Comédia com tempero de chanchada

A cineasta carioca Betse de Paula tem obsessão pela comédia. Morando em Brasília há mais de 10 anos, a cineasta filmou na cidade federal duas comédias, “O Casamento de Louise” (2001) e “Celeste e Estrela” (2005), onde investia em um gênero que ainda não havia feito sucesso de público como no momento atual. Em agosto, será lançado o seu terceiro filme, “Vendo ou Alugo”, uma comédia com humor chanchadeiro, bem ao gosto do público, que ganhou quase todos os troféus no último festival de Recife, e promete atrair um bom público nos cinemas. Será lançado pela Europa Filmes e Riofilme com cerca de 200 cópias.

Em “Vendo ou Alugo”, a diretora reúne várias gerações de mulheres que moram numa casa no Leme, no Rio de Janeiro, vizinha da favela Chapéu Mangueira. Maria Alice, a protagonista, interpretada por Marieta, tem jogo de cintura e flerta descontraidamente com a marginalidade: esconde maconha em casa, traduz manuais de armas e coleciona contas não pagas. Também se associa à empregada, Graça (Maria Assunção), na venda de doces de decoração erótica. A mãe, Maria Eudóxia (Nathalia Timberg), vive o descompasso entre a saudade dos tempos aristocráticos e a realidade que bate à porta – ou à janela, dada a proximidade com a favela – a todo instante. A filha, Baby (Silvia Buarque), desponta como uma hippie fora de época. E a depressiva neta, Madu (Beatriz Morgana), não vê a hora de resolver a alarmante situação econômica da família. Agora, elas somam esforços para vender a casa, única forma de saírem do atoleiro financeiro. Na disputa pelo imóvel, aparecem um inflamado pastor (André Mattos) e um estrangeiro (Nicola Lama) disposto a aproveitar a onda de fascínio por favelas e transformar a propriedade em hostel.

Ambientes decadentes

O ponto de partida para “Vendo ou Alugo” foi um texto de Maria Lucia Dahl, intitulado “Cotidiano”. A personagem de Maria Alice, inclusive, é, em certa medida, inspirada em Maria Lucia – não no elo com a contravenção, obviamente, mas em determinadas tiradas, como a afirmação, logo no início do filme, referente à derrocada dos jornais e à escalada dos blogs. “O texto me interessou pela relação de convivência com a favela sob a perspectiva das mulheres”, resume Betse, que acredita no contato pacífico entre morro e asfalto. “O clima durante as filmagens foi muito tranquilo. O pessoal da favela nos ajudou a subir com os equipamentos pela casa, já que não tínhamos como usar o elevador”, relata. A experiência de Betse nesse campo não se resume ao processo de “Vendo ou Alugo”. “Dei aula na Degase, na Ilha do Governador, escola de meninos em conflito com a lei. Nunca me senti ameaçada. São pessoas que precisam de uma chance na vida. O mau não deve ser identificado com um menino pobre e negro. É algo que existe dentro de todo mundo. A questão é você deixar aflorar ou não”, observa.

Na procura por casas vizinhas a favelas, Betse encontrou a locação perfeita mais perto do que imaginava. O casarão que serve de locação principal é da diretora de arte Emily Pirmez, que mora lá com os pais. “A casa era propícia pela sua disposição espacial, com diversas entradas e saídas, vários pontos de fuga. A proximidade da praia confere um glamour para a história. Mas precisamos torná-la bem mais decadente. Afinal, as personagens estão falidas. Quando definimos que seria lá, reescrevi o roteiro para ajustá-lo às particularidades da casa”, conta. A concentração de boa parte da ação em espaços fechados, o convívio entre personagens de classes sociais distintas e a circunstância de uma festa, ao final, podem remeter a “Tudo Bem” (1978), de Arnaldo Jabor.

Betse de Paula lança seu terceiro e mais produzido filme, e se firma como diretora de comédias. © Bia Sabóia

Citações de filmes de arte

“Vendo ou Alugo” é uma comédia popular que brinca de maneira bem espirituosa com referências eruditas. A passagem em que a empregada mistura por engano maconha aos ingredientes de um bolo é a que mais vem divertindo o público, a julgar pelas reações no Cine PE, mas também há citações a filmes como “L’Age d’Or” (1930), de Luis Buñuel, “O Ano Passado em Marienbad” (1961), de Alain Resnais, e “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), de Glauber Rocha, e a artistas como Andy Warhol. “Procuro fazer uma comédia que propicie camadas de leituras distintas. Existe um nível de sutileza que o espectador detecta na segunda vez a que assiste. E a erudição está ligada a personagens que foram ricos e perderam dinheiro”, justifica.

Betse vem mantendo fidelidade à comédia desde que se lançou na direção, na década de 80. “O meu primeiro curta, ‘S.O.S Brunet’ (1986), era comédia. Depois comecei a gostar. Escrevi dois roteiros, uma comédia e um drama. Uma amiga me aconselhou a apostar no humor. Mas não significa que não vá fazer algum drama futuramente. ‘Celeste e Estrela’ era, de certo modo, uma comédia dramática. Através do riso, você leva as pessoas a pensar. Já, se coloca a questão de maneira mais dura, pode afastá-las”, opina. O acerto no gênero está ligado a uma espécie de alquimia. “É meio complicado encontrar o tempo da comédia. Quando você filma, não tem feedback. E o humor decorre de uma maneira de ver as coisas, que é o olhar que se lança em relação à vida”, frisa a diretora.

Elenco na medida

Para alcançar um bom resultado, Betse de Paula realizou uma escalação certeira, auxiliada pela produtora de elenco Marcela Altberg. Há algumas conexões diretas: Marieta Severo e Silvia Buarque, mãe e filha na vida real, perpetuam o parentesco na tela. Nathalia Timberg e Marieta já tinham sido mãe e filha no filme “Society em Baby-Doll” (1965), de Waldemar Lima e Luiz Carlos Maciel. Nathalia, por sua vez, foi avó de Silvia na novela “Corpo Santo” (1987), de José Louzeiro, Cláudio MacDowell e Wilson Aguiar Filho, na TV Manchete. Betse retoma parcerias antigas – a começar pelas familiares, com o irmão (Marcos Palmeira), a filha (Beatriz Morgana) e dois primos (Nizo Netto e Rico Rondelli). Tinha contato com Marieta desde que trabalhou como assistente de direção de “O Homem da Capa Preta” (1986), de Sergio Rezende. Depois, dirigiu-a no curta “Por Dúvida das Vias” (1988). E André Mattos fez uma voz num de seus curtas, a animação “As Andanças do nosso Senhor sobre a Terra” (2005). A entrada de Analu Prestes decorreu de uma sugestão de Marieta, que trabalhou com ela nas peças “No Natal a Gente Vem te Buscar” (1980), “A Aurora da Minha Vida” (1982) e “Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão” (1985), trilogia de Naum Alves de Souza. E não se pode esquecer das presenças das veteranas Carmem Verônica, Daisy Lúcidi e Ilka Soares.

O roteiro recebeu diferentes versões. A própria Mariza Leão, produtora do filme (que assina juntamente com Betse de Paula, Maria Lucia Dahl e Julia Abreu, grupo que contou ainda com as colaborações de José Roberto Torero, Adriana Falcão e Anna Muylaert), interferiu, podando o excesso de personagens. E deu sugestões determinantes, como na trilha sonora – que ficou a cargo do Bandeira 8 (formado por Fabio Mondego, Fael Mondego e Marco Tommasi), além das contribuições de Jorge Mautner e Nelson Jacobina. “Na verdade, o projeto se tornou possível a partir da entrada de Mariza”, assume Betse, acerca de “Vendo ou Alugo”, cujo orçamento ficou aproximadamente em R$ 3 milhões. Agora, contudo, a diretora não ficará tanto tempo longe do cinema. Tem até um trabalho finalizado: o documentário “Revelando Sebastião Salgado”, sobre o célebre fotógrafo, que está inscrevendo nos próximos festivais brasileiros. “Além da comédia, sou especialista em realizar retratos”, diz Betse, que fez um filme sobre Darcy Ribeiro, na época em que morava em Brasília, e sobre o pai, o cineasta Zelito Viana.

“Vendo ou Alugo” estreia entra em cartaz nos cinemas no dia 9 de agosto. Confira o trailer do filme aqui.

 

Por Daniel Schenker

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