O impactante apelo das comédias

O ano passado não foi muito positivo para o cinema brasileiro em termos de público, mas alguns filmes que conseguiram belos resultados, e garantiu os nossos 10% de ocupação das salas, foram as comédias. Os três que lideraram – “Até que a Sorte nos Separe”, de Roberto Santucci, “E Aí… Comeu?”, de Felipe Joffily, e “Os Penetras”, de Andrucha Waddington – tinham algumas características em comum, sendo a principal delas o fato de serem comédias populares. Este ano se repete o mesmo ritmo. Uma comédia popular já despontou como a provável maior bilheteria nacional do ano. “De Pernas pro Ar 2”, de Santucci, já está na casa dos 5 milhões de público. Os produtores e realizadores parecem ter, novamente, se dado conta do potencial apelo das comédias populares.

Ao menos 13 filmes do gênero, que estreiam ainda nesse ano, apostam nisso: “Vai que Dá Certo” (estreou no dia 22 de março), de Maurício Farias; “Vendo ou Alugo”, de Betse de Paula, “Meus Dois Amores”, de Luiz Henrique Rios; “Giovanni Improtta”, de José Wilker; “Odeio o Dia dos Namorados”, de Roberto Santucci; “Minha Mãe É uma Peça”, de André Pellenz; “Concurso Público”, de Pedro Vasconcelos; “Casa da Mãe Joana 2”, de Hugo Carvana; “Se Puder… Dirija!”, de Paulo Fontenelle; “Meu Passado me Condena”, de Julia Rezende; “Super Crô”, de Bruno Barreto; “Até que a Sorte nos Separe 2”, de Santucci, e/ou “Muita Calma Nessa Hora 2”, de Felipe Joffily.

Leandro Hassum, em cena de “Até que a Sorte nos Separe”, de Roberto Santucci: comédia voltada para a família. © Davi de Almeida

Com tamanha efervescência, a pergunta que surge é: há receita para o sucesso? Existem fórmulas, elementos que precisam estar lá ou algum tratamento específico para se alcançar o sucesso fazendo comédias nos dias de hoje? A resposta, dentre todos os entrevistados, foi unânime: não. Os fatores que apontam como necessários estão na seara do filme popular em geral, como boas histórias, personagens com que o público possa se identificar, atores famosos, bom valor de produção, temas atuais, entre outros. “Acredito que, na maior parte, os filmes partem de interesses pessoais em se contar uma determinada história. Mas, muitas vezes, se pensa no ET antes da história sobre um alienígena”, aponta o diretor Felipe Joffily, responsável por “Muita Calma Nessa Hora” e “E Aí… Comeu?”.

Não existem fórmulas para comédias

Para o roteirista Paulo Cursino, nome por trás de sucessos como “De Pernas pro Ar” (1 e 2), “Até que a Sorte nos Separe” (1 e 2), entre outros, não há nada pré-determinado. “O humor é um fenômeno cultural muito escorregadio, então é meio impossível determinar o que funciona ou não. O humor não é uma forma, é conteúdo. Sempre que me perguntam como fazer o público rir, digo ‘seja engraçado’, e se me perguntam ‘mas o que é engraçado?’, respondo, com a maior sinceridade do mundo, ‘se você não sabe é porque não nasceu para fazer humor’”. E não há fórmula muito por conta de não haver necessariamente apenas um público para tais filmes. “Cada comédia tem apelo por um motivo diferente, não dá para dizer que haja apenas uma forma de se fazer. O público de um filme como ‘E Aí… Comeu?’, uma comédia voltada para casais, é bem diverso de um filme como ‘Até que a Sorte nos Separe’, que é voltado para a família, e ambos são bem diferentes do público de ‘Os Penetras’, que pegou os adolescentes fãs do ‘Pânico’. Esse é o maior problema em nivelar as comédias sempre como ‘mais do mesmo’. Elas não são. Os públicos são diferentes”, pontua Cursino, que já prepara, para até 2015, uma comédia adolescente e uma comédia política, e, como produtor, uma de humor negro.

“Não consigo escrever sem ter o ator ou a atriz em mente, não consigo ver a comédia de outra forma” Paulo Cursino

O distribuidor Bruno Wainer, da Downtown Filmes, que comandou o lançamento das duas maiores bilheterias de 2012, entre outros, ensaia algumas respostas para o sucesso das comédias. “O esforço de anos pra transformar o cinema numa indústria criou seu primeiro fruto concreto: a comédia. A razão disso é talentos tarimbados e orçamento compatível com os mecanismos atuais de financiamento. Assim, as comédias já são produzidas e lançadas em ritmo industrial. Os outros gêneros caros ao público brasileiro – thrillers, biografias – têm orçamentos maiores e, portanto, são mais difíceis de serem produzidos em ritmo industrial”, explica.

Marketing pesado não salva filmes ruins

A Downtown tem conseguido, nos últimos anos, junto com a Riofilme e Paris Filmes, os melhores resultados de público. O investimento em marketing e em cópias tende a ser alto, muito em função das expectativas. A parceria entre as três, somadas à promoção da usual coprodutora Globo Filmes, tem rendido estreias gigantes para o padrão brasileiro. “De Pernas pro Ar 2” estreou em 700 salas, sendo que o país tem pouco mais de 2.500, ou seja, quase 30% de ocupação. Grande investimento em marketing – com direito a propagandas sucessivas na Rede Globo, incluindo nos programas ficcionais da casa – e grande lançamento não basta, segundo os produtores.

Ingrid Guimarães é a estrela de “De Pernas pro Ar 2”, ideia original de Roberto Santucci e sucesso de público que chegou a 5 milhões de espectadores. © Páprica Fotografia

Para a produtora Mariza Leão, que emplacou “De Pernas pro Ar” (1 e 2) e “Totalmente Inocentes”, na seara das comédias, o P&A (sigla para ‘prints and advertisement” – cópias e marketing) “é fundamental para atrair a atenção do público”. Mas geralmente é só isso. “Se o filme não for bom, ou engraçado, se não se comunicar com o público, se a plateia não se identificar com os personagens, não há divulgação que salve. Há filmes que tiveram o triplo de investimento de mar­keting que o nosso primeiro ‘De Pernas pro Ar’ e não aconteceram. Alguns foram lançados com o dobro de exposição na mídia e não alcançaram nem meio milhão de espectadores, enquanto o nosso fez mais de 3,5 milhões. Como se explica? Só existe uma estratégia de mar­keting infalível: o boca à boca. Para mim, o espectador não pode sair da sala dizendo apenas que o filme é bom ou legal. Ele tem que sair da sala dizendo “Cara, você TEM que assistir! E eu vou com você assistir de novo!”, afirma Paulo Cursino.

O roteirista vai mais longe em sua análise. “É óbvio que um filme que é lançado em 400 salas tem mais chances de fazer uma boa bilheteria de início do que outro que é lançado apenas em dez. Mas, repito: só no início. Se o filme for ruim, não fica. E aqui tocamos num ponto muito importante: todo cineasta alternativo tem a mania de achar que se seu filme fosse lançado em mais salas, o filme bombaria como qualquer bloc­kbuster, mas essa é uma falsa impressão. Precisamos entender de uma vez por todas: o exibidor, o dono da sala de cinema, não é burro. Ele precisa pagar contas, ele quer ganhar dinheiro, se ele sente que tem em mãos um filme que vai lotar a sua sala, ele o exibe, dá espaço, pois ele precisa de filmes que funcionem. Ninguém é maluco de deixar um sucesso em potencial em poucas salas apenas por questão de gosto pessoal. Se um filme alternativo tiver apelo, atrair o público, e for comercialmente competitivo, eles abrirão horário de alguma forma e o exibirão. É assim que funciona. Agora, se o filme alternativo se comunicar apenas com meia dúzia de espectadores, como geralmente acontece, aí não terá chances mesmo. Então, que se restrinja à essa meia dúzia.

E digo isso não como crítica, mas como análise, porque não considero demérito nenhum um filme atingir apenas meia dúzia de espectadores. Todo mundo sabe que o cinema precisa dos filmes mais elaborados, mais ousados, que ampliem os limites da linguagem cinematográfica. Só que essa ousadia, muito necessária, tem um preço que é um alcance menor dos filmes”, comenta.

Cena de “Vai que Dá Certo”, de Maurício Frias, que estreou em março

A influência do produtor

As comédias populares brasileiras, muitas vezes, obedecem a um fluxo de trabalho mais parecido com o das majors hollywoodianas do que com o das produções brasileiras. Raramente, o roteirista, o diretor e/ou produtor são a mesma pessoa. Nem sempre um projeto parte do roteirista ou do diretor, nem sempre o diretor tem as escolhas finais. Afinar a ideia é sempre o primeiro passo. “Há filmes que me chegam com uma ideia já bem definida, como foi o caso de ‘De Pernas pro Ar’. A ideia original era do Roberto Santucci, que deu toda liberdade para mim e meu parceiro Marcelo Saback a retrabalharmos. Há outros filmes que trazem apenas o conceito, como foi com o ‘Até que a Sorte nos Separe’. A proposta dos produtores era que o filme falasse de educação financeira tendo como base o livro do Gustavo Cerbasi, ‘Casais Inteligentes Enriquecem Juntos’. Então, parti da proposta, do conceito, e tive a ideia de contarmos uma história sobre um ex-ganhador da loteria que perdesse tudo. Ou seja, o conceito era deles, mas a ideia foi minha. Em ‘De Pernas pro Ar 2’ foi diferente, a ideia é minha e do Saback. E há filmes que já chegam com a proposta, conceito e ideia já prontos, como é o caso de ‘Odeio o Dia dos Namorados’. A produtora Mayra Lucas, da produtora Glaz, tinha essa ideia de adaptar o ‘Conto de Natal’ do Dickens para o dia dos namorados e eu apenas embarquei na proposta. O conceito e a ideia já estavam ali”, comenta Paulo Cursino.

Se a ideia parte do roteirista ou do diretor, o passo seguinte é encontrar um produtor que tope bancar o filme. “Há projetos em que recebemos o roteiro e ele foi completamente reformulado, caso do ‘Se Puder… Dirija!’. Paulo Fontenelle, também diretor, trouxe a ideia, o roteiro, e trabalhamos por um ano, inclusive com a distribuidora e coprodutora, a Miravista, do grupo Disney. Foi bom, porque queríamos fazer um filme-família e não temos tradição nessa seara. Essa troca foi muito boa. Mas há vários projetos desenvolvidos dentro da casa, temos um setor de criação aqui”, conta Walkiria Barbosa, da Total Entertainment, produtora de “Se Eu Fosse Você” (1 e 2), entre outros.

Mesmo numa estrutura que parece rígida, formulada pensando em atingir o máximo de público, Paulo Cursino conta que há espaço para inovar. “Sempre há, mas é preciso cuidado. A inovação é necessária, mas ela não pode matar a comunicação com o público. Inovação que só o diretor entende é cinemanovismo, uma furada. Acho que a comédia deve inovar tocando em temas tabus sem chocar demasiadamente o espectador, se não o humor pode sumir. A inovação na comédia está mais no modo como ela aborda os seus temas do que na forma como eles são mostrados. Quando você se atém ao conteúdo, as chances de inovar com sucesso na comédia são maiores. Ninguém vê isso, mas em ‘De Pernas pro Ar’ havia um desafio imenso de se tocar no assunto do orgasmo feminino e de mostrar dildos e vibradores sem chocar o público”, explica.

Muitas vezes, o diretor é convidado a assumir um projeto. “Com os produtores Augusto Casé e Bruno Mazzeo, pude exercer apenas a função de diretor, o que me dá liberdade para criar e focar nas decisões criativas e interpretativas daquele roteiro. É claro que não determino nada sem a aprovação deles, uma convenção formal num filme de produtores. Mas, levando em consideração a confiança que temos em comum e o grau de intimidade que criamos em produções anteriores, conseguimos criar um grupo de trabalho bem definido onde todos participam de tudo respeitando as decisões finais de cada departamento, principalmente roteiro, produção e direção”, afirma Felipe Joffily, que prepara “Muita Calma Nessa Hora 2” e “Os Cara de Pau”.

“A televisão e o cinema tem apresentado o mesmo humor enquanto tema. O que muda é a forma” Felipe Joffily

Da escolha dos atores ao vínculo com o distribuidor

Um quase pré-requisito para comédias populares é escrever já pensando nos atores. Muitas vezes a ideia já vem com um rosto – geralmente famoso e da televisão. “Não consigo escrever sem ter o ator ou a atriz em mente, não consigo ver a comédia de outra forma. Um roteiro de comédia que não explora todas as possibilidades cômicas do ator é um mau roteiro. Não posso escrever um texto para Ingrid Guimarães sem explorar o que ela faz de melhor. O mesmo para o Leandro Hassum, a Heloísa Périssé ou o Marcius Melhem. Você precisa dar a eles a oportunidade de mostrarem o que o público quer ver. Não que você não possa explorar outras facetas do comediante, ou até mesmo surpreender o público com algo novo do ator, mas isto não pode ser nunca a tônica do filme. Incomoda-me muito quando vejo um ator ou uma atriz subaproveitados em papéis que claramente não foram escritos para eles. E se me incomodo, imagine o espectador”, aponta Cursino, cujas escolhas para protagonistas nem sempre foram acatadas.

Quem parece deter mesmo o poder nesses filmes de maior apelo comercial são os produtores, ao contrário do que dita a regra do cinema autoral, em que a última palavra é sempre do diretor. “Nas três comédias que fiz, as propostas vieram dos diretores. Produzir é participar ativamente de todas as etapas do processo: do argumento e do roteiro à escolha do elenco; da montagem à confecção da trilha sonora; da frase de venda ao cartaz e trailer. Isso é produzir. E os roteiros são meu foco total! Não abro mão de participar dos mínimos detalhes”, afirma Mariza Leão. Walkiria Barbosa é mais enfática: “Participo de todo o processo, filmagem, pós; não aceitamos produzir projetos em que não possamos escolher elenco, mexer no roteiro, isso não nos interessa. Nós sempre sugerimos nomes de atores, e a decisão final é nossa. Assim como o corte final é nosso”.

“Se o filme não for bom, ou engraçado, se não se comunicar com o público, se a plateia não se identificar com os personagens, não há divulgação que salve” Mariza Leão

Para Felipe Joffily, essa relação está longe de ser vertical, de imposição, e é mais horizontal; faz parte da parceria. “Imposição se pressupõe que um filme não seja seu. Nesse caso, você pode sempre escolher não se submeter, caso contrário deixa de ser uma imposição para virar uma escolha. Considero produtor e distribuidor como parceiros”, diz.
Entre as principais queixas para se levantar a produção está no fato de que cada projeto nasce do zero. Mesmo com um grande sucesso de bilheteria, todo processo de captação é igual, sem uma continuidade de produção. “Começamos toda vez do zero. Não dentro do próprio setor, porque quando dá resultado as empresas querem trabalhar com você.

Infelizmente, no Brasil ainda dependemos muito de incentivos fiscais, porque nosso mercado é muito pequeno. Quando você faz um filme, ele pode dar retorno. Mais há dois fatores que são inimigos que nos impede de ser industriais. Um é o tamanho do mercado e outro é a tributação do mercado. O nosso mercado é tributado em cima da maior alíquota de imposto”, comenta Walkiria Barbosa, que, assim como Mariza Leão, recebe vários projetos, sem predominância por comédias.

O passo seguinte, uma vez o filme estando pronto, é buscar uma distribuidora. Nem sempre o distribuidor entra ao final do projeto. “A franquia ‘De Pernas pro Ar’ nasceu aqui, participamos de todo o processo desde a primeira ideia. Quanto aos filmes ‘Cilada.com’ e ‘E Aí… Comeu?’ não participamos de nada do processo criativo”, conta Bruno Wainer. Muita vezes, ainda antes de ser lançado, o filme passa por sessões-testes. “As pesquisas podem gerar muita confusão”, conta Felipe Joffily. “É uma etapa de pré-lançamento que pode materializar argumentos e trazer à tona debates anteriores. Eu adoro, é incrível, me faz descobrir resultados matemáticos de decisões artísticas, como, por exemplo, que uma sequência dramática que decidimos manter na íntegra numa comédia foi a preferida do público, com 80% de aceitação”, complementa.

“Os Penetras”, de Andrucha Waddington, com argumentos simples, conquistou os adolescentes fãs do “Pânico”

Comédia sempre foi preferência nacional

Olhando em retrocesso as maiores bilheterias nacionais, nota-se que o brasileiro sempre gostou de comédia. Antes mesmo de se medir o público de um filme, os relatos de filmes populares sempre giravam em torno da comédia, não importasse o estilo. Havia exceções, claro, mas comédias sempre pareceram a regra. Dos anos 1930 a 1960, as chamadas chanchadas – comédias, paródias etc., que quase sempre apresentavam números musicais – reinaram. Ficaram assim conhecidos nomes como Oscarito, Grande Otelo, Ankito, entre outros. Buscando o público rural, o ator, diretor e produtor Amácio Mazzaropi fez muito sucesso entre os anos 1950 e 1980, em especiais com as aventuras do Jeca. No final dos anos 1960, surgiu a pornochanchada, vocábulo geralmente usado para as comédias eróticas, como “O Bem Dotado – O Homem de Itu”, de José Miziara, e “O Inseto do Amor”, de Fauzi Mansur, mas que também abarcou os mais diversos gêneros. Como contraponto a essas comédias adultas, os Trapalhões, grupo humorístico formado por Didi, Dedé, Mussum e Zacarias, fez a alegria da criançada nos anos 1970 e 1980.

As comédias populares atuais já receberam os mais diversos rótulos, em especial, o de globochanchada, termo criado pelo cineasta Guilherme de Almeida Prado, que adapta a chanchada para o tempo das estrelas cômicas globais. Para Paulo Cursino, as novas comédias nada têm de chanchada e não têm mais nenhuma relação com o que se fazia no passado. “Gosto destes filmes, mas nunca foram referências para mim. Mazzaroppi foi um gênio, mas o seu tipo de cinema morreu com ele, não deixou sucessores e é impossível replicar o que fazia. Os Trapalhões também, ninguém entrou no vácuo que eles deixaram. As chanchadas eram musicais que parodiavam sucessos de Hollywood, algo que não se vê mais, nem musicais, nem paródias. Pornochanchada, então, acho impossível retornarmos àquilo, o país e seus valores são outros. Esses filmes, com todo respeito que tenho por eles, pertencem ao passado e lá devem permanecer. O cinema brasileiro atual, para o bem ou para o mal, dialoga muito pouco com a sua tradição. Sinceramente, vejo isso como algo bom, uma vitória. Não digo que reinventamos a roda, mas os filmes de hoje trazem novidades estéticas e propostas diferentes o suficiente para serem vistos como uma ruptura, como um novo momento de fato. Chamar as atuais comédias de ‘chanchadas’ expõe mais o preconceito de quem escreve do que uma análise crítica decente”, rebate.

Felipe Joffily vê relação. “É uma continuidade: o sucesso de hoje prova que ainda existe talento e gosto pelo gênero. Fui criado pelos Trapalhões e estudei na faculdade as comédias da Atlântida e da Cinédia. Pornochanchada só escondido dos meus pais”, comenta.

“Meu Passado me Condena”, de Julia Rezende, com Miá Mello e Fábio Porchat, é uma das 13 comédias prometidas para este ano. © Lucas Melo

As diferenças entre cinema e TV

A referência à TV Globo, em geral, também se dá quanto a uma adaptação formal e temática do humor da emissora e da televisão em geral. Paulo Cursino, que tem como maior modelo Miguel de Cervantes e seu “Dom Quixote”, nega qualquer relação. “Não dá para escrever para o cinema da mesma forma que para televisão. Tome como exemplo o início do ‘De Pernas pro Ar’ ou mesmo o de ‘Até que a Sorte nos Separe’, em que as imagens contam a história mais do que os diálogos. Se fizesse isso na TV, seria demitido. O texto cinematográfico tem outro ritmo, outra cadência e proposta. Na TV, tudo tem que ser muito rápido para não deixar o espectador mudar de canal. No cinema, o espectador já pagou pelo ingresso, dá para ir mais devagar, apresentar melhor os personagens e não dá para não dizer que não aproveitamos este espaço”, afirma Cursino, cujos créditos para TV incluem “Sai de Baixo”, “Sob Nova Direção” e “A Grande Família”. “A única coisa em comum são os atores, mas as propostas, as histórias, o ritmo, os tipos de piadas usados, são muito diferentes. Digo mais: nenhuma cena de um filme meu se sustentaria sozinha como um esquete, porque tudo ali só faz sentido dentro de uma trama, de um enredo. Quando um crítico diz que uma comédia nossa é apenas uma junção de esquetes, percebo que ele não entende nada de esquete e muito menos de comédia”, complementa.

Para Felipe Joffily, a televisão e o cinema tem apresentado o mesmo humor enquanto tema. O que muda é a forma. “As questões temáticas são comuns a todos os meios. As questões narrativas e estéticas são técnicas e devem corresponder a cada formato. Televisão é um veículo de comunicação, cultura e entretenimento; cinema é arte, são coisas bem distintas”, explana.

Walkiria Barbosa, que termina a produção “As Fantásticas Aventuras de um Capitão”, de Marcos Jorge, também não vê muitas relações, com exceção à parceria potencial entre as duas mídias. “A televisão não influencia a feitura de filmes. Esses parceiros são importantes, inclusive no aspecto criativo. É muito ruim trabalhar sozinho, sua chance de erro é maior. Se tiver várias pessoas, sua chance de acerto é maior. Há um valor inestimável nesse veículo que coloca milhões de brasileiros à sua frente todo dia para acompanhar algo”, afirma. Para Bruno Wainer, mais importante que a televisão é o teatro. “Quase todos os grandes comediantes têm espetáculos que são encenados por anos e com isso têm sua base de fãs conquistada nos palcos. Mesmo o fenômeno ‘Porta dos Fundos’ [programa de humor da internet] tem origem no teatro”, explica.

“A televisão não influencia a feitura de filmes. Esses parceiros são importantes, inclusive no aspecto criativo” Walkiria Barbosa

Preservação de valores morais

Historicamente, as comédias populares são achincalhadas pela crítica. O termo ‘chanchada’ surgiu como uma designação pejorativa, assim como a ‘pornochanchada’. Com os filmes atuais, não tem sido diferente, ainda que alguns diretores pareçam conseguir melhores resultados por fugir dos principais pontos das críticas, caso de Daniel Filho e de Cláudio Torres. Além da relação com a televisão, as observações giram em torno da preservação dos valores morais a qualquer custo, que coloca o casamento, a instituição familiar patriarcal e a estabilidade financeira como os principais meios de alcançar a felicidade.

“O povo brasileiro, em sua ampla maioria, acredita em família, acredita em trabalho, acredita em estabilidade financeira, acredita em passar bons valores para os filhos. Alguém pode dizer que há muita hipocrisia nisso, e até posso concordar que haja, mas há de se respeitar essa boa vontade do público, este desejo latente, de querer ser melhor e de ter uma vida melhor. Afinal, que mal há em fazer filmes que defendam esses valores? O cinema brasileiro peca demais por essa busca excessiva pela realidade dura e cruel. Por conta disso, tomamos surra de qualquer enlatado que entre aqui”, argumenta Paulo Cursino. “Acho patético que não tenhamos compreendido que esse é um mercado de brutal concorrência, em que temos que ocupar espaços com filmes desde os mais tradicionais até outros mais provocativos”, complementa Mariza Leão.

Outra crítica comum remete ao pudor no retrato do sexo, ainda que essa seja a temática dominante do filme. Caso, por exemplo, de “De Pernas pro Ar”, sobre uma mulher que descobre o orgasmo através de brinquedos eróticos e dá a volta por cima na vida empresariando um sex shop, mas que não mostra cenas de nudez ou de insinuação sexual.

Paulo Cursino, que escreveu o filme, explica: “Simples: porque o público também tem esse pudor e é preciso respeitá-lo. Tratar o sexo sem pudor nenhum é um erro, você afasta o espectador das salas de cinema, pois o constrange. O cinema nacional levou anos para perder a imagem de fazer apenas filmes onde só havia nudez e sacanagem. A pornochanchada causou um mal gigantesco ao nosso cinema por anos. Até hoje você vê gente comentando que o cinema brasileiro só tem ‘putaria’. Não que eu ache que o sexo deva ser tratado como um tabu, meus filmes são provas de que não penso assim, mas se o artista não tiver sensibilidade ou talento para retratá-lo, então que não o retrate. Cenas de sexo ou de nudez gratuitas, ou apologia à canalhice masculina, não funcionam mais com o grande público. Se é que funcionaram um dia”, afirma, questionando o sucesso das comédias eróticas dos anos 1970 e 1980.

Mariza Leão não acha que o pudor está apenas nas nossas comédias. “O cinema mundial está muito pudico. Deve ser um resquício da liberdade que se tem hoje em acessar via internet, em casa, canais e obras com forte apelo sensual”, teoriza.
Talvez, no futuro, esses filmes sejam reavaliados pela historiografia, assim como ocorre hoje com as chanchadas, pornochanchadas, filmes de Mazzaropi e dos Trapalhões. Por ora, o certo é que, com os sucessos de público que os filmes têm alcançado, cada vez mais produtos do gênero invadirão as salas comerciais – fenômeno que 2013 já começa a ensaiar – atrás de um lugar ao sol.

 

Por Gabriel Carneiro

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