Festival de Brasília abre “Território” para a produção de todos os Brasis

Por Maria do Rosário Caetano

A quinquagésima-segunda edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro será aberta na noite desta sexta-feira, 22, com a coprodução ítalo-brasileira “O Traidor”, de Marco Bellocchio. O longa, que disputou a Palma de Ouro, em Cannes, tem Maria Fernanda Cândido no elenco, parte das filmagens realizadas no Rio de Janeiro e a produtora Gullane como parceira. Laureado, em Roma, com sete troféus Nastro D’ Argento, o filme é o pré-candidato peninsular ao Oscar e um dos seis finalistas ao Prêmio Europa de Cinema.

O traidor que dá título ao filme é o “arrependido” Tommaso Buscetta (1928-2000), interpretado por Pierfrancesco Favino, responsável pela delação de integrantes da Cosa Nostra, a mafia siciliana. Numa de suas fugas, Buscetta radicou-se no Brasil, desposando Maria Cristina de Almeida Guimarães, moça bem-situada na pirâmide social brasileira. Para este papel, Bellocchio escalou a bela e elegante Cândido.

A première brasileira de “O Traidor” está programada para esta terça-feira, 19, no Auditório do Ibirapuera, em São Paulo, como filme inaugural do 14º Festival do Cinema Italiano. Para o novo comando do festival candango, o mais antigo do país (criado por Paulo Emilio Salles Gomes e equipe em 1965), o ineditismo deixou de ser essencial.

Por isto, dois dos sete concorrentes ao Troféu Candango, a comédia homoafetiva “Alice Júnior”, do paranaense Gil Barone, e o documentário carioca “O Mês que Não Terminou”, de Francisco Bosco e Raul Mourão, já tiveram sua première brasileira. O primeiro foi visto no Festival de Vitória, depois na Mostra SP e no Mix Brasil, e o segundo, na Mostra SP.

Para manter o prestígio do festival, há cinco títulos inéditos em competições brasileiras. Um deles, “A Febre”, da carioca Maya Da-Rin, teve ótima repercussão em festivais internacionais. Filha de cineastas (Sandra Werneck e Silvio Da-Rin), Maya constrói um híbrido (doc-fic) protagonizado por Regis Myrupu, xamã e ativista indígena, do povo Desana do Alto Rio Negro. Aliás, o xamã amazônida ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Locarno, na Suíça.

O matogrossense “Loop”, ficção de Bruno Bini, o brasiliense “O Tempo que Resta”, documentário de Thaís Borges, o paulista “Volume Morto”, ficção de Kauê Telloli, e o pernambucano-carioca “Piedade”, quinto longa-metragem de Cláudio Assis, completam a lista dos 100% inéditos.

Claro que as atenções se voltarão, com ênfase, ao pernambucano (com produção da carioca República Pureza) “Piedade”, do irascível Cláudio Assis. Este filme tem tudo para ser a sensação das noites do Candango, pois seus trunfos são mais que evidentes: elenco estelar (Fernanda Montenegro, Cauã Reymond, Matheus Nachtergaele, Gabriel Leone e Irandhir Santos), uma história que soma ecologia (evocando os tubarões que amedrontam – e ferem – banhistas nas praias recifenses), cinema pornô, entre outros ingredientes explosivos. E tem um diretor (o caruaruense Cláudio Assis, 60 anos em 19 de dezembro) sem papas na língua (e papa-prêmios). Seus quatro filmes anteriores triunfaram em Brasília (“Amarelo Manga”, “Baixio das Bestas”, “Big Jato“) e Paulínia (“A Febre do Rato”). Se tudo isto não bastasse, a trupe pernambucano-carioca chegará a Brasília com um texto nitroglicerina pura, escrito por Marcelo Ludwig Maia, produtor do filme.

"Piedade", de Cláudio Assis

Quem costuma acessar o blog Nocaute, editado pelo escritor Fernando Morais (“Olga”, “Chatô”, “Os Últimos Soldados da Guerra Fria”), deparou-se com o incendiário ludwiguiano. Sob o título “Asfixia e Deboche – O Novo Desmonte do Cinema Brasileiro”, estão contundentes reflexões do produtor sobre os entraves, impostos pelo Governo Bolsonaro, aos organismos que gerem fundos e mecanismos de fomento ao audiovisual. Claro que o texto repercutirá nos debates do Festival de Brasília, historicamente o mais politizado do país (e olha que este ano o “mundano” Festival de Gramado teve sua edição mais politizada).

Quem pensou que o festival candango teria, neste ano de retrocessos políticos, sociais e culturais, edição despolitizada e inexpressiva, terá que rever seus prognósticos. Afinal, 108 filmes (49 longas-metragens e 59 curtas) serão exibidos no Cine Brasília, Museu da República e cinemas e centros culturais de cidades-satélites. Três são os convidados especiais (além de “O Traidor”, filme de abertura, e “Giocondo Dias, Ilustre Clandestino”, de Vladimir Carvalho, na noite de encerramento, será mostrado “Boca de Ouro”, de Daniel Filho), sete na competição, dezoito na mais importantes das mostras paralelas, a “Território Brasil” (que compõe-se com filmes de todos os Brasis), quatro na Mostra Brasília BRB (ex-Mostra Câmara Legislativa), quatro no segmento “Vozes”, quatro na Mostra Novos Realizadores, três na “Guerrilha” e seis no “Futuro Brasil” (filmes em fase de finalização).

Para os que entenderem que os sete filmes selecionados para a disputa do Candango não se anunciam imperdíveis, a solução é mergulhar na “Território Brasil”. Brasília, como todos os brasilienses estão cansados de saber, nasceu para integrar todos os Brasis, arrancar o país de seu secular apego ao litoral e amalgamar sotaques e culturas. Por entender isto, a curadoria colegiada do mais antigo festival do país, saiu em busca de filmes de todas as regiões brasileiras. Este ano, pela primeira vez em 55 anos de história (e 52 edições, pois houve interrupção em 1972, 73 e 74), o Festival de Brasília apresentará um longa-metragem do Amapá, o documentário “Máquina de Sonhos”, de Nycolas Albuquerque.

O Piauí se fará representar por “Niède”, de Tiago Tambelli, selecionado pelo exigente Festival é Tudo Verdade para sua principal competição. O filme, que dura 2h15m, acompanha a trajetória de Niède Guidon, a atrevida arqueóloga brasileira, de origem francesa, que criou o Parque Nacional da Serra da Capivara.

Da Bahia, chega o novo documentário, “Dorivando Saravá, o Preto que Virou Mar”, de Henrique Dantas, autor da deliciosa cinebiografia dos Novos Baianos (“Filhos de João – O Admirável Mundo Novo Baiano”). O mais recente filme de Dantas pode até não ser “nenhuma Brastemp”, mas, de cara, temos que atribuir ao cineasta o prêmio de “o mais inventivo criador de títulos de nosso cinema”. O longa documental sobre Caymmi tem, além de título de beleza arrebatadora, a rara capacidade de sintetizar sinopse perfeita com apenas sete palavras. Ou seja: um filme sobre Dorival Caymmi, o preto que, saravá!, virou mar (graças à magnífica safra de suas canções praieiras, sendo “Suíte dos Pescadores”, seu ponto mais luminoso).

Da Paraíba, chega o documentário “Jackson na Batida do Pandeiro”, de Marcus Vilar e Cacá Teixeira. Com este filme, que festeja o centenário de nascimento do rei do ritmo (nascido em Alagoa Grande, em agosto de 1919, e morto em Brasília, em julho de 1982), a dupla paraibana presenteia as novas gerações com retrato e canções de um dos mais geniais artistas populares do país. E coloca a niemárica cidade (que assistiu ao seu último show) no mapa dos festejos centenários.

A família Sganzerla marca presença dupla na mostra “Território Brasil”. Helena Ignez apresenta seu inventivo “Faquir”, de olho não só nos homens que se deitam em camas de pregos, mas também nas faquiresas, dedicadas a iguais proezas. O ator André Guerreiro Lopes, genro de Helena (marido da atriz Djin Sganzerla), marca presença com “Siron – Tempo sobre Tela” (parceria com Rodrigo Campos). O filme, embora represente São Paulo, tem alma goiana, pois Siron Franco vive, ainda hoje, em seu estado natal. Um parêntese: Djin Sganzerla participa do segmento “Futuro Brasil” com seu primeiro longa ficcional, “Mulher Oceano” (este segmento destina-se somente a interessados em estabelecer parceria na finalização dos filmes selecionados).

O representante de Goiás, para valer, é “Vermelha”, ficção de base documental, dirigida por Getúlio Ribeiro, premiado pela Mostra de Tiradentes. Além de Helena Ignez, mais duas mulheres marcam presença na “Território Brasil”: a paraense Jorane Castro, com o documentário “Mestre Carijó e seu Ritmo”, e a mineira Sílvia Godinho, com “Eu, Um Outro” (também documental).

Do Ceará, chega “Soldados da Borracha”, o quarto (e imperdível) longa-metragem de Wolney Oliveira, um cruzado da causa da regionalização do cinema brasileiro e um dos artífices da CONNE (Conexão Norte, Nordeste e Centro-Oeste). O filme tem ótima trilha sonora de DJ Dolores e resgata impactantes imagens do Brasil que mobilizou milhares de nordestinos para colher látex na Amazônia. Afinal, esta era uma das mais importantes matérias-primas demandadas pela máquina de guerra montada pelos Aliados para enfrentar Hitler. De Santa Catarina, chega o documentário “Amizade – Tekoayhu”, de Chico Faganello, mergulho no Brasil da Tríplice Fronteira.

Do Mato Grosso, vem “A Batalha de Shangri-la”, ficção de Severino Neto e Rafael Carvalho. Do Maranhão, “As Órbitas da Água”, ensaio poético e fecho da Trilogia Dantesca, de Frederico da Cruz Machado. Do Paraná, “Lamento”, de Diego Lopes e Cláudio Bitencourt, do Rio de Janeiro, “O Buscador”, de Bernardo Barreto, do Rio Grande do Sul, “Os Bravos Nunca se Calam”, de Marcio Schoenardie. Estes três, longas ficcionais.

O Distrito Federal, na condição de anfitrião, apresenta “Servidão”, documentário de Renato Barbieri e Neto Borges. Registre-se, aqui, a participação histórica da produção brasiliense em seu festival. Nunca, ao longo destas 52 edições, viu-se tantos longas-metragens candangos (nove no total) ocupando tão diversas vitrines de sua mais tradicional festa artística.

Na competição pelo Troféu Candango, está “O Tempo que Resta”. No segmento “Vozes”, o documentário “Maria Luíza”, de Marcelo Diaz. Na noite de encerramento, “Giocondo Dias, Ilustre Clandestino”. Na Mostra Brasília BRB, os longas-metragens “Dulcina”, de Glória Teixeira, “Mãe”, de Adriana Vasconcelos, “Mito e Música: A Mensagem de Fernando Pessoa”, de Rama de Oliveira e André Luiz Oliveira, e “Ainda Temos a Imensidão da Noite”, de Gustavo Galvão. E, na “Futuro Brasil”, a ficção “O Espaço Infinito”, de Lelo Bello.

Se “O Homem Cordial”, de Iberê Carvalho, que rendeu a Paulo Miklos o Troféu Kikito de melhor ator, em Gramado, tivesse sido programado em alguma das vitrines do festival, Brasília (neste caso em parceria com São Paulo) teria dez longas em sua edição de número 52.

Outra mostra paralela do Festival de Brasília digna de atenção é a “Vozes”, de nome curto e intenções largas (“apresentar narrativas de resistência e luta por espaços, de combate às desigualdades, ao racismo, ao machismo, ao preconceito religioso, à homofobia, enfim, a todas as formas de preconceito”). Foram selecionados apenas quatro filmes, mas um deles vale ouro: “Cine Marrocos”, de Ricardo Calil. Vencedor dos Festival de Guadalajara e do É Tudo Verdade, este longa documental é um dos 159 pré-finalistas ao Oscar de melhor documentário. Talvez o ponto mais luminoso das mostras especiais.

Com engenho e arte, Calil reúne, em um dos mais belos palácios da Cinelândia paulistana, o Cine Marrocos, um grupo de Sem-Teto. Eles buscaram abrigo no cinema semi-abandonado, por não terem onde viver. Como a sala, que evoca o exotismo do país magrebino, sediou o Festival Internacional de Cinema de São Paulo, em 1954, ano do quarto centenário da cidade, o codiretor de “Uma Noite em 67” e “Imperial” (ambos com Renato Terra), resolveu homenagear os filmes programados pelo evento. E são filmes de alcance universal, como “Crepúsculo dos Deuses”, de Billy Wilder, “A Grande Ilusão”, de Jean Renoir, “Noites de Circo”, de Bergman, “Júlio César”, de Mankiewicz, e “Pão, Amor e Fantasias”, deliciosa comédia peninsular (com Vittorio de Sica e Gina Lollobrigida).

E por que “Cine Marrocos” está na mostra “Vozes” e não num espaço de culto à cinefilia? Porque Calil abre generoso espaço para que moradores Sem-Teto (negros ou brancos, gordos ou magros, brasileiros ou imigrantes, em maioria africanos) sejam protagonistas do sonho cinematográfico, nem que seja por momentos fugazes.

Com seu formato híbrido (documentário com encenações ficcionais), “Cine Marrocos” dá voz a seus “personagens” para que contem suas vidas, expliquem como foram parar numa ocupação do MSTS (não confundir com o MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, comandado por Guilherme Boulos). O drama social destas pessoas ganhará dimensão épica.

Os cinéfilos verão imagens impressas em cinejornais de 1954, de convidados estelares do Festival Internacional de Cinema de São Paulo: Michel Simon, o ator-fetiche de Jean Renoir, André Bazin, o crítico que fundou a Cahiers du Cinéma, Eric Von Stroheim (diretor de “Greed” e mordono de Glória Swanson em “Crepúsculo dos Deuses”), Errol Flynn, o rei dos piratas de celulóide, Edward G. Robson, o “gangster” recorrente do cinema noir, e as estrelas Jean Fontaine, Jeanette MacDonald e Ann Miller.

Quem chegou a temer que a eleição de um governo de centro-direita para o executivo brasiliense mudasse os rumos do festival, também pode dormir tranquilo. Filmes como “Cine Marrocos”, “Giocondo Dias, Ilustre Clandestino”(sobre um dos mais importantes líderes do Partido Comunista Brasileiro) e “O Mês que Não Terminou”, engendrado pelo poeta, compositor e filósofo Francisco Bosco (filho do mineiro João), para refletir sobre as manifestações de junho de 2013, são obras capazes de arejar qualquer debate e impedir a hegemonia de uma única (e retrógrada) narrativa. Francisco, parceiro de João Bosco no belíssimo álbum de raízes árabes “As Mil e uma Aldeias”, foi diretor da Funarte no governo petista.

No comando da Secretaria de Cultura do DF, instituição que organiza o festival, estão quadros formados pelo antigo PCB, depois PPS e, agora Cidadania. Nada mais natural que o grande homenageado deste ano seja o ator de cinema (“Marcelo Zona Sul”, “Rainha Diaba”, “Xica da Silva”, “Chacrinha”), de teatro e TV (“Feijão Maravilha”) Stepan Nercessian, eleito deputado (e vereador) pelo Partido Popular Socialista e grande apoiador do Retiro dos Artistas. O goiano de Cristalina, descendente de armênios, que conquistou o Rio, receberá um Candango especial por sua contribuição ao audiovisual brasileiro. Ele fará 66 anos no dia seguinte ao término do festival (2 de dezembro).

 

52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Data:
22 de novembro a primeiro de dezembro
Local: Cine Brasília, Museu da República e cidades-satélites
Mostras competitivas, seminários, debates, oficinas e lançamento de livros
Abertura com o filme “O Traidor”, de Marco Bellocchio, encerramento, dia 30, com “Giocondo Dias, Ilustre Clandestino”, de Vladimir Carvalho. No dia primeiro de dezembro, serão reprisados os filmes vencedores da Mostra Troféu Candango e da Mostra Brasília BRB.
Programação detalhada no site: http://festivaldebrasilia.com.br/programacao.

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