Recife jovem em crise
Marcelo Gomes mostra seu gosto por desenvolver personagens e por usar a paisagem como elemento narrativo. Ele fala também de seu novo filme, “Era uma Vez Verônica”, que aborda a jornada de personagens transitando pela capital pernambucana
“Quando minha mãe assistiu ao ‘Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo’, ela falou: ‘ai, meu filho, todos os filmes que você faz são assim, um carro, alguém dirigindo e viajando?’”, conta, rindo, o cineasta pernambucano Marcelo Gomes, sobre o fato de seus filmes anteriores – “Viajo…” e “Cinema, Aspirinas e Urubus” – se passarem na estrada. Para o deleite de sua mãe, seu próximo filme, “Era uma Vez Verônica”, em finalização, não seguirá essa tônica. “Não será um road movie, mas existe a jornada do personagem – e acho que é isso que há de comum nos três: adoro desenvolver personagens, trabalhar com eles. A Verônica passa por um processo, por uma jornada de maturação – não é a jornada pela qual os adolescentes passam, é uma jornada da fase jovem para a adulta”, explica.
“Era uma Vez Verônica” é um filme sobre uma médica recém-formada, com 24 anos, que começa a trabalhar num ambulatório de psiquiatria de um hospital público em Recife. A jornada de maturação referida pelo diretor é justamente a da transição entre a vida de estudante e a vida de profissional, adulta.
Em 2005, com “Cinema, Aspirinas e Urubus” – exibido e premiado no Festival de Cannes, sobre um alemão refugiado, vendedor de aspirinas, e um paraibano desempregado que viajam pelo sertão nordestino, em 1942, em busca de trabalho –, Gomes ganhou grande notabilidade. Em “Era uma Vez Verônica”, orçado em R$ 3 milhões, rodado com R$ 1,9 milhão e ainda aguardando R$ 700 mil para finalizar, o cineasta quis se voltar para a contemporaneidade e para sua própria vivência. “Quando tinha 24, 25 anos, queria ir ao cinema e assistir a um filme que se relacionasse com o que estava sentindo naquele momento, as dúvidas sobre o meu futuro, o meu trabalho, a minha vida afetiva, que se passasse nas ruas em que andava ao sair do cinema, que fosse a cara da minha vida lá. Acho que nunca vi esse filme no cinema”, relata o diretor do curta “Clandestina Felicidade” (1998).
Filme sobre viver em Recife
“Quis muito fazer um filme sobre um momento da minha vida, em que morei no Recife, que considero muito importante, que é a transição de quando você acaba a universidade e você tem que construir uma vida profissional. Essa transição que o jovem passa, nos 24, 25, 26 anos, é uma transição muito difícil, porque você não tem mais aquela desculpa de que é estudante, você tem que ir para a luta, para a vida. Mas você continua cheio de dúvidas e dilemas, se escolheu a carreira certa, se está vivendo a vida do jeito que quer. É um momento da vida em que acontecem várias crises existenciais, afetivas e emocionais – eu queria muito falar desse universo. Eu vinha de filmes de época, queria muito falar do Brasil atual”, complementa.
Para falar de uma geração 20 anos mais nova que a sua – atualmente, Marcelo Gomes está com 47 –, o diretor-roteirista fez diversas entrevistas para ver se encontrava a mesma inquietação que o acometeu quando estava na situação da protagonista do filme. “Quando estava no 2º, 3º tratamento do roteiro, fiz uma série de entrevistas com pessoas que moram em Recife na idade da protagonista. Foram 25 jovens. As gerações mudam, o contexto muda, mas descobri que, na essência, as coisas mudam muito pouco. A sociedade brasileira ficou mais competitiva e capitalista, o individualismo, a pressão e a cobrança estão maiores. Mas os sentimentos da juventude continuam o mesmo. Fiquei muito feliz porque muito do que estava escrevendo tinha a ver com a vida dos jovens. Falando com eles, aprendi muita coisa e relembrei de várias outras de quando era mais jovem do que sou hoje”, aponta Gomes.
Além de jovens, o diretor também entrevistou médicos recém-formados, psiquiatras, visitou hospitais públicos, investigando o dia-a-dia desses espaços e os jovens médicos, além de frequentar as noites de Recife para conhecer os hábitos da moçada. Uma das principais fontes foi Cris Bezerra, psiquiatra que escreve contos sobre a vida dela com os pacientes, que inspiraram alguns pontos na vida de Verônica. Ao todo, foram três anos e meio trabalhando no roteiro. A ideia veio em 2005, mas Marcelo só foi aprofundá-la a partir de 2007, quando foi a Berlim, por conta de uma bolsa para artistas que ganhou do governo alemão. Gomes mexeu no roteiro até 2010, quando o filmou, entre o final de outubro e novembro, em Recife.
Paisagem-personagem
“Era uma Vez Verônica” é o primeiro longa de Marcelo Gomes a ser filmado em Recife, sua cidade natal e onde viveu muitos anos, um cenário que desejava muito utilizar. Mesmo que o filme não tenha a tônica do cinema de jornada das suas duas outras experiências em longa, o roteirista de “Deserto Feliz” (2007) garante que a paisagem continuará a ter um papel importante em seus filmes. “Recife é definitivamente um personagem do filme, mas não sei se na mesma dimensão que o sertão é no ‘Cinema, Aspirinas e Urubus’. A paisagem nos meus filmes tem uma importância muito grande, faz parte dos sentimentos dos personagens. Eles são instigados pela paisagem; ela os modifica, altera o estado de espírito deles. No ‘Era uma Vez Verônica’, um pouco menos, mas Recife se faz muito presente”, aponta o cineasta, formado em cinema pela Universidade de Bristol, Inglaterra.
Para tal, filmou o longa todo na cidade. Entre os lugares a serem vistos na película, estão a praia e o bairro de Boa Viagem, o Recife antigo, a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o Pina, o bairro de Brasília Teimosa – que recentemente foi retratado por Gabriel Mascaro no longa “Avenida Brasília Formosa” (2010).
“O novo longa é influenciado pelos meus dois longas anteriores. Ambos estão presentes no novo, porque o diretor é o mesmo. A trajetória que sigo no cinema nacional tem muito a ver com uma identidade em que o personagem está sempre presente e é influenciado pela paisagem, com construção naturalista da dramaturgia. Tudo isso permanece”, pontua o cineasta, que também aponta “Mônica e o Desejo” (1952), de Ingmar Bergman, e “Albergue Espanhol” (2002), de Cédric Klapisch, como influências na montagem de um mosaico “existencialista tropical”, como define o filme.
Escolhendo atores
“O projeto surgiu porque eu vinha de filmes, enquanto roteirista, com personagens masculinos e queria muito construir uma personagem feminina”, conta o diretor, que roteirizou, além de seus filmes, “Madame Satã” (2002), entre outros. Foi assim que nasceu Verônica. Para interpretá-la, Gomes escolheu a também pernambucana Hermila Guedes, a quem havia revelado ao cinema de longa em “Cinema, Aspirinas e Urubus”. Ele já vinha pensando na atriz desde a concepção da personagem. “Mas, para desconstruir certas certezas que a gente tem, fiz muitos testes, no Rio, em São Paulo, com atores nordestinos ou não. Testei pessoas em Salvador, Fortaleza, Recife, João Pessoa. Foram muito importantes esses testes, pois muitos coadjuvantes vieram daí. No final de tudo, testei a Hermila, e é um prazer muito grande trabalhar com ela, que tem uma energia muito bonita. Acho que o diretor tem que trabalhar com atores que instigam sua imaginação, o desejo de trabalhar”, justifica Gomes.
Todo o elenco é formado por pessoas de Pernambuco ou da Paraíba e teve preparação de Pedro Freire, com direito a um mês de ensaios, 8 horas por dia. Outro destaque é o baiano João Miguel, ator que vem despontando no cinema nacional desde que protagonizou a estreia do diretor em longas. Em “Era uma Vez Verônica”, ele faz um personagem que tem uma relação afetiva com a protagonista. “No elenco, está toda a cor e a musicalidade local. Esses atores são meio a cara do meu cinema”, aponta
A equipe, não só o elenco, também é muito parecida com a de “Cinema, Aspirinas e Urubus”: Mauro Pinheiro é o diretor de fotografia, Marcos Pedroso é o diretor de arte, a montagem é de Karen Harley, e a produção, de João Jr. (da Rec Produtores) e de Sara Silveira e Maria Ionescu (da Dezenove Som e Imagem).
Filmando com Cao Guimarães
É só acabar “Era uma Vez Verônica” e Marcelo Gomes já embarca em outro projeto, “O Homem das Multidões”, baseado em conto de Edgar Allan Poe, a ser dirigido conjuntamente com o mineiro Cao Guimarães. Gomes o conheceu durante a montagem de “Cinema, Aspirinas e Urubus” e desde então mantiveram contato. Juntos, já fizeram “Ex Isto”, dirigido por Cao e montado pelos dois, além de um curta, em finalização, ainda sem nome.
“É um projeto cuja ideia inicial é do Cao. Os filmes dele são muito visuais e eu tenho uma experiência muito grande em construir personagens, e nós vamos reunir essas experiências num filme de ficção, que fala da solidão. É um filme que tem muita ressonância com os dois outros filmes dele, ‘Andarilho’ e ‘A Alma do Osso’”, conta Marcelo Gomes, diretor que já teve experiência em direção conjunta, ao lado de Karin Aïnouz, em “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”. Ele aposta nesse projeto com Cao. “Acho que vai ser uma parceria boa. Quando você trabalha com diretores com cujo cinema você se identifica – a gente admira muito o trabalho um do outro – é bem mais fácil, o diálogo é muito mais rápido”, pontua.
“O Homem das Multidões” é uma parceira entre Rec Produtores e Cinco em Ponto. “Nosso país é muito grande, a gente faz coproduções regionais”, brinca o diretor. O longa será filmado em Belo Horizonte, provavelmente no início de 2012 – a pré-produção deve começar assim que Gomes terminar “Era uma Vez Verônica”, no segundo semestre. Com orçamento de R$ 2,2 milhões, o filme já captou R$ 1,5 milhão, via Petrobrás. Mas, por enquanto, esperemos “Era uma Vez Verônica”, com estreia prevista para novembro. A distribuição já foi garantida pela Imovision.
Por Gabriel Carneiro
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