Siron. Tempo sobre Tela

Por Maria do Rosário Caetano

O artista plástico Siron Franco ganha, aos 73 anos, um longa documental para chamar de seu. Um filme que enreda o espectador em narrativa fascinante, envolvente, inquieta, polissêmica.

“Siron. Tempo sobre Tela”, de André Guerreiro Lopes e Rodrigo Campos, chega, nessa quinta-feira, 25 de março, a alguns cinemas de algumas cidades que ainda mantêm salas abertas. Chega, também, a várias plataformas de streaming (Belas Artes à la Carte, Now, Vivo TV, Sky Play e Looke).

Os dois diretores trabalharam sobre farto material de arquivo, colhido ao longo de muitas décadas. O próprio Siron andou metido com o ofício do cinema, fez filmes em Super 8, registrou em vídeo obras, peripécias, discursos plenos de alegria e um quê de anarquia. E algumas (e lúdicas) brincadeiras. O filme, aliás, começa com imagem do artista acessando estante recheada com centenas de fitas domésticas, nas quais registrara-se, inclusive, em pleno processo de criação.

Para completar material de arquivo tão enriquecedor, Siron foi tema de documentário de Olívio Tavares de Araújo, crítico de arte dedicado, por anos, à realização de curtas e médias-metragens sobre (e com) muitos artistas. As imagens impressas nos onze minutos de “Universo de Siron” (1979), realizado em película, foram valiosas ao longa de André e Rodrigo. O documentário chega ao público depois de boa acolhida na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, entre outros festivais.

Os dois realizadores comandaram, também, e por duas décadas (de 2000 até a finalização do documentário), registros de um Siron inquieto e bagunceiro em seu imenso ateliê de Aparecida de Goiânia, e mais ajeitadinho, cabelos grisalhos e bem cortados, numa bela mansão na capital de seu estado natal. Um Siron que garante não poder, hoje em dia, por mais que deseje, comprar quadros vendidos outrora. Valorizaram-se tanto, que voltar a tê-los tornou-se proibitivo.

André e Rodrigo acompanharam o artista por onde ele andasse ou estivesse. Filmaram a anárquica construção de muitos quadros. Contavam, portanto, com material mais que suficiente para um filme. Mesmo assim, quiseram somar tudo (presente e passado) numa “tapeçaria do tempo”. E foi o que fizeram: uma soma de registros do jovem Siron até o senhor septuagenário, constatando em ambos uma alegria permanente, um jeito de ser moleque e bagunceiro.

Para realizar filme que resultasse em criativa cinebiografia, os diretores recorreram a um montador (Danilo do Valle) capaz de dar à narrativa ritmo aliciante e muito bem valorizado por trilha sonora aparentada aos inventos de Guilherme Vaz. Os sons criados Gregory Sliva são provocadores, nunca amortecedores. Jamais redundantes.

O que torna “Tempo sobre Tela” um filme delicioso de se ver, é que ele soma invenção e informação substantiva. Depois de assisti-lo, o espectador contará com abundantes registros pictóricos e auditivos de um artista que fala com entusiasmo similar ao do homem da cobra. E que tem muito a dizer. Os dois cineastas ouvem seu personagem com imenso interesse (e postados fora do quadro). Não têm pressa, deixam Siron expôr seus processos criativos, suas ideias, mesmo que, às vezes, elas pareçam desconexas. Ao final de tudo, graças à urdidura dos sons e imagens ritmados, ganham instigante coerência.

O filme nos faz regressar às lembranças do menino nascido em Goiás Velho (a população local detesta o adjetivo “Velho”), antiga capital do estado. Mas não há espaço para o didatismo da trajetória infância, juventude, maturidade. Siron é um alquimista, mistura tudo. Seja a visita à Cidade do México, em 1973, quando mergulhou (impregnou-se) na arte de povos originários do país asteca (“eu não saía do Museu de Antropologia”), seja na épica construção de 499 colunas do Monumento aos Povos Indígenas, erguido no cerrado (do projeto executado com paixão e fúria sobrou uma mísera coluna de concreto armado). O artista crê que fundamentalistas religiosos viram ali um ambiente de feitiçaria. Ou será que foi consequência da pobreza (espiritual e material) demolidora, mal que grassa por todos os cantos do país?

Siron profere ideias fertilizadoras. “Quando você domina uma técnica, é hora de fugir dela”. Ou, “eu faço uma arqueologia ao contrário do soterramento”. Conta que tomou o chá do Santo Daime, o que foi ótimo para seu processo criativo. Revela que “a figuração me cansou e as peles de onça me salvaram”.

Houve um tempo em que “todo mundo queria minhas Madonas”. Ele as fazia para ganhar dinheiro e fazer vingar sua trajetória como artista plástico. Afinal, o pai acreditava que, naquela profissão, ele passaria fome. Defendeu-se: “eu como pouco”. Inquieto como ele só, resolveu “pintar Madonas de dentes cariados”.

O artista evoca influências múltiplas do mundo que povoou (e povoa) sua existência. A Procissão do Fogaréu, em Goiás Velho, festa religiosa de origens milenares, regida por um Deus que tudo via (vê) e a todos punia. Evoca, também, o impacto do acidente com o Césio 137, o elemento radioativo que colocou Goiânia (e o subdesenvolvimento) em destaque nos jornais brasileiros e internacionais.

Na primavera de 1987, catadores se depararam com máquina que, vendida a compradores de ferro-velho, poderia resultar em bom ganho. Na base da martelada, os inocentes catadores se depararam com uma luz que os fascinou. Era o césio, um isotopo radioativo. O resultado foram mortes e doenças, como o câncer, tormento dos que manusearam a perigosa “luzinha”. Siron transformou o acidente nuclear goiano em matéria de suas criações.

Um registro, Rodrigo Campos é um diretor formado em Cinema e TV, na Inglaterra. Tem mestrado no campo do audiovisual e dirigiu documentários e programas para TV. “Siron. Tempo sobre Tela” é seu primeiro longa. Já André Lopes Guerreiro é ator e diretor de teatro. Ao estrear como um dos realizadores de “Tempo sobre Tela”, ele passa a dedicar-se a ofício essencial em seu círculo familiar. Afinal, é genro de Rogério Sganzerla (1946-2004) e Helena Ignez, companheiro da atriz e diretora Djin, cunhado de Sinai Sganzerla e Paloma Rocha. Sua estreia mostra que seu trabalho como ator nos filmes “Luz nas Trevas” e “A Moça do Calendário”, ambos de Helena Ignez (o primeiro com codireção de Ícaro Martins), e “Rio das Dúvidas”, de Joel Pizzini, o preparou para substantiva estreia como diretor de cinema.

 

Siron. Tempo sobre Tela
Brasil, 91 minutos, 2021
Direção: André Guerreiro Lopes e Rodrigo Campos
Produção: Malu Viana
Estreia: em alguns cinemas e plataformas de streaming: Belas Artes à la Carte, Now, Vivo TV, Sky Play, Looke
Distribuição: Pandora Filmes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.