“Lavra”, híbrido sobre a tragédia da mineração, desponta como forte candidato ao Candango
Por Maria do Rosário Caetano
Quando o cinema de invenção tem o que dizer, o resultado só pode empolgar. Foi o que aconteceu com “Lavra”, quarto longa-metragem do mineiro Lucas Bambozzi, desde já forte candidato ao Candango de melhor filme do 54º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o mais tradicional do país.
O filme, apresentado como obra ficcional, é na verdade um híbrido. Como “Iracema, uma Transa Amazônica”, de Bodanzky e Senna (1974), Bambozzi introduz personagem fictícia, Camila (Camila Motta) em um mundo de desolação. Em “Iracema”, esse papel cabia a Tião Brasil Grande (Paulo Cesar Pereio), que mergulhava na devastação da Amazônia. O diálogo de Bodanzky e Senna com a urdidura ficcional é mais explícito que o de Bambozzi. Afinal, todos os “personagens” que contracenarão com Camila são gente do povo (incluindo o líder indígena Airton Krenak). Gente que vive no estado brasileiro – Minas Gerais – que mais foi (e continua sendo) dilacerado pela mineração. Do ouro do período colonial, passando pelo diamante, e desaguando no ferro, que consome montanhas, picos e morros. E que consumiu o sono de Carlos Drummond de Andrade, cujos poemas são fonte de inspiração (e diálogo) de Bambozzi.
“Lavra” já nasceu como um filme de imensa força. E tal força cresceu ainda mais nesse exato momento em que o Governo Bolsonaro autoriza, por ato assinado por ministro militar, o garimpo em área amazônica (na região de São Gabriel da Cachoeira, onde vivem diversas etnias indígenas).
O que se vê em Minas Gerais, estado que carrega sua sina já no nome, serve como espelho do que poderá acontecer nas estranhas da Floresta Amazônica e de sua bacia hídrica, se a sanha de mineradores e garimpeiros não for contida.
O filme de Lucas Bambozzi estreou no mais importante festival de documentários do mundo, o IDFA, em Amsterdã. O cineasta, também artista visual e pesquisador de novas mídias, integra a geração de videoartistas mineiros, tida como formalista e um tanto desinteressada dos problemas brasileiros. Visão parcialmente injusta.
No caso bambozziano, então, duplamente descabida. Já no primeiro filme – “O Fim do sem Fim” (2000, parceria com Cao Guimarães e Beto Magalhães), havia enorme interesse pela gente brasileira, em sua prática de ofícios em extinção. Em sua estreia solo – “Do Outro Lado do Rio” (2004) – Bambozzi tomou o rumo da fronteira Brasil-Guiana Francesa, uma espécie de “terra de ninguém”, marcada pela ganância e busca aventureira do ouro. Ele tem outro longa (“8 ou 80-BH Underground”), resultante do projeto DocTV, ainda inédito.
“Lavra” é o projeto mais sólido (e oportuno) do artista mineiro. Uma bela reflexão sobre nossa natureza extrativista, o descaso com o meio ambiente, o pouco apreço pela vida dos pobres, a morosidade de nossa Justiça.
O filme se passa, essencialmente, no Quadrilátero Ferrífero de Minas Gerais. Naquele que outrora chamávamos de o Vale do Rio Doce. O doce nome que deu lugar à “progressista” designação de o Vale do Aço. Camila, natural de Governador Valadares, maior exportador brasileiro de emigrantes para os EUA, estuda no país anglo-saxão. Ao saber, em 2015, que a explosão da Barragem de Mariana, “mantida” por grandes mineradoras (complexos formados pela Samarco, Vale, PHP Billiton) causou a morte de 19 pessoas e devastou o Rio Doce, Camila decide retornar ao Brasil para estudar a tragédia humana e ecológica dela resultante.
Com procedimentos de pesquisadora, ela mergulha, também, na força conceitual das palavras. As mais fertilizadoras são topofilia (o estudo da percepção, atitudes e valores do meio-ambiente) e solastalgia (angústia produzida pela mudança ambiental), retiradas de poemas drummonianos, gerados nas terras enegrecidas pelo ferro itabirano. Camila começa a conversar com moradores da região abalada pela catástrofe. Tudo se dá à moda Eduardo Coutinho. São conversas. Jamais entrevistas. Bambozzi (representado por Camila) pratica a “dramaturgia do ouvir”. Não quer aparecer, quer aprender, dar voz ao outro. A atriz quase desaparece no meio da gente das Geraes. É um corpo de afeto, que abraça, que ouve, que se aproxima.
Está, pois, Camila, em sua jornada pelas entranhas do Quatrilátero Ferrífero e as imagens registram impressionantes buracos, outrora picos, morros ou montanhas, quando outra tragédia se dará: o brutal rompimento de barragem de resíduos minerais, dessa vez em Brumadinho. Perto de 300 mortos e desaparecidos, além de 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos lançados em águas de 230 municípios mineiros e capixabas. Do Rio Paraopeba para o Rio Doce e afluentes. Uma das maiores, senão a maior, tragédia ambiental brasileira.
Em seus momentos mais potentes, o filme de Bambozzi nos mostrará imensos trechos do solo das Minas Gerais transformados em estranhas “crateras lunares”. E um trem de carga, que parece ter vagões infinitos, a rodar, rodar, rodar, incessante. A trilha sonora do Grivo (e de Stephen Vitiello) cria dissonâncias perturbadoras (e enriquecedoras), nunca camadas de emoção sentimental-aliciadora.
Se a solastalgia, este sentimento de angústia produzido pela mudança ambiental, marcou para sempre as retinas e memórias de Drummond – afinal, ele viu o Pico do Cauê ser devorado pela indústria mineradora – podemos afirmar que “Lavra” nos causa uma espécie de “solastalgia cinematográfica”. Nos angustia, nos inquieta. Mas nos dá esperança. Na parte final do filme, vemos jovens habitantes do Serro – cidade vizinha a Conceição do Mato Dentro, nova galinha dos ovos de ouro da mineração predatória – reagirem contra o poder imensurável dos empresários da mineração. Afinal, tais ambientalistas não querem – como os que ainda choram parentes desaparecidos em Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo – viver assombrados por lembranças tristes, desespero e à espera de uma nova moradia. Passados seis anos, as mega-empresas Vale e BHP Billiton ainda não cumpriram todas suas obrigações indenizatórias.
O longa infanto-juvenil “Alice dos Anjos”, que abriu a competição de longas do festival, chega – com seu projeto de somar Lewis Carrol a Paulo Freire, ambientados ao sertão da Bahia – a resultado satisfatório. Num país que nunca deu a devida atenção ao cinema infanto-juvenil, o projeto de Daniel Leite Alencar é mais que encorajador. Desde já, passa a integrar o time de produções infantis não-escorados em apresentadores e cômicos de TV, composto com títulos fascinantes como “A Dança dos Bonecos”, ”Menino Maluquinho 1 e 2”, “Cavalinho Azul”, “O Menino no Espelho” e “Pequenos Guerreiros”. O Festival de Brasília acertou ao abrir espaço em sua seleção para este importante segmento cinematográfico. Como diz o ditado, é de pequenino que se torce o pepino.
Os quatro curtas até agora exibidos – os paulistas “Ocupagem”, de Joel Pizzini, e “Chão de Fábrica”, de Nina Kopko, o brasiliense “Filhos da Periferia”, de Arthur Gonzaga, e o amazonense “Terra Nova”, de Diogo Bauer, – como “Lavra” – também conjugam fina elaboração estética e pegada social. Até Pizzini, avesso a temas sociais explícitos, somou às suas ousadias experimentais tema candente: a luta dos que vivem em ocupações urbanas. Aqueles que não têm teto. Para tanto, contou com a colaboração do escritor Julian Fucks, que dialoga com mãe e filha, Carmen Silva e Preta Ferreira, líderes-ocupantes do centro de São Paulo, atrizes (“Hotel Cambridge”) e, ambas, muito articuladas. Preta, que foi presa e contou suas vivências em livro, é cantora e, a capella, escande os versos duros de “a carne mais barata do mercado é a carne negra”). O subtítulo de “Ocupagem” já diz tudo: “A Imagem Ocupada”.
“Filhos da Periferia”, do brasiliense Arthur Gonzaga, é uma grata surpresa. Cinema social na veia. A trama lembra “Cidade de Deus” (que se passa em três tempos), na periferia carioca. O filme arthuriano se passa na periferia candanga – na Ceilândia (em dois tempos). Duas crianças (como Laranjinha e Acerola) brincam juntas, soltam pipas. Dez anos depois, na pós-adolescência, um termina os estudos colegiais e o outro está envolvido com o tráfico. A amizade segue inabalável.
No dia do aniversário de um deles, o de família e vida estruturadas, algo de muito grave acontecerá. No debate do filme, Arthur Gonzaga, que estudou cinema na Escuela de San Antonio de los Baños, em Cuba, avisou, de saída, que “Filhos da Periferia” é sempre comparado – desde o roteiro, a “Cidade de Deus” (e até com “Tropa de Elite”). Ele refutou tal comparação com quatro argumentos: “em Cuba, na Escuela, aprendi a fazer um cinema auto-referencial, poético, reflexivo. Por isto decidi que não teríamos câmara (nervosa) na mão, usaríamos planos gerais (médios só quando estritamente necessário), opção pelo foco infinito e apostaríamos na diminuição dos cortes”.
Como é montador profissional (“viver só de direção é muito difícil”, pontuou), Arthur fugiu da montagem eletrizante, marca de “Cidade de Deus” e dos “Tropas”. E arrematou: “Há violência no meu filme, sim, mas não construí uma narrativa de ação, tipo pauleira, correria e tiro. ‘Filhos da Periferia’ é um filme de vivências e convivências”. No que foi secundado por Edimilson Braga, designer de som e nome da linha de frente do cinema (Coletivo CeiPeriferia) realizado na maior cidade-satélite do DF. Braga é ator de Adirley Queirós nos filmes “Dias de Greve” e “A Cidade é uma Só?”. E professor.
Outra boa surpresa chegou de Manaus. Lá, o ator e diretor Diego Bauer realizou, em plena pandemia, um filme protagonizado por duas irmãs, uma delas atriz, e ambas atormentadas pelo desemprego, no auge da pandemia do Coronavírus. Passando aperto financeiro, uma delas, que é atriz, decide recorrer ao auxílio emergencial de R$600,00. Vai, de bicicleta, na companhia da irmã, subindo e descendo morros, até um posto governamental, com a documentação necessária. É atendida por um burocrata (o próprio diretor interpreta o papel). Ele estranha que ela seja uma atriz. Desconfiado, pergunta: Onde você atua? Já fez novela na Globo?
No debate, do qual participou ao desembarcar de uma aeronave, em pleno aeroporto, Brauer contou que inspirou-se no filme “Dois Dias, Uma Noite” (e “O Garoto da Bicicleta”), dos irmãos Dardenne. Daí as bicicletas e as imagens apegadas aos corpos das atrizes. Contou, também, que buscou inspiração nos filmes neo-realistas, incluindo “Ladrões de Bicicletas”. E explicou o título “Terra Nova”. Trata-se de um dos bairros de Manaus, por onde se deslocam as duas personagens, nessa espécie de bike movie. E, além do mais, “Terra Nova” trazia “um quê de esperança num tempo sombrio”. E mais, acrescentou, bem-humorado: “serviu para eliminar o título original ‘Auxílio’ – execrado por todos que o ouviam”.
“Chão de Fábrica”, que Nina Kopko realizou a partir de fragmento da peça “O Pão e a Pedra”, de Sérgio Carvalho, da Companhia do Latão – vem alcançando ótima repercussão em diversas vitrines festivaleiras. Acaba de vencer o Cine Ceará e de conquistar o Prêmio Aquisição Canal Brasil. O filme tira da invisibilidade – escorado no trabalho de quatro ótimas atrizes – operárias metalúrgicas que atuaram em fábricas do ABC Paulista, no final dos anos 1970. A produtora do filme, Letícia Friedrich, garantiu que “20% dos trabalhadores em empresas de metalurgia da região eram do sexo feminino”. Mas ficaram esquecidas, pois depois do expediente nas fábricas, tinham que regressar para casa, onde cumpririam uma segunda jornada de trabalho (a doméstica).