Marighella: guerrilheiro e tio

O pessoal e o público, o emocional e o político, o social e o individual se unem, se misturam e se completam no belo documentário “Marighella”. Simplesmente “Marighella”, sem nenhum subtítulo que neste caso se tornaria fatalmente redundante e/ou desinteressante diante de um nome que dispensa maiores apresentações. “Marighella” tem direção de Isa Grinspum Ferraz, socióloga recifense que trabalhou com Darcy Ribeiro, esteve na equipe que desenvolveu o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, dirigiu a minissérie “O Povo Brasileiro”, mas que traz para este filme um handicap que nenhum outro sociólogo ou cineasta possui: ela é sobrinha de Carlos Marighella.

As primeiras cenas, narradas em primeira pessoa, já dão o tom do documentário. A cineasta/sobrinha relembra o momento em que seu pai, Salomão, a estava levando para a escola. Eles moravam no Jardim São Paulo, que na época era um bairro afastado, justamente para poder hospedar Marighella e a esposa Clara. “Eu tinha 10 anos, estava sentada no banco de trás do carro, e meu pai imaginou que eu fosse reconhecer Marighella nas fotos dos cartazes de Procura-se, que estavam por todos os lugares. Só que até então eu nunca tinha associado as capas de revistas, de jornais, os cartazes, ao meu tio Carlos. Meu pai me contou e eu fiquei desesperada, comecei a chorar, tive que voltar para casa. Nem consegui ir para a escola nesse dia”, conta.

Assim, o documentário se reveste de uma áurea intimista única, humanizando o biografado, e trazendo para as luzes familiares e pessoais uma das personagens mais marcantes da história recente do Brasil. Para Isa, mais que um filme sobre Marighella, trata-se de um documentário sobre o “Tio Carlos”. “Era um grande tio. Ele fazia poemas pra mim. E não eram só poemas, fazia paródias de canções do Roberto Carlos para meus coleguinhas de classe também. Ele tinha uma memória incrível, era muito engraçado, divertido”, conta a cineasta que finalmente vê lançado agora um filme que nutre há quase 25 anos. O primeiro roteiro de “Marighella” foi depositado e registrado na Biblioteca Nacional em 1986. Na época, o projeto entrou na Lei Mendonça, foi aprovado, mas obviamente não conseguiu captar nem um único centavo, já que o tema não era bem visto por nenhum investidor, naqueles anos finais de ditadura.

Com a aproximação do centenário de nascimento de Marighella, comemorado em dezembro do ano passado, a cineasta decidiu intensificar a briga pela viabilização de seu projeto, refez o roteiro, aprofundou a pesquisa, e finalmente conseguiu transformar suas ideias em longa-metragem. Neste processo, recebeu ajuda fundamental de Mário Magalhães, repórter especial da Folha de S.Paulo, que há oito anos está pesquisando (“e eternamente terminando”, brinca Isa), uma biografia de Marighella. Mário acabou se tornando consultor especial do filme, auxiliando inclusive na seleção dos entrevistados.

Uma das maiores dificuldades de Isa foi não ter encontrado nenhuma imagem em movimento de Marighella, mesmo ele tendo sido deputado na época da Constituinte, em 1946, e ter participado da vida pública brasileira por mais de 40 anos. “A única imagem em movimento que existe dele é a da câmera da TV Tupi chegando ao carro, depois do atentado. Mas aí ele já estava morto”, informa a cineasta. Isa não sabe se credita esta ausência de imagens ao fato de seu tio ter combatido duas ditaduras (a de Vargas e a Militar), ou se isso aconteceu por própria opção dele, ao assumir a total clandestinidade. Mesmo fotos still existem pouco mais de 20. Esta carência de material iconográfico é suprida, porém, por um precioso material de áudio: uma longa entrevista concedida por Marighella para a Rádio Havana, em Cuba, em 1967, e que estavam arquivadas no ICAIC – Instituto Cubano de Artes e Indústria Cinematográficos.

Isa não considera seu filme como definitivo: “Há outros filmes a serem feitos sobre Marighella. Acho que merece um filme de ficção à altura do personagem. Que não seria nunca eu a fazer, porque não sei fazer ficção”, provoca. Fica a ideia.

Assista ao trailer do filme aqui.

Marighella
(Brasil, 140 min., 2012)
Direção: Isa Grinspum Ferraz
Distribuição: Downtown
Estreia: 10 de agosto

 

Por Celso Sabadin

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