Entrevista: Sérgio Sá Leitão

Sérgio Sá Leitão encontrou um desafio hercúleo ao assumir o Ministério da Cultura, em julho do ano passado: o de navegar uma pasta com recursos reduzidos em meio a uma crise. Para complicar a tarefa, ainda havia o pouco tempo de mandato (“precisamos fazer quatro anos em 17 meses”, diz) e uma Ancine em transformação, com Christian de Castro subindo ao comando, depois dos 11 anos da gestão Manoel Rangel. Ciente da importância econômica e cultural do audiovisual brasileiro, o ex-secretário municipal de Cultura do Rio e ex-presidente da RioFilme chegou disposto a imprimir sua marca no setor. Deu visibilidade à Secretaria do Audiovisual (SAv), propôs cotas de gênero e raça, e se envolveu numa polêmica com o edital de 200 anos de Independência do Brasil. Em entrevista à Revista de CINEMA, ele fala de sua atuação até agora e dos próximos planos, que incluem o lançamento de uma nova safra de editais, em 30 de abril.

Revista de CINEMA – Como foi sua chegada ao Ministério? Que situação encontrou?

Sérgio Sá Leitão – A primeira coisa que eu e a equipe fizemos foi um diagnóstico e, em cima disso, uma análise para que a gente pudesse ter uma estratégia clara. Identifiquei um Ministério fragilizado do ponto de vista administrativo, com uma capacidade operacional limitada e uma grande dose de isolamento em relação ao restante do governo, ao Congresso, ao setor e à sociedade. Havia a ausência de uma carta de navegação, um plano com diretrizes, metas, indicadores, programas e ações.

Também era um Ministério muito fragmentado, com um nível baixo de sinergia entre as suas áreas. Então, procuramos enfrentar isso, tomando medidas no sentido de melhorar a gestão e também de romper o isolamento. Acho que estamos avançando.

Revista de CINEMA – Como lidar com o pouco tempo de mandato e fazer algo efetivo?

Sérgio Sá Leitão – Eu tenho dito isso desde que tomei posse: precisamos fazer quatro anos em 17 meses. É uma gestão com essa peculiaridade de ser de fim de governo. Eu e a equipe temos perseguido esse objetivo de fazer o máximo possível no tempo existente. Não estamos pensamos no ano que vem, estamos pensando em 31 de dezembro de 2018. Temos que fazer cada minuto render mais que 60 segundos. E estamos conseguindo realizar bastante. Imprimimos um dinamismo muito grande. Essa premência tem sido um fator de estímulo.

Claro que, obviamente, estamos levando em consideração o fato de ser um governo de transição e isso faz com que a gente tenha que elencar prioridades. É um tipo de posicionamento diferente. Fizemos esse planejamento estratégico logo de cara.

Revista de CINEMA – Um dos braços mais fortes do Ministério é o audiovisual. Como você enxerga o papel de cada um dos organismos envolvidos nessa política?

Sérgio Sá Leitão – Especificamente em relação ao audiovisual, nós vimos a necessidade de retomar o desenho institucional que consta das leis. Ao longo do tempo, essa institucionalidade foi se perdendo. Nós encontramos, nas leis que tratam do audiovisual e na estrutura regimental do Ministério da Cultura, uma visão muito clara de qual é o papel da Secretaria do Audiovisual (SAv), da Ancine, do Conselho Superior de Cinema e do Comitê Gestor do Audiovisual.

Nós procuramos resgatar esse sentido original, dando contornos claros para os papéis de cada um desses órgãos. Existe, hoje, uma visão muito clara disso, todos estão funcionando muito bem e de forma complementar, como deve ser.

Revista de CINEMA – Que problemas havia nessas atribuições?

Sérgio Sá Leitão – Não havia sintonia entre a SAv e a Ancine, de maneira que parecia haver duas políticas de audiovisual. Isso me parece errado. Houve um ano em que chegamos a ter um edital voltado para filmes de baixo orçamento na secretaria e outro na agência. Parecia que eram órgãos de instituições diferentes, quando ambos fazem parte do sistema MinC. Enfrentamos esse desafio e agora todas as instâncias estão funcionando ativamente e de forma integrada e complementar.

Revista de CINEMA – Qual é o papel do Estado no audiovisual dentro do Ministério? Acha que por ter mais visibilidade e recursos ocupa um lugar privilegiado?

Sérgio Sá Leitão – Ao longo dos anos, o audiovisual conseguiu ter uma proeminência maior em relação a outras áreas da cultura. Isso se reflete na existência de uma agência reguladora, como a Ancine, que tem um corpo técnico extremamente qualificado. E isso diz respeito ainda ao volume de recursos disponível.

Mas é importante a gente frisar que esses recursos não são oriundos do Tesouro ou da totalidade dos impostos arrecadados pelo governo. São oriundos da própria atividade audiovisual e também do setor de telecomunicações, por meio de uma contribuição específica, que é a Condecine.

Nós tomamos a decisão de não usar outras fontes para o audiovisual, considerando que a arrecadação da Condecine é bastante significativa. Hoje, todos os recursos da política audiovisual, inclusive o custeio da Ancine, saem do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), portanto da arrecadação da Condecine, o que me parece uma decisão acertada e justa. Temos poucos recursos para outras áreas. Por que destinar parte do orçamento do MinC para o audiovisual se ele tem uma fonte específica?

Revista de CINEMA – Mas essa balança não pode ficar desequilibrada?

Sérgio Sá Leitão – Justamente porque há a Ancine, com toda a sua qualificação, e uma massa crítica bastante grande na política do audiovisual, é possível avançar mais na política do audiovisual do que em boa parte das outras áreas. Mas temos tomado uma precaução muito grande para que este não seja o Ministério do audiovisual. Temos dado uma atenção grande às outras áreas e também aos outros mecanismos de fomento, buscando um equilíbrio maior.

Temos conseguido avançar muito na política de audiovisual, que, além de tudo, tende a produzir resultados muito expressivos, não apenas para o setor, como para o conjunto da sociedade, na geração de renda, de emprego, de inclusão, de arrecadação tributária e, portanto, de desenvolvimento econômico e social.

Revista de CINEMA – As teles travaram uma guerra jurídica contra o pagamento da Condecine. Essa situação já está pacificada?

Sérgio Sá Leitão – Eu procurei dar uma atenção a isso assim que entrei, por entender a gravidade da questão. Acho que houve um erro de condução no passado, pois o governo anterior aumentou a Condecine sem dialogar previamente com os setores diretamente relacionados. Com isso, rompeu o pacto que tinha sido estabelecido. Fez isso motivado por uma certa sanha arrecadadora, para cobrir o déficit público gigantesco que ele mesmo criou. Isso foi a fonte do atrito, sobretudo com as teles. Mas não só com elas, porque esse aumento de Condecine, no segundo semestre de 2015, também onerou muito os outros players do setor audiovisual, como as distribuidoras, sobretudo as pequenas.

Revista de CINEMA – Qual foi a sua abordagem em relação a essa situação?

Sérgio Sá Leitão – Assim que assumi, entrei em contato com o SindiTelas, que é o sindicato que reúne as empresas de telecomunicações. Desde então, tenho estabelecido um diálogo amplo e franco com eles e acho que essa interlocução contribuiu para acalmar um pouco os ânimos. A Condecine Teles de 2018 será recolhida, será bastante significativa. Tenho procurado construir um ambiente em que as teles também participem e se beneficiem da política audiovisual, na medida em que elas são stakeholders e contribuintes.

Revista de CINEMA – O argumento das teles é de que elas não colhem os frutos desse mercado…

Sérgio Sá Leitão – Hoje, não há dúvida de que o setor audiovisual e o de telecomunicações são primos-irmãos, estão caminhando cada vez mais juntos. O fenômeno da convergência aponta para um grau de afinidade, de interrelação cada vez maior. É o mesmo ecossistema. Mais da metade do fluxo das redes de telecomunicações no Brasil acontecem para acessos de conteúdo audiovisual e não para tráfego de voz ou de outros tipos de dados. São dois setores que precisamos trabalhar, de forma diplomática, com diálogo. Eles precisam se entender para que essa caminhada seja mutuamente benéfica.

Revista de CINEMA – Essa concentração de diferentes elos da cadeia audiovisual nos mesmos conglomerados, da produção à distribuição de conteúdos, que está acentuada no mercado americano, levanta novas questões regulatórias?

Sérgio Sá Leitão – Sim. Estamos num processo de aceleração tecnológica, de transformações profundas e aceleradas em todos os campos. E essas mudanças trazem novos desafios no campo regulatório. Pensar em regulação, hoje, é algo muito mais desafiador do que há 20 anos, quando havia uma percepção de estabilidade muito maior. Estamos na era da disrupção. É importante tentar se adaptar à realidade e não tentar impor a essa realidade uma ideia preconcebida.

Revista de CINEMA – Os novos editais do Ministério trouxeram cotas para indígenas e negros. Pretende levar a mesma abordagem para as linhas do FSA?

Sérgio Sá Leitão – É importante esclarecer uma coisa. Dentro daquela visão da recuperação de institucionalidade do Ministério, hoje, temos uma só política audiovisual, uma fonte de recursos para o setor, que é o FSA, e, nesse programa de fomento, temos linhas operadas pela SAv e pela Ancine. Mas tudo isso está integrado.

Portanto, as linhas lançadas em fevereiro constituem a primeira etapa do Programa Audiovisual Gera Futuro. São 11 linhas operadas pela SAv e têm a ver com as atribuições da secretaria, entre elas, políticas de inclusão, difusão, preservação, restauração, formação e capacitação, além de linhas temáticas para nichos e especificidades do mercado.

Nós fizemos um levantamento em relação a gênero e raça. Você tem que formular políticas públicas com base em pesquisas e estudos. Elas não podem ser feitas no ar, a partir do que a gente pensa ou imagina. Chegamos à conclusão de que, nas linhas operadas pela SAv, sempre que possível, vamos colocar as cotas de maneira afirmativa, intensa, porque tem a ver com o papel da secretaria.

No que diz respeito às linhas operadas pela Ancine, isso está em discussão ainda, porque nós precisamos estudar os possíveis impactos. Já há um consenso de que devemos adotar cotas nas linhas seletivas. Elas não se adequam muito às automáticas e de fluxo contínuo.

Revista de CINEMA – Quando elas seriam adotadas nessas linhas?

Sérgio Sá Leitão – Não foi possível implementar cotas nas linhas anunciadas agora, nessa segunda etapa do programa com seis linhas operadas pela Ancine, porque não se chegou a um consenso ainda no âmbito do Comitê Gestor do FSA, que é quem decide as regras operacionais das linhas. Nas próximas, que serão anunciadas no dia 30 de abril, penso que a gente já vai poder incluir, além das cotas regionais, as de gênero, raça e também de iniciantes. Acho essa uma visão positiva, de estimular não só a participação maior de mulheres, negros, indígenas, como também de novos realizadores para que a gente oxigene a indústria.

Revista de CINEMA – Quem vai operar as linhas desse novo lançamento?

Sérgio Sá Leitão – Provavelmente, serão a Ancine e a SAv. No âmbito da secretaria, temos em processo de formulação linhas para formação e capacitação, preservação, restauração e difusão de acervos. No âmbito da Ancine, além das linhas de desenvolvimento, produção e exibição de cinema e TV, temos em gestação linhas de infraestrutura e tecnologia, de games, voltadas para outras plataformas, como VOD, e para coproduções internacionais.

Revista de CINEMA – Qual será o ritmo dos próximos anúncios?

Sérgio Sá Leitão – A ideia é anunciar novas linhas a cada bimestre ou trimestre. E dar mais visibilidade às modalidades automáticas e de fluxo contínuo. Estamos aperfeiçoando as regras no sentido de reduzir a burocracia e aumentar a agilidade.

Estamos gestando também linhas relacionadas a investimentos em empresas, para que a gente não fique só nos projetos. E ainda estamos analisando a possibilidade de envolver fundos de investimento.

Revista de CINEMA – Os núcleos criativos continuam?

Sérgio Sá Leitão – Vão continuar. Fizemos um diagnóstico com a equipe técnica da Ancine, bem aprofundado. Um dos pontos foi um estudo sobre o impacto dos núcleos criativos. Então, vimos a necessidade não apenas de manter essa política, como aperfeiçoar as regras e o perfil.

Revista de CINEMA – O edital de 200 anos de Independência provocou acusações de dirigismo e propaganda mascarada do Ministério. Como vê as críticas?

Sérgio Sá Leitão – Acho uma visão preconceituosa, sem base na realidade. Eu ouvi muitos comentários antes sequer da linha ser anunciada. Acho bastante razoável que nós tenhamos, dentro da política audiovisual, linhas com recortes temáticos, já que a maior parte delas não tem. Essa celebração não pertence a um governo e nem mesmo a governos, é algo que interessa ao país e à sociedade brasileira como um todo. O regulamento é bem claro no sentido de respeitar e assegurar a total liberdade de criação e abordagem dos projetos.

Revista de CINEMA – Por que aumentar a participação de linhas automáticas?

Sérgio Sá Leitão – Nossos estudos constataram que havia uma concentração excessiva de recursos nas linhas de modalidade seletiva e apontaram a necessidade de um equilíbrio maior. Se nós estudarmos os casos de todas as indústrias audiovisuais que avançaram nos últimos anos, como a Coreia, a França e a Alemanha, vamos ver que há um ponto comum entre as políticas de audiovisual, que é a prevalência de mecanismos automáticos. Eles premiam a performance e permitem muito mais rápido acesso aos recursos.

Mas acho que precisa haver um equilíbrio entre os mecanismos seletivos e os automáticos. Porque os primeiros são uma espécie de porta de entrada no mercado e permitem uma oxigenação e uma diversidade maior de produtos, gêneros e abordagens.

Revista de CINEMA – A questão de regulamentar o VOD está ainda longe de uma solução? O que falta?

Sérgio Sá Leitão – A solução está próxima. O fundamental é atingir o consenso no Conselho Superior de Cinema. Penso que já temos um caminho. Agora, é preciso aparar as últimas arestas. O governo só enviará o PL ou MP, quando houver um consenso. O crescimento do mercado interessa a todos. A meta da nova política de audiovisual que estamos implantando é fazer com que o Brasil seja um dos cinco maiores mercados de audiovisual do mundo, em 10 anos; e venha a ter, em 10 anos, uma das cinco maiores indústrias de audiovisual do mundo. É uma meta possível, e todos os segmentos serão beneficiados com isso. Para isso, o acordo sobre a regulamentação da Condecine no VOD e congêneres é chave.

Revista de CINEMA – Você é a favor das cotas de conteúdo nacional nas plataformas?

Sérgio Sá Leitão – Penso que não é o melhor caminho no caso de meios não-lineares, como as plataformas de VOD e congêneres. As cotas não funcionam no streaming e também não funcionam no transaction. Estamos falando de meios com outra realidade e outra lógica de funcionamento. Não dá para simplesmente aplicar algo que funcionou no mercado linear sem adaptar. Um mercado é necessariamente finito; outro, potencialmente infinito. A adoção de cotas pode prejudicar imensamente o crescimento do novo mercado e dos novos meios, tecnologias e modelos de negócio. Vamos estimular a proeminência do conteúdo nacional de outros modos.

Revista de CINEMA – Existe um projeto de lei apresentado pelo senador Humberto Costa, que quer retirar da Ancine a responsabilidade de regulamentar o VOD e passar essa atribuição para o poder executivo, além de implementar cotas. Essa tramitação é um complicador das discussões já existentes?

Sérgio Sá Leitão – Este projeto não foi debatido com o setor audiovisual, com o governo e com a sociedade. Além do que você mencionou, traz outros absurdos, próprios de quem não conhece a atividade, não conhece o mercado e não conhece a tecnologia. Já nos posicionamos de modo contrário. Confio no bom senso dos senadores. Há um projeto de consenso sendo construído, que leva em conta os interesses do conjunto do setor, do governo e da sociedade, respeitando os consumidores e os criadores. Este é o caminho.

 

Por Gustavo Leitão

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