Gramado tem noite de ótimos filmes

Por Maria do Rosário Caetano

“Homem Onça”, o quarto longa-metragem do carioca Vinícius Reis, e “A Colmeia”, do gaúcho Gilson Vargas, recompensaram a dedicação de quem enfrentou a maratona do Festival de Gramado, que só chegou ao fim nas primeiras horas da madrugada.

Antes dos dois longas, – “Homem Onça”, na competição nacional, e “A Colmeia”, na Competição Gaúcha – foram exibidos dois ótimos curtas: o paulista (“de Itaquacé”) “Entre Nós e o Mundo”, de Fábio Rodrigo, e o paraibano “Animais na Pista”, de Otto Cabral. “Itaquacé” é Itaquacetuba, município agarrado à grande (gigantesca) São Paulo.

“Homem Onça”, exibido no Arthouse Asia Film Festival como “Jaguar Man”, teve sua estreia brasileira e, de cara, surgiu como um dos fortes candidados a (alguns) Kikitos artísticos e técnicos. Quem sabe o de melhor filme e o melhor ator (para o protagonista Chico Diaz, em performance notável).

Há muitos filmes pela frente e Matheus Nachtergaele vem matador em “Carro Rei”. Especulações precoces? Sim, mas rever “Homem Onça” nos leva a concluir que este é o mais maduro e bem-sucedido dos filmes de Vinícius Reis, de 51 anos (e aparência de 35).

O roteiro, que o cineasta escreveu inspirado em história familiar (a demissão do pai da estatal Vale, quando foi privatizada), é de um ourives. Conta com personagens consistentes, trama que se passa em dois tempos (mais evocações da infância de Pedro, o “homem onça”) e fincado na realidade político-econômica brasileira. O registro é realista, mas se abre a sutil diálogo com o cinema fantástico.

O diretor-roteirista, que contou com colaboração de Flávia Castro e Felipe Gamarano Barbosa, esboçou sua narrativa em 2010. E o fez com “uma pegada Ken Loach/irmãos Dardenne”, mas fertilizou-a com mergulho no universo roseano (“Meu Tio Iauaretê”) e do tailandês Apichatpong Weerasethakul (“Mal dos Trópicos”, “Tio Boonmee”). A este, o filme faz citação explícita, quando olhos (fantasmagóricos) de uma onça brilham na escuridão.

Ninguém pense que tais referências fazem de “Homem Onça” um filme cabeçudo (ou “uma instalação plástica”, como o francês Michel Ciment definiu “Tio Boonmee”). Suas idas e vindas no tempo não afastam o espectador, nem são exibicionistas. Jogam a favor da história de um homem que amava o trabalho e a empresa empregadora e, de um momento para o outro, viu seus projetos laborais desabarem.

Com o triunfo da ortodoxia neoliberal e suas frequentes privatizações, Pedro se viu sem lugar. Demitido, abandona a família – a esposa Sônia (Silvia Buarque) e a filha universitária (Valentina Herszage) – e vai morar na cidadezinha onde nasceu. Vê o vitiligo, que se insinuara nos dias de angústia, tomar conta de seu corpo. Vira “um homem manchado”, pintado como uma onça. Aumenta as doses de consumo de álcool e parece não ver futuro pela frente.

O abatido Pedro, que Chico Diaz interpreta com despojamento nuançado e envolvente, mantém, para garantir um resto de sanidade, o amor pela música popular e pelo futebol. E se dá bem com a nova companheira, Lola (Bianca Byington), com quem vive em sua interiorana Barbosa.

A trilha sonora de “Homem Onça”, que na origem se chamaria “Molambo” (em homenagem ao famoso samba-canção de Mesquita & Florence), é aliciante. Os personagens ganham discos de presente, ouvem música, dançam em festas e, alguns deles, cantam com imenso prazer.

Vinícius realizou – como na feitura do roteiro – um trabalho de ourivesaria para sua trilha musical. Evocou as paixões do pai, matriz real do Pedro ficcional, nos momentos felizes (e infelizes).

“Meu pai” – contou no debate do filme – “preferia ouvir as canções que Caetano reuniu no ‘Fina Estampa’ com seus intérpretes originais, por isso, “Tonada de Luna Llena” aparece em importante momento de ‘Homem Onça’ na voz do venezuelano Simon Díaz”.

Amigo de Aldir Blanc (1946-2020), com quem trabalhou no filme “Praça Saenz Peña”, Vinícius fez questão – ajudado por sua produtora, Gisela Câmara – de conseguir direito de uso de muitas músicas. De Gilberto Gil (“Kaô”), Tom Zé, Pedro Luiz, Rita Lee, Chico Science e Nação Zumbi, Mano Chao, Maria Bethânia (ela canta “Molambo” enquanto os créditos correm na tela) e uma de Chico Buarque, que o cineasta tem como poderoso comentário do Brasil na era das privatizações – “Bancarrota Blues” (“Eu posso vender/quanto vai pagar…”).

Devoto de Nossa Senhora do Contexto, o realizador abre seu “Jaguar Man” com poderosa (e épica) sequência de fotos que registram embates ocorridos em leilões de grandes empresas brasileiras, consumados na metade dos anos 1990. Sindicalistas e populares confrontam (em vão) os donos do capital.

O segundo longa da noite – “A Colméia” – poderia, tranquilamente, estar na competição nacional. O filme, já exibido em festivais internacionais, nasceu de peça teatral de Diones Camargo, que sugeriu a Gilson Vargas que a transformasse em filme. O cineasta escreveu, então, seu conciso roteiro em parceria com o dramaturgo e com Matheus Borges.

A trama se passa em uma casa gaúcha, habitada por imigrantes alemães. Oito pessoas vivem, de forma franciscana, naquele ermo isolado, cercado de densa mata. O filme não se preocupa com o contexto histórico, mas nos fornece ao menos uma pista. Sabemos que o Governo proibira os imigrantes germânicos (e italianos) de expressarem-se na língua materna. Tal proibição se deu no Governo Vargas, pois o país se irmanara aos Aliados contra o eixo nazi-fascistas. Sabemos, então, que o filme se passa durante a Segunda Guerra Mundial e é falado em português, com um ou outro diálogo (ou desabafo) em alemão.

Dois jovens gêmeos (um rapaz e uma moça) são agregados à casa germano-brasileira, principal cenário do filme. Vive-se numa atmosfera de mistério, que matas e águas só fazem ampliar.

O culto ao trabalho e à religião (uma cruz reina soberana numa parede) mantém o grupo unido, embora as fissuras ganhem, cada vez mais, relevo. Frquentar a escola distante dali não estimula os mais velhos. Preferem o cultivo vindo da força dos braços, que o oriundo de cabeça pensante.

O contato com o mundo externo é mínimo. Um “bugre” (etnia indígena que habitou o Sul do Brasil, entre os rios Iguaçu e Pequiri) aparece como prisioneiro de brancos. Numa caverna, uma mulher e uma criança, também bugres, somam fome e angústia.

Os gêmeos querem fugir daquele mundo fechado. A fome começa a atormentar o grupo. Com esses elementos, Gilson Vargas constroi atmosfera que evoca os filmes do dinamarquês Carl Dreyer, o despojamento de “Os Mucker” (Bodanzky & Gauer, 1979) e as metáforas em vermelho de “O Som aos Redor” (Kleber Mendonça, 2012). Um elenco afinado e a fotografia de imensa beleza (e eficiência) de Bruno Polidoro nos arremessam no âmago daquela estranha família.

Em dois momentos, “A Colmeia” imanta nosso olhar. No mais forte deles, todos os personagens são submetidos a brutal corte de pelos (cabelos, barbas, bigodes), pois os piolhos provocavam terríveis coceiras. Uma imensa tesoura corta – sem nenhum truque – os longos cabelos das atrizes (e dos atores) bem rente ao couro cabeludo. E não o faz com perícia, mas sim, com o que popularmente chamamos ‘caminhos de rato’.

Em outra sequência, de grande força, vemos a gêmea com o rosto ensanguentado, pois decidira matar bezerro furtado (para venda futura). Assim agindo permitiria a sobrevivência, mesmo que temporária, do grupo. A fome, portanto, faz com que seu instinto de sobrevivência fale mais alto

Apesar desses momentos marcantes, o filme de Gilson Vargas investe mais na busca sensorial e em insinuante diálogo com o cinema de horror, que em uma sucessão de fatos.

Além da evocativa ambiência, do trabalho dos atores e da belíssima fotografia de Bruno Polidoro (que assina, também, as imagens de “A Primeira Noite de Joana”, de Cristiane Oliveira, da competição nacional), há outros trunfos a serem destacados em “A Colmeia”: a direção de som e a montagem de Gabriela Bervian. A riqueza sonora do filme é notável, pois soma a criação melódica de Leo Henkin à “engenharia” criativa da excelente profissional gaúcha.

Os dois curtas da segunda noite da competição brasileira também chamaram merecida atenção. O terceiro curta do paulistano Fábio Rodrigo chega a Gramado com bons antecedentes. Afinal, seus trabalhos anteriores – “Lúcida” (2016) e “Kairo” (2018) tiveram boa acolhida. Seu filme de estreia ganhou o prêmio da Crítica. “Kairo” lhe rendeu o Kikito de melhor diretor.

“Entre Nós e o Mundo” é um documentário filmado na periferia, espaço de onde vem o realizador, que dela se orgulha e nela encontra suas histórias e personagens. Dessa vez, ele conta a história de sua prima Érika Felipe, mãe de dois filhos – Theylor, de 16 anos, assassinado em abordagem policial, e Nicolas, também adolescente. A jovem mãe preocupa-se com o destino do filho que lhe restou.

O primo-cineasta decide filmar as emoções dessa mãe que viu o filho morrer tão precocemente. Mas nega-se a fazer registro no calor da hora, pois teria que trabalhar com a dor extrema e o ódio por ela gerado. O passar do tempo favorece seu intento. Erika engravida e vai dar à luz Alícia. Está feliz com esse novo encontro com a maternidade.

É esse momento que Fábio irá documentar – a história da prima, marcada pela saudade do filho assassinado, mas entusiasmada com a nova vida que vai chegar, sem esquecer a periferia que a circunda. É essa geografia, que imanta os olhos e interesses do diretor. Que, aliás, conclui, atualmente, seu quarto curta (“Contando Aviões”, filmado em Guarulhos), prepara duas séries de TV e escreve o roteiro de “Cisma”, seu primeiro longa.

Otto Cabral, que chega de João Pessoa, capital da Paraíba, realizou vários documentários até estrear na ficção com o sintético “Animais na Pista”. Buscou sua matéria-prima num conto de Rubem Fonseca (“Relato de Ocorrência”).

Realizou um filme de apenas dez minutos, e mesmo assim, conseguiu desenhar trágico retrato da brutalidade humana. Um acidente mata uma vaca. Populares chegam e se interessam mais pelos restos mortais bovinos, que pelas pessoas vitimadas pelo sinistro.

Para dar conta de sua missão, Otto diz ter se alimentado de projeto que abandonou: o jornalismo policial, base dos programas sensacionalistas da TV. Buscou no amigo Rodopho de Barros (diretor do ótimo “A Ética das Hienas”) o parceiro de empreitada, a quem coube a direção de fotografia.

Juntos, os dois engendraram um longo plano sequência, que deveria partir da vaca morta rumo aos “saqueadores” de suas carnes. Queríamos – disse o diretor durante o debate – “construir uma alegoria, uma metáfora, do egoismo humano”. E conseguiram, mesmo que o plano sequência tenho sofrido – como explicou Rodopho – “dois cortes digitais”. E, para o final, “optamos por um plano-contraplano”, que traria mais intensidade aos personagens.

O elenco de “Animais na Pista” reúne nomes de grande prestígio no cinema (e teatro) paraibano, entre eles o craque Servílio Holanda (do Grupo Piolim e do “Vau da Sarapalha”), Kassandra Brandão, Thardelly Lima e Paulo Philipe, que se somam a Giovani Souza, Flávio Melo, Omar Brito e Flávio Freitas.

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