Série “Lei da Selva” conta história do Jogo do Bicho e da “Pátria Armada”

Por Maria do Rosário Caetano

A série “Lei da Selva – A História do Jogo do Bicho”, dirigida por Pedro Asbeg, pode ser vista no Canal Brasil, em capítulos exibidos nas noites de sexta-feira, ou na íntegra, na Globoplay.

O tom vai do morno ao vibrante. Começa com um primeiro capítulo (são apenas quatro) que historia a aparição do jogo, espécie de rifa de zoológico, criado há 130 anos, pelo Barão de Drummond, até os dias atuais, quando a bolsa ilegal de apostas transformou-se em verdadeiro império do crime organizado, somando escolas de samba, tráfico de drogas, milícias, eleição de políticos e serviço de pistolagem. Tendo, sempre, o Rio de Janeiro como epicentro. Primeiro, bairros tradicionais como Portela, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Bangu. Hoje, estendendo-se até Rio das Pedras. O novo conglomerado urbano tornou-se conhecido como espécie de ponto nevrálgico da milícia. A série explicará, com muita clareza, como brotou aquela imensa mancha urbana, localizada na Zona Oeste do Rio, divisa com os bairros de Itanhangá e Jacarepaguá.

Trabalhadores da construção civil chegavam de vários cantos do país, para trabalhar na expansão imobiliária da Barra da Tijuca. Fixaram-se na região, que nasceu como favela-dormitório. Hoje – garantem urbanistas, sociólogos e jornalistas que participam da série –, o bairro conta com quase 50 mil habitantes. Em busca de proteção contra o tráfico, na década de 1980, comerciantes de Rio das Pedras começaram a pagar policiais em troca de proteção. O local tornou-se fértil berço miliciano. Ex-policiais e ex-bombeiros cobram, hoje, por todo tipo de serviço que o Estado não consiga oferecer.

O primeiro capítulo – “O Bicho Pegou” – parece morno, se comparado com série que a Globoplay dedicou ao rei dos bicheiros, Castor de Andrade (“Doutor Castor”, 2021). Mas, já no segundo – “O Bicho é Pop” –, a série pega no breu. Vibrante e corajosa, mostra a promiscuidade entre bicheiros, mídia, políticos, policiais, juízes. Revela, sem anestésico, a proximidade de altas autoridades dos três Poderes desse nosso Brasil contemporâneo com este mundo semi-oculto. Os jornais e, principalmente, a Rede Globo, é vista em relações sociais com os bicheiros. José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o todo outrora todo-poderoso Boni, passa a conviver socialmente com as agremiações carnavalescas, dedicando atenção singular à Mocidade Independente de Padre Miguel (conhecida no final do século passado como “a Escola da Globo”). O que aparecia de artista das telenovelas da Globo nos desfiles da Escolas (em especial Beija Flor e Mocidade) era uma enormidade.

A série não esconde nada. Não poupa nem Leonel Brizola, governador do Rio por duas vezes, nem seu vice-governador, no primeiro mandato (1982-85), Darcy Ribeiro. O escritor, antropólogo e delirante amante utópico do Brasil aparece em ceia com todos os grandes bicheiros do Rio de Janeiro, unidos na poderosa Liesa (Liga das Escolas de Samba). E felizes veremos, além de Darcy, o próprio Brizola, todo o Rio de Janeiro e o Brasil no dia da inauguração da belíssima Passarela do Samba desenhada por Oscar Niemeyer.

Para mostrar que os bicheiros haviam se transformado em figuras populares no imaginário brasileiro, a série lembra a presença deles na literatura, no teatro, na telenovela (“Bandeira 2”, com o irresistível Tucão, interpretado por Paulo Gracindo) e no cinema (“O Boca de Ouro”, “O Rei do Rio”, “Águia na Cabeça”).

Castor de Andrade, Miro, Luizinho Drummond, Raul Capitão, Anísio Abrahão David, Capitão Guimarães não eram mais chamados de bicheiros, mas sim de “patronos” de escolas de samba. Saíam nas revistas e jornais, frequentavam festas e jantares de gente de bem. Até que, em 1993, a casa caiu.

O procurador de Justiça Antônio Carlos Biscaia resolveu acabar com a promiscuidade. Era público e notório que atrás do Jogo de Bicho rolavam crimes sangrentos e luta por territórios. E parcerias com mafiosos italianos na implantação de máquinas eletrônicas instaladas em todos os bares e biroscas, os famosos caça-níqueis. Uma nova geração de bicheiros – Maninho, filho de Miro, era seu símbolo mais vistoso – envolvia-se com tráfico de armas e drogas. O sangue tornava-se cada vez mais abundante.

O capítulo 3 – “Enjaulados” – mostra a cúpula do bicho na cadeia, graças à coragem (atrevimento!) da juíza Denise Frossard. E de fonte secreta que entregou a contabilidade do Jogo do Bicho para o Judiciário. Claro que eles foram trancafiados numa cadeia à brasileira. Castor transformou sua cela (ele tinha direitos de portador de diploma de curso superior, pois era formado em Direito), num verdadeiro quarto de hotel 5 estrelas. Mandava até reformar as viaturas da Polícia, pois achava um esculacho ver os meganhas andando naquelas furrecas velhas.

Os “patronos do samba” estavam envelhecendo e seus “herdeiros” vinham dispostos a tudo. Maninho, porém, morreu antes do pai Miro. Mas Castor, que fizera do sobrinho Rogério Andrade uma espécie de “herdeiro administrativo”, não imaginava a guerra que seria travada entre este e seus herdeiros diretos – os filhos Paulinho Andrade e Carmen (esta casada com o ambicioso Fernando Iggnácio, sim com dois“gês”). Paulinho foi executado um ano depois do pai. Mesmo escoltado por nove seguranças, Iggnácio foi assassinado em 2020. Agora, Rogério Andrade, o sobrinho, comanda a herança do “bicho” Castor.

O quarto capítulo de “Lei da Selva” – Pátria Armada (com “r”) – é de arrepiar: sangrento, amedrontador, politizado. O espectador vai deparar-se com o nome da vereadora Marielle Franco, assassinada, junto com seu motorista, numa noite quente do Rio (14 de março de 2018), por pistoleiros. Por milicianos. Veremos, também, personagens que passaram a frequentar nossas páginas político-policiais: Ronnie Lessa, Élcio Queiroz, Anderson Nóbrega, Álvaro Lins, Fabrício Queiroz…. Escritório do Crime. A lista envolve ex-policiais, do Bope e de outros batalhões, e políticos eleitos para a Câmara de Vereadores e Assembléia Legislativa do Rio (e até para o Congresso Nacional) com dinheiro da contravenção.

O documentarista Pedro Asbeg, de 46 anos, é autor de “Democracia em Preto-e-Branco”, sacudido e irresistível documentário sobre a turma de Sócrates, Vladimir e Casagrande, que amava futebol, rock e política progressista. Assinou, também, com Alice Lanari, “América Armada”, documentário sobre a guerra às drogas no subcontinente e seus estragos.

Em sua radiografia do Jogo do Bicho, Asbeg não perde o embalo. Realiza um documentário com direção de arte (os entrevistados – nomes de ponta como Misse, Simas, Paes Manso, Tainá de Paula, Freixo, Chico Otávio – falam em cenários enfeitados com a bicharada do Zoo), trilha sonora descoladíssima e fina acuidade política. E mais: conta com a intervenção de um narrador muito do abelhudo e atrevido (voz de Marcelo Adnet). Aliás, para resumir “Lei da Selva” em uma única expressão, ela só pode ser: “ô série ousada, corajosa e necessária”.

 

Lei da Selva – A História do Jogo do Bicho
Cada capítulo dura em média de 50 minutos
Direção: Pedro Asbeg
Narração: Marcelo Adnet
Participação: Marco Antônio Simas, Tainá de Paula, Bruno Paes Manso, Michel Misse, Fred Coelho, Marcelo Freixo, Chico Otávio, André Grimião
Canal Brasil: sextas-feiras, 22h30
Globoplay: na íntegra

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