tinga, Adriano Imperador, Dida, Aranha, Cláudio Adão e Adílio) e de pesquisadores e jornalistas (Daniel Araújo, José Miguel Wisnik, João Máximo, Orlando Duarte, Paulo César Vasconcelos, Claudio Nogueira, Márcio Chagas, Marcelo Carvalho, Marcel Tonini e Mauro Betting. Um músico (Gilberto Gil), um técnico de futebol (Carlos Alberto Parreira) e um fotógrafo-produtor de cinema (Luiz Carlos Barreto) completam o escrete. Ufa! Mas que o espectador não se apavore. Não se trata de um típico “cabeças-falantes”, pois a série traz farto material visual e sedutora vinheta de imensa beleza plástica. Não cansa como os “talking heads”, que se esquecem que cinema é, antes de tudo, imagem. Disponível na Globoplay e Canal Brasil Play.

. “Senna”, de Vicente Amorim e Júlia Rezende (Brasil, 2024, seis capítulos de 60 minutos cada)

Uma das séries mais badaladas da história do audiovisual brasileiro. Bancada com grana farta pela Netflix, esta produção (da Gullane) não enfrentou nenhum perrengue para licenciar o material que quisesse, escalar o ator (ou atriz) que sonhasse ou as locações que desejasse. Nem limites para cenas adrenalina-pura, soma de ação e suspense, capaz de eletrizar até quem não tem nenhum interesse por corridas automobilísticas (meu caso). Elenco formidável – os brasileiros vão encantar-se com Gabriel Leone (bonito demais, se comparado com a estampa de Ayrton Senna da Silva, mas sempre carismático), Marco Ricca (pai do piloto), Suzana Ribeiro (a mãe) e Camila Márdila (a irmã Vivianne, em papel pequeno). Os roteiristas (entre eles Álvaro Campos, diretor do filme “Mundo Novo”) construíram trama centrada nas corridas de Fórmula 1, muito bem filmadas, sem esquecer a vida em família do ousado piloto paulistano. Além das relações com o pai e a mãe, em especial, ele será visto em sua vida amorosa, primeiro com Lilian, namorada de juventude e esposa de véu-e-grinalda, que não aguentou a dedicação obsessiva do piloto às pistas, o affair com nobre europeia (parece que Senna a levou para a cama em busca de apoio à sua carreira!), o namoro com Xuxa (bem explorado) e, finalmente, o relacionamento com Adriana Galisteu (quase ignorado pela trama). A boataria de que Senna seria assexuado (ou gay) é desconstruída pela série. O que fica claro é que ele nunca teve relações matrimoniais como prioridade em sua vida. O que queria era vencer, vencer, vencer. O Senna incorporado por Gabriel Leone alimenta-se de uma ideia: derrotar seus opositores. A “inimizade” (ou melhor, rivalidade) com Alain Prost, o astro francês, é muito bem explorada. Disponível na Netflix.

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