Inaudito

Por Maria do Rosário Caetano

“Inaudito’, longa documental que traz, como subtítulo, “Com Por Lanny Gordin”, estreia nesta quinta-feira, 13, no CineSesc. Trata-se do primeiro longa-metragem de Gregório Gananian, multiartista de 35 anos, premiado no segmento “Olhos Livres” da Mostra de Cinema de Tiradentes 2017 e selecionado pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no mesmo ano.

Para fruição plena do filme, vale saber um pouco da trajetória de seu personagem, o guitarrista Lanny Gordin, que Gil e Caetano definiram, um dia, como “o Jimmy Hendrix brasileiro”. E recorrer a definição da enigmática palavra “Inaudito” (registre-se a coragem de Gregório ao batizar seu filme com nome tão pouco corrente) e evocar a China, principal cenário desta narrativa livre e de imensa beleza plástica.

Pois bem: Alexander Gordin, o Lanny, nasceu em Xangai, na China, em novembro de 1951, filho de pai judeu-russo (Alan Gordin) e mãe polonesa. Ele mesmo conta no filme que “viveu dois anos na China, quatro em Israel e que chegou ao Rio de Janeiro aos seis anos, onde viveu por quatro anos”. Aos dez, portanto, mudou-se com a família para São Paulo. O pai, louco por jazz, sonhava montar uma casa noturna para plateias endinheiradas e amantes da boa música ao vivo. Conseguiu fazê-lo, com um sócio, na década de 1960, na Praça Roosevelt. No palco da Stardust (lenda na memória paulistana) tocaram (ou cantaram) o jovem Hermeto Paschoal, Jair Rodrigues, os tropicalistas e o adolescente Lanny. Com 16 anos, ele era o guitarrista da casa. Por ser menor de idade, o pai arrumara um jeito de avisar ao filho da chegada de autoridades fiscalizadoras (uma luz vermelha no palco avisava o garoto que chegara a hora de esconder-se).

A fama de “prodígio da guitarra” passou a acompanhar Lanny. Sua guitarra “distorcida”, como a de seu ídolo Jimmy Hendrix (1942-1970), chamou atenção de cantores e/ou compositores como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Elis Regina, Tom Zé, Erasmo Carlos, Gal Costa, Tim Maia e Rita Lee. Tocou em disco de muitos desses artistas. E, no palco da Stardust, teve como parceiro principal Hermeto, o Coalhada (apelido original do alagoano Hermeto Paschoal).

O tempo passou e as viagens de LSD tornaram-se rotineiras na vida de Lanny. A esquizofrenia manifestou-se. Um dia, diz a lenda (e diz ele, de viva voz no filme) colocou fogo na mão (queimou-a com um cigarro, acreditando, com tal gesto, salvar o mundo). Encontrava-se em estágio de avançado delírio. O pai do músico achou por bem interná-lo num sanatório. Na década de 1980, Lanny Gordin conviveu com longos períodos de depressão, internações e — ele mesmo conta — “eletrochoques”.

A Stardust fechou as portas nos anos 1980 e Alain Gordin (1917-2009) partiu. O filho foi, aos poucos, reconstruindo sua trajetória musical. Quem for ver “Inaudito” esperando depoimentos histórico-evocativos e imagens de arquivo vai decepcionar-se. Não se trata de uma cinebiografia do praticante do “free total”, mas de um encontro com Lanny Gordin, já quase septuagenário, com a voz e postura modificados (o Adoro Cinema evocou para ele perfil semelhante ao do Nosferatu de Murnau ou Herzog). O artista segue um homem alto, calvo, de gestos elegantes e calmos (efeito, decerto, de remédios de combate à esquizofrenia, da qual fala sem nenhuma trava).

Antes, pois de entrarmos na essência do filme, decifremos seu título. “Inaudito”— registram os dicionários — “é aquele fenômeno do qual jamais se ouviu falar, ou se ouviu soar, aquilo que não está registrado na memória, algo novo, desconhecido, de que não se tem exemplo”. Definição pertinente para o som atual de Lanny Gordin.

Chegamos, pois, ao filme de Gregório Gananian. Em 88 minutos, o documentarista e seu personagem passeiam por dois territórios geográficos: a Xangai natal de Lanny e o Brasil sudestino, em especial Cubatão e a capital paulista. Na China, as paisagens são belas e “zen”. Fontes de água, árvores verdejantes, pessoas que se exercitam no tai-chi-chuan. No Brasil, os ambientes são pedregosos, áridos. Em especial, na região da industrializadíssima Cubatão, com seus dutos de petróleo que sobem a serra.

As imagens de “Inaudito” (de Toni Nogueira) são belíssimas, depuradas, envolventes. Ninguém pense que verá um filme precário. De forma alguma. A beleza visual e a sonora (embora inaudita) são a razão de ser do filme. Lanny produz sons que causam estranhamento. E reflete, a seu modo, sobre a vida, a natureza, o som, a loucura, o invisível.

Nomes ligados à “arte de invenção”, como Haroldo de Campos (1929-2003), Macalé (em participação instigante), Helena Ignez (com sua voz), Negro Léo (músico e bailarino, que dança “com” Lanny numa escada) e o artista plástico e cineasta José Roberto Aguillar se fazem presentes. Aguillar com a performance plástica “branco no branco”. Na China, a Old Jazz Band de Xangai dá sua contribuição ao “free som total” de Lanny.

Quem for ao cinema com olhos livres, disposto à comunhão com um filme mais sensorial que informativo, terá muito a ganhar. Depois, poderá ouvir os CDs do músico e compositor brasileiro. Desde o primeiro solo que ele gravou, em 2001, pela Baratos Afins, passando por “Projeto Alfa, volumes 1 e 2” (2004) e chegando a “Lanny Duos” (Barravento/2007). Um registro final: o músico brasileiro nascido em Xangai integra o time de instrumentistas de “Araçá Azul”, o belíssimo invento de Caetano Veloso (Philips, 1972).

Inaudito – Com Por Lanny Gordin
Brasil, 88 minutos, 2017-2020
Direção: Gregório Ganinian
Documentário sobre (com) o guitarrista Lanny Gordin
Produção: DGT Filmes e Zaum Produtora
Com participação de Jards Macalé, Helena Ignez, Orquestra Old Jazz Band de Xangai, José Roberto Aguillar e Negro Leo

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